28/03/2017 16:09
Natana Magalhães e Rachel Barros¹
“Salve! Negras dos sertões, negras da Bahia. Clementina, Leci, Jovelina. Nortistas caribenhas clandestinas. ‘Negras da América Latina’”, diz a canção “Antiga Poesia”, de Ellen Oléria. Refletindo sobre essas palavras e uma das importantes datas de luta internacional das mulheres, o 8 de março, vamos, enquanto mulheres negras, escrever a partir desta experiência de ser e estar no mundo, que como bem diz nossa Ialodê² Jurema Werneck trata-se de uma experiência compacta, inteira e singular. Diante disso, não abriremos mão de falar de uma perspectiva da trajetória do pensamento das mulheres negras, o que nos fará trazer como questão indissociável a urgência de diferentes possibilidades de se estabelecer marcos para se recontar uma história.
O 8 de março é um dia de luta para os mais diversos grupos de mulheres em vários países, mas a memória de sua origem foi perpetuada a partir de um mito que nos foi contado e repetido até os dias atuais. Sabemos que isso não é nenhum elemento que já não estivesse no bojo da dominação ocidental sobre as demais regiões do mundo. Fato é que já existe uma disputa em sua origem. A versão mais difundida, curiosamente, é a do massacre de 129 operárias estadunidenses queimadas por conseqüência de uma ocupação numa fábrica em Nova Iorque, em 1857. Já a tradição socialista reivindica que a data surgiu a partir de uma greve de tecelãs e costureiras, iniciada no dia 23 de fevereiro de 1917, na Rússia. Ora, ainda que o primeiro episódio seja um mito, dado que não existem registros orais ou escritos que o comprovem, é um marco importante, assim como é o outro, o verídico.
Nesse texto, escolhemos interrogar os marcos hegemonicamente consolidados, ampliando as possibilidades de narrativas e nos fazendo a seguinte pergunta: onde entram as mulheres negras nisso tudo? Ou, se as mulheres negras já estavam organizadas politicamente no mundo inteiro combatendo as mais diversas opressões, por que fomos apagadas e desvinculadas das lutas mobilizadas pelo dia das mulheres? Entendemos que o apagamento é também um mecanismo de dominação, assim como o lugar de subalternidade. Mas, que bom poder dizer como Audre Lorde³. O peso do silêncio não nos afogará, porque estamos transformando-o em linguagem e ação! São incontáveis os momentos em que, historicamente, as mulheres combateram veementemente a invisibilidade, lutaram contra o patriarcado e o racismo. Citaremos alguns desses episódios. Poderíamos incluir inúmeros outros, elegendo-os como referência de luta. Assim, reafirmamos a importância de se ouvir outras vozes além das “universais”, ou seja, brancas.
Seis anos antes da criação do “mito da fábrica”, a afro-americana Sojourner Truth, abolicionista, liderança religiosa e ativista pelos direitos das mulheres, salvou a reunião de mulheres de Akron do escárnio dos homens hostis. De todas as mulheres assistindo à reunião, ela foi capaz de responder agressivamente aos rudes e provocadores argumentos da supremacia masculina. Nesse trecho [4], dirigindo-se a uma plateia de homens brancos e algumas mulheres brancas, reivindicando o sufragismo, disse: “Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher”? A única mulher negra presente na Convenção de Akron posicionava-se pela libertação não apenas da opressão racista, mas também da dominação sexista.
Yaa Asentewaa, rainha da região Edweso, parte do antigo Reino Ashanti, localizada na atual Gana, foi uma das inúmeras lideranças femininas africanas que travou uma luta contra a invasão europeia, nesse caso, britânica. Diante do receio dos homens em seguirem em frente na batalha, Yaa declara: “se você é um homem Ashanti e não for adiante, então nós iremos. Nós as mulheres iremos. Eu chamarei as minhas companheiras. Nós lutaremos contra o homem branco. Lutaremos até que a última de nós caia em campo de batalha”. Resistiu durante meses, até que em março de 1901 foi exilada. Atualmente, existem memoriais, escolas e museus em sua homenagem.
