03/05/2018 18:06

(Foto: Rovena Rosa/ABr)

O incêndio seguido de desmoronamento do edifício Wilton Paes de Almeida, no centro da capital de São Paulo, ocorrido na madrugada do dia 1º de maio, Dