30/05/2007 14:38

Pedro Cláudio Cunca Bocayuva

Dez anos atrás perdemos o grande educador Paulo Freire, que ao longo de sua vida desenvolveu um amplo leque de reflexões e atividades engajadas para transformar o contexto educacional classista e bancarizado do capitalismo tardio. O impulso de ampliar a democracia esteve presente em sua práxis político-educativa, combinando o engajamento ao lado das classes populares com a reflexão sobre a função da escola e o papel da educação na transformação social. Desta forma, tivemos um desenvolvimento teórico e prático da “educação como prática de liberdade”, que articulou as dinâmicas do saber popular e a palavra geradora na luta pela alfabetização no impulso das reformas estruturais e da ampliação do direito de voto.

No período da ditadura militar, Paulo Freire ampliou a sua visão crítica recobrindo a totalidade social, definiu uma concepção pedagógica com o ponto de vista dos sujeitos sociais que emergem das classes populares. A “pedagogia do oprimido” se afirma como uma concepção de mundo, orientação política para fazer frente ao quadro espoliativo e classista das formas de dominação. A força inovadora do enfoque de Paulo Freire, seu humanismo radical, se fez sentir até mesmo nos contextos do socialismo burocrático de Estado. Por isso, falar de emancipação e libertação nacional (de descolonização e de democratização), na perspectiva da educação voltada para as classes populares, se tornou sinônimo de um conjunto de práticas que tinham a marca do seu pensamento.

Na construção de uma visão de mundo orientadora de práticas políticas voltadas para a educação emancipadora, necessária para a transformação social, Paulo Freire dialoga numa chave própria com as várias dimensões da subjetividade e da cultura. A pedagogia da autonomia articula a dimensão dialógica na prática educativa com uma abordagem radical pela igualdade na diferença como fundamento da nova relação entre educadore educando. Paulo Freire aposta na via da educação socializadora da experiência coletiva e da competência crítica de todos e todas, de forma a romper com as ideologias conservadoras, as abordagens dogmáticas e fetichistas da cultura e das ciências oficiais, instituídas pelo Estado burocratizado e pelo capital.

No conjunto de sua obra, o pensador e educador contribuiu para a construção de um conceito de projeto político cuja dimensão educativa é a chave na disputa da hegemonia. A direção intelectual e moral da vida social é vista como mediada pela centralidade da cultura e orientada pelo sistema de valores concretizados no terreno ético, concretizado em instituições, práticas, idéias e saberes que remetem ao papel dos movimentos autônomos e processos educativos no guarda-chuva conceitual da chamada “educação popular”. Como processo apoiado na luta dos sujeitos, a educação tem papel chave na apropriação da leitura crítica, condição para desnaturalizar o poder dos monopólios econômicos, políticos, culturais, com destaque para a superação da fabricação do individualismo, do egoísmo, do elitismo e da guerra de todos contra todos, que anula a esfera do crescimento da autonomia individual e do reconhecimento dos laços de pertencimento social.

A democratização brasileira e a cultura cívico-democrática no Brasil, desde a transição democrática, devem muito ao esforço de Paulo Freire e do enorme coletivo de educadoras e educadores, que como intelectuais orgânicos fortalecem as raízes para repensarmos os contextos de bloqueio da universalização do acesso a políticas, a fundos e a espaços públicos por parte das grandes maiorias. A transformação das práticas nas escolas, a crítica ao método e aos padrões curriculares descontextualizados e desconectados dos conflitos reais e dos desafios do conhecimento são pontos fortes de sua influência direta como homem público e gestor da educação na maior cidade brasileira.

Na escola, nos sindicatos, nos movimentos sociais, ele ajudou a formar quadros e lideranças capazes de manter viva a visão da educação crítica como abordagem metodológica. O movimento pela participação popular na Constituição e a luta pelo direito à cidade devem muito ao seu esforço de mobilização das aspirações coletivas. Por isso, quando estamos na véspera de fazer o balanço das nossas frustrações e avanços na luta pelos direitos sociais inscritos na Carta Magna (artigo 6), após vinte anos da promulgação da Constituição (1988-2008), a partir de Paulo Freire, podemos pensar nos passos políticos e educativos que nos separam de um avanço substantivo para a efetivação de direitos.

Precisamos pensar a crise da política como um obstáculo para a mudança, como o efeito de uma lógica cultural de esvaziamento e deseducação política. A contra-reforma no plano dos valores neoliberais se traduz na política como mercado. A reestruturação capitalista marcada pela lógica financeirizadora (da moeda autonomizada) é reforçada pelo espetáculo imagético (cultura como mercadoria) e vem impondo a imagem ideológica da repetição sem diferença e sem transformação, do presente naturalizado na imobilidade da profusão de signos e objetos que enfraquecem o potencial emancipatório. Paulo Freire nos ajuda a pensar a superação desse processo regressista.

A educação crítica como pedagogia da emancipação dos oprimidos é uma das forças propulsoras da construção de uma nova Paidéia para o século XXI. A formação política e cultural para a participação nas decisões da polis é um aspecto decisivo da luta pela educação em sua relação com a efetivação de direitos, num processo em que a própria educação deve ser percebida como um direito dos sujeitos na dinâmica de construção da cidadania.