No Brasil, em 5 de novembro de 1838, ocorreu a maior fuga de escravizados no estado do Rio de Janeiro. O ferreiro Manuel Congo liderou homens e mulheres da fazenda Maravilha e das redondeza. Mariana Crioula[5] trabalhava na Casa-Grande na fazenda Freguesia e era casada com José, que trabalhava na lavoura. Aos 30 anos, partiu com os revoltosos e tornou-se rainha do Quilombo, ao lado de Manuel Congo. A célebre frase de Mariana “Morrer, sim. Entregar, jamais!” foi dita por ocasião de um enfrentamento à invasão da Guarda Nacional no Quilombo.
Nos dias atuais, nós mulheres negras continuamos em luta. Lélia González, ainda nos anos 1980, nos alertava que numa sociedade onde o racismo e o sexismo são parte estruturante da ideologia de dominação, constituímos o setor mais oprimido, ocupando o polo oposto de privilégios, estes figurados no homem branco. O Brasil ainda conta com dados alarmantes de violência e violação de direitos das mulheres. Isso faz com que diversos movimentos de mulheres negras sigam criando e praticando estratégias de combate ao patriarcado, ao racismo, ao colonialismo e ao capitalismo.
É importante ressaltar que temos a quinta maior taxa de homicídios de mulheres (4,8 casos por cem mil habitantes do sexo feminino), numa lista de 83 países, segundo o Mapa da Violência 2015. A cada três mulheres, uma é vítima do atual ou do ex-parceiro. Entre 2000 e 2014, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, a população de mulheres encarceradas nas penitenciárias brasileiras subiu de 5.601 para 37.380, um aumento de 567%. A taxa é mais do que quatro vezes o crescimento geral de pessoas aprisionadas: 119%. Em ambos os casos, as mulheres negras (pretas e pardas) são as mais atingidas.
Órgãos do mundo inteiro têm referendado o que o movimento negro denuncia desde a década de 1980. O Estado brasileiro é racista e existe uma política deliberada de eliminação da população negra. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no país. [6] Essa violenta realidade originou organizações familiares de vítimas de violência do Estado por todo o Brasil. Movimentos esses majoritariamente formados por mães, que com muita garra e sabedoria tentam transformar sua dor individual em luta coletiva por justiça e pelo fim do racismo.
Com isso, reiteramos que o mês de março é de grande importância para nós mulheres negras, por causa do 8 de março e para além dele. Este mês também nos é muito emblemático, pois o 21 é instituído como Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial. Além disso, no dia 16 de março 2014, o Brasil assistiu a um dos episódios mais violentos e cruéis, protagonizado por policiais do 9° BPM do Rio de Janeiro. Moradora da favela da Congonha, Claudia Silva Ferreira, auxiliar de serviços gerais, foi assassinada a tiros e teve o corpo arrastado por uma viatura ao longo de 350 metros. Teria ficado conhecida como “a mulher arrastada”, se não fosse a luta de seus familiares, de organizações negras de mulheres de várias partes do país, que saíram às ruas e se posicionaram nas redes sociais dizendo que Claudia, uma trabalhadora negra, não merecia morrer. Nós não merecemos morrer! Ainda assim, os policiais que a assassinaram não foram punidos.
Insistimos em existir e reexistir, entendendo que ainda vamos trilhar um longo caminho de muitos desafios para que o Brasil seja um país mais confortável para todas. Vamos nos inspirando em todas que lutaram antes de nós, e encontrando novas formas de sobrevivência até podermos de fato bem viver. Nossos passos vêm de longe!
[1] Educadoras do programa da FASE no Rio de Janeiro.
[2] Jurema Werneck informa que Ialodê é um dos títulos de Oxum, divindade que teve origem na Nigéria, em Ijexá e Ijebu. Também se refere à representante das mulheres, a alguns tipos de mulheres emblemáticas, lideranças políticas femininas de ação fundamentalmente urbana. Aquela que fala por todas e participa das instâncias de poder.
[3] Audre Lorde foi uma escritora estadunidense. In “Irmã Estrangeira” (sister outsider), Ensaios e Conferências, 1984. Apresentação lida no painel sobre Lesbianismo e Literatura, da Associação de Língua Moderna, em Chicago. Illinois, 28 de dezembro de 1977, publicada pela primeira em 1978, no volume 6 de Sinister Wisdom, revista de feminismo radical.
[4] DAVIS, Angela “Mulheres, raça e Classe, 2016.
[5] Discurso de Sojourner Truth, proferido na na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, EUA, em 1851.
[6] Dado do relatório final da CPI – Assassinatos de Jovens.