07/05/2009 17:49
Mauro Santos, coordenador do Programa Rio de Janeiro da Fase
A eleição de Eduardo Paes para a prefeitura do Rio de Janeiro reintroduziu temas, questões e formas de enfrentamento de problemas que não são novos, apenas ganharam em intensidade e legitimidade. O bordão “Ilegal, e daí?” criado pelo jornal O Globo teve como resposta da prefeitura o lançamento do “Choque de Ordem”, funcionando de forma equivalente a um programa de governo.
Ações de combate aos camelôs, reboque de carros estacionados de forma irregular, retirada de moradores de rua para abrigos, demolição de construções irregulares, as propostas de construção de muros em favelas e, recentemente, o debate sobre remoção de favelas, têm ganhado os noticiários sem, no entanto, garantir um debate que possibilite a elaboração de efetivas políticas públicas que incidam sobre as causas dos problemas que se quer combater.
Quando se aborda apenas um lado da questão, a tendência é transferir para os pobres a culpa pela sua exclusão, causa central da desordem urbana. A expansão das favelas e a construção de moradias em áreas de risco e de proteção ambiental se fazem num contexto de poucas escolhas para os mais pobres. Distância do local de trabalho, transporte caro, preço da terra, do imóvel e do aluguel inacessível vis-à-vis os rendimentos do trabalho (em grande parte informal, instável e precário). O problema do morador de rua também tem conexão com o problema da moradia. Vários moradores de rua têm casa, mas só podem usufrui-la nos fins de semana, pois não têm dinheiro para custear diariamente o transporte do local de onde retira seu sustento para a sua residência.
Obviamente, as estratégias de sobrevivência da população estão imbricadas com mecanismos perversos de exploração: vínculos de parte dos camelôs com contrabandistas e traficantes; especulação imobiliária nas favelas; acesso a serviços em troca de apoio ao tráfico e à milícia e etc. Entretanto, ações puramente de repressão, sem garantir aos pobres a perspectiva do direito à cidade, têm fôlego curto, pois são como enxugar gelo.
A questão é mais profunda. Quem é o responsável pela criação e expansão das favelas, pelo surgimento e crescimento dos camelôs e pelas inúmeras formas de sobrevivência desenvolvidas pelas classes populares? A “ordem” construída pelas elites não foi capaz de gerar integração da população pobre e a coesão social. Vejamos o caso das favelas. A ausência de uma política habitacional includente é a verdadeira causa da expansão das favelas e da ocupação pelos pobres de áreas irregulares, de risco ou de proteção ambiental.
Alardeado como o maior programa de urbanização de favelas do mundo, o Programa Favela Bairro falhou exatamente por não se constituir como um dos elementos de uma política habitacional, que integra também ações de acesso a terra urbanizada e de provisão habitacional para as famílias de 0 a 5 salários mínimos. Não foram implementadas ações de combate à especulação imobiliária a fim de ampliar a oferta de terra urbanizada, e de implantação das áreas especiais de interesse social voltadas a facilitar a regularização fundiária e urbanística de assentamentos precários, que também garantissem espaços nas áreas infra-estruturadas para os pobres.
Infelizmente, o município do Rio de Janeiro encontra-se na contramão do movimento nacional de revalorização do planejamento urbano com participação social a fim de viabilizar um pacto socioterritorial que tenha como componente central a garantia do direito dos pobres a terra urbanizada com acesso aos serviços essenciais, infra-estrutura e mobilidade. A lei do Estatuto da Cidade estabeleceu como obrigatória a revisão dos planos diretores de forma participativa pelos municípios com mais de 20 mil habitantes, a fim de incorporar as diretrizes e instrumentos contidos na lei. O Ministério das Cidades, a partir de resolução do Conselho Nacional das Cidades, organizou a Campanha pela elaboração dos Planos Diretores Participativos, mas a administração César Maia encaminhou à Câmara projeto de lei de revisão do Plano Diretor sem realizar nenhum debate com os segmentos da sociedade. Até hoje o plano não foi aprovado pela Câmara e a atual prefeitura ainda não se manifestou quanto ao compromisso estabelecido em lei de garantir o debate público do projeto.
A não regulamentação do plano diretor impede, por exemplo, que se utilize o instrumento de outorga onerosa do direito de construir, de forma a separar o direito de propriedade do direito de construir e cobrar pela criação do solo que ultrapasse o limite estabelecido pelo coeficiente de aproveitamento básico(1). A cobrança da outorga onerosa possibilita o retorno de parte dos lucros privados dos empreendimentos habitacionais que incorporam ganhos de localização em áreas urbanizadas e com atrativos locacionais (em termos de serviços, mobilidade, proximidade a áreas públicas de lazer e etc). Além disso, esse instrumento contribui para regular os padrões de construção a fim de garantir coerência entre o empreendimento e a capacidade da infra-estrutura instalada.
Outro instrumento fundamental é a aplicação dos instrumentos de parcelamento e edificação compulsória e o IPTU progressivo para áreas infra-estruturadas que se encontram vazias ou subutilizadas para fins de especulação. Esses instrumentos obrigam o proprietário de terras a dar uso social a sua propriedade, tendo em vista que um dos graves problemas da expansão de favelas tem correspondência com a especulação do preço da terra. A combinação desses instrumentos com a definição das áreas de interesse social é fundamental para garantir que terras vazias ou subutilizadas em áreas de boa localização e infra-estruturadas possam ser utilizadas pelos pobres.
Entretanto, nada disso está incluído no debate. Pelo contrário, o que temos observado são omissões ou ações desarticuladas, como: i) a implementação do PAC de urbanização de favelas sem envolver a população beneficiária nas suas decisões e de forma desassociada do debate do plano diretor e da política habitacional do município; ii) a não criação do Conselho Municipal da Cidade (já implantado na maioria dos municípios do Estado), que tem como objetivo democratizar as decisões referentes à política urbana, principalmente as políticas relativas ao uso e a ocupação do solo, a habitação, a saneamento ambiental e a mobilidade; iii) cogita-se a remoção de favelas (lembramos que a remoção de favelas é inconstitucional; a remoção só é permitida para as residências em áreas de risco ou de proteção ambiental) sem o combate à especulação do preço da terra; e iv) no processo de elaboração do projeto de revitalização do centro e da zona portuária, não está clara a destinação de imóveis públicos vazios ou subutilizados para habitação de interesse social, nem a intenção de manter a população pobre que a duras penas se manteve morando no centro da cidade.
Portanto, para enfrentar os problemas da desordem torna-se fundamental colocar a democratização da política de uso e ocupação do solo e da política habitacional no centro do debate, pois é preciso que a sociedade e o poder público respondam de fato a verdadeira questão: que ordem nós queremos garantir? A ordem excludente que afasta os ricos dos pobres, alimenta a violência e impede o acesso dos pobres às possibilidades de sobrevivência na cidade ou a ordem derivada de processos que garantam o direito à vida digna na cidade para toda a população do Rio de Janeiro? Afinal, quem quer manter a ordem, quem quer criar desordem?
(1) O coeficiente de aproveitamento básico geralmente é igual a 1, ou seja, o proprietário pode construir uma área igual à área do lote sem pagar nada ao poder público. Passando desse coeficiente deve pagar pelo solo criado.