No momento em que os efeitos da globalização desencadeiam cenários de risco e guerra, a retomada de lutas emancipatórias é essencial. Os debates nos encontros do Fórum Social Mundial sinalizam a necessidade de unificar as subjetividades coletivas. Paulo Freire reaparece na formulação de Boaventura de Sousa Santos da construção de uma “Universidade” que rearticule saberes sistemáticos com as experiências localizadas de resistência para a produção de alternativas. As lições de Paulo Freire permitem o resgate da ética emancipatória por parte dos cidadãos dentro dos vários recortes e modos de subjetivação coletiva, no plano vertical dos fluxos e no plano horizontal das redes sociais de resistência coletiva, no plano do Estado e seus aparelhos, no plano dos aparelhos de hegemonia e de forma mais viva no espaço urbano. O conflito e o cruzamento das lutas sociais, a partir das grandes multidões do novo cognariado, do velho proletariado e da multidão precarizada é base de uma unidade na diversidade dos saberes e das práticas, que devem ser mobilizados numa operação de educação popular coletiva para orientar uma macro-política de direitos e de uma revolução cultural nos modos de vida que ultrapasse o fetichismo e a violência cotidiana.

A reconstrução de redes sociais de mobilização de trabalhadores, de desempregados, de jovens, de mulheres, com seus vários recortes étnicos e geracionais, depende de uma ativação político-educativa, intensiva na produção e na crítica dos modos de informação, de formação e de comunicação para ativar potencialidades com capacidade de incidência e transformação de contextos e relações de força desiguais. A pedagogia do oprimido ganha corpo na construção de resistências e alternativas na disputa hegemônica, o que supõe uma retomada do plano político-educativo e dos valores democráticos para romper desigualdades e segregações derivadas dos fluxos abstratos da riqueza financeirizada.

Hoje os projetos educativos se tornam, imediatamente, condição de reforço da gestão do capital, a escola se torna objeto de interesse mercadológico. A reprodução social se torna a expressão da circulação material e virtual da desmedida que segrega e produz as exclusões e a marginalização face às condições de mobilidade e acesso das classes subalternas. Por isso, é no espaço da cotidianidade que os contextos de produção e reprodução, que a reapropriação e a redefinição do projeto político-educativo no sentido de Paulo Freire pode dar uma contribuição imediata.

O papel do espaço escolar e dos espaços horizontais de associação deve ser o primeiro objeto de uma política que vise barrar a guerra nos territórios e a imposição de padrões homogêneos de reprodução social da vida, orientada pela força da “lex mercatoria”. Como podemos impedir a reprodução permanente dessa combinação de marginalização histórica, precarização e prisões de miséria que impulsiona a versão periférica da economia e da cultura da violência? Como impedir a naturalização construída da morte da política, do fim da história, no quadro do novo constitucionalismo de exceção próprio à mundialização capitalista, próprio ao contexto de produção e reprodução da nossa apartação social, étnica, apoiada nos modos de segregação e discriminação cultural e espacial?

A construção do direito à cidade apoiado na capacidade de criação e mobilização ativas dos moradores, como comunidade e sujeitos de dignidade e de direitos, é o único referencial para a construção e de uma cultura de paz. A democracia e a república dependem desse reconhecimento ético-político do direito à mudança, onde a força da legitimidade não pode residir na desmedida e na destruição permanente da razão emancipatória. Os cenários de confronto se ampliam ali onde o poder do capital se opõe à proteção do direito como fonte de legitimidade e garantia de bem-estar.

Como seria pensar o cumprimento do artigo 6 da constituição de 1988 em políticas públicas apoiadas na mobilização democrática e produtiva de uma comunidade política que é chamada a definir a ampliar o seu direito à cidade, a fortalecer suas redes e sua mobilidade horizontal e cooperativa com acesso à justiça, à renda, ao trabalho, à educação, como centro das ações que garantam a paz e a segurança? Os exércitos e forças de ocupação que tornam a questão social caso de polícia e criam o regime de exceção prolongada só fazem ampliar o caldo de cultura e economia do medo e do terror, estados de emergência permanente apoiados na morbidez e na corrupção de valores e dos bens públicos. A centralidade do direito à educação e do direito de ir e vir de crianças e jovens, do direito à cultura, ao lazer e à educação, depende da revalorização ativa do espaço educativo.

A escola pública se torna um fator chave para condicionar os modos de ação das polícias, um vetor de estabelecimento de regras legítimas e de poderes coativos não-coativos capazes de romper com o círculo vicioso e a lei de bronze que banaliza a violência. Essa afirmação material e simbólica do lugar da educação, como espaço, como tempo, como direito e como política, exige que se amplie uma cultura de mobilização e resistência que responde com tolerância face às armas, que abre espaços de resgate, espaços de reparação, espaços de promoção, espaços de esperança e construção de novos possíveis. Ali onde Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e Paulo Freire se encontram, ali onde os educadores e os educandos podem articular as grandes exigências de um projeto político e de uma práxis localizada, ali onde o tempo da mudança tem seu ritmo dado pelo avanço da consciência coletiva e a República se faz valer nas comunidades, cuja voz será ouvida e amplificada como prática de liberdade e conquista de igualdade.