23/03/2020 18:31

Rud Rafael¹

Mais de 80% da população brasileira, cerca de 210 milhões de pessoas², ocupam 0,63% do nosso território, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA, 2017). É isso o que representa o tecido urbano no Brasil. Um outro dado, da Fundação Getúlio Vargas (FGV, 2019), 7,78 milhões de famílias não têm o direito à moradia assegurados; e, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2018), 8,3 milhões de pessoas vivem em áreas de risco.

O mesmo IBGE também aponta que no país temos quase 12 milhões de brasileiras(os) desempregadas(os) e 11,8 milhões de pessoas com vínculos precários de trabalho. Segundo pesquisa da OXFAM de 2017, seis brasileiros concentram a mesma riqueza que a metade mais pobre da população. O pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza afirma que a desigualdade no Brasil, em relação ao resto do mundo, só é menor que a no Qatar.  

Foto MTST

Sobre a infraestrutura, mas de 35 milhões de brasileiros não possuem abastecimento de água tratada e aproximadamente 100 milhões não têm acesso a esgoto tratado³. No relatório anual sobre a fome no mundo, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, 2019) apontou que no Brasil existem cerca de 5 milhões de pessoas subnutridas, o que aponta a possibilidade de o país voltar ao mapa da fome.

Essa realidade, por si só, já expressa um quadro de calamidade social a ser enfrentado com urgência, pensando a garantia de direitos mediante fortalecimento de sistemas públicos de serviços. Infelizmente, foi necessária uma pandemia para que essas questões fossem coletivizadas em outro nível e que um grande alerta soasse nos quatro cantos do país. É importante que se diga que a preocupação com as pessoas e grupos mais vulneráveis e o acesso universal a bens e serviços deveriam ser uma questão central em nossa sociedade e não uma demanda para tempos de crise.

Quando o atual presidente diz que é preciso salvar a economia, deveria pensar em como salvamos as trabalhadoras e trabalhadores que a fazem o país acontecer. Pensar, por exemplo, que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que estabeleceu o Teto de Gastos⁴ prejudicou a capacidade de investimentos do Estado e é preciso revogá-la. Avaliar que a Reforma da Previdência deixou as pessoas idosas ou as que necessitam do Benefício de Prestação Continuada (BPC) ainda mais expostas e vulneráveis e a economia de diversos municípios que dependem dos benefícios previdenciários, destroçadas.

Cabe também destacar que a orientação por isolamento social e métodos permanentes de higienização e limpeza são desafios para quem não tem a água na torneira e não sabe se vai conseguir botar comida na mesa no final do dia.

O público salva, o privado priva

Enquanto alguns já convivem com a lógica do apartamento, em seus condomínios fechados, nas periferias ainda persiste a vida comunitária. A desigualdade assume cada vez mais a lógica da desumanidade, por parte daqueles que se descolam da realidade social do país pela permanência da concentração de riqueza e terra. Isso sem contar as milhões de trabalhadoras e trabalhadores que, nessa conjuntura, têm até os postos formais de trabalho ameaçados e o quadro generalizado de regressão econômica e nas políticas públicas.

Foto MTST

Nesse sentido, se explicita que o Mercado e seus defensores só têm oferecido incerteza e mais exploração, sem piedade. Diversas empresas são denunciadas por expor funcionárias(os) à contaminação e condições insalubres de trabalho, como é o caso da página Coronacapitalismo. A face perversa da exploração do sistema não usa máscara para proteger ninguém. Enquanto isso, governos como o da China e da Espanha tem oferecido como alternativa a construção de novos hospitais ou a estatização de hospitais privados.  

O momento, no entanto, exige coragem, cuidado e criatividade. Se há poucos meses, restava pouco espaço para a defesa de outro modelo de cidade e de sociedade, devido ao estreitamento de horizontes da conjuntura, a ameaça à vida de milhões de pessoas recoloca essa emergência. Construção de redes de solidariedade em escala de vizinhança e global, investimentos nos sistemas de saúde e de infraestrutura urbana, garantia de trabalho e renda, desmercantilização de serviços e necessidades básicas.

É preciso reconstruir

Existe não apenas uma agenda de crise, existe uma agenda social de reconstrução de vínculo, de ruptura da solidão política. É tempo dos comuns. Transmissão comunitária só quando for para falar das ações de bem viver. Que fortaleçamos os significados positivos para as coisas que expressem nossas práticas e valores coletivos.

Foto MTST

A FASE, por exemplo, tem entrado nesse processo junto com organizações e articulações, como no caso do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) Brasil e a ação de distribuições de kits de limpeza e alimentação para mais de 150 famílias nas periferias de Recife, totalizando quase 6 mil itens e 3 toneladas de doações, buscando também potencializar a economia local, adquirindo tais produtos em mercados de bairro.

O próprio MTST lançou um Fundo de Emergência para os Sem-Tetos afetados pelo Coronavírus. O Sindicato dos Trabalhadores do Comércio Informal do Recife também está com financiamento coletivo aberto nas redes. Abaixo-assinados pedindo renda mínima, suporte às trabalhadoras e trabalhadores do Polo da Sulanca e outras iniciativas também podem ser fortalecidas sem sair de casa. Isso mesmo, quem puder, pode ajudar mais ficando em casa e de diversas formas: compartilhando informações sobre prevenção; viralizando as boas iniciativas; pesquisando sobre experiências exitosas; criando novas e reforçando redes já existentes; resgatando nossa capacidade de dar respostas, de propor e de inovar.

Enfrentar o coronavírus no Brasil passa por enfrentar o abismo social das desigualdades. Podemos contar com você também nesses esforços? É pra salvar vidas e a sociedade

[1] Assistente social, educador da FASE em Pernambuco, professor universitário e coordenador do MTST. 

[2] IBGE, 2019.

[3] Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS, 2018).

[4] Alteração na Constituição que instituiu o Novo Regime Fiscal e limitou o crescimento das despesas do governo durante 20 anos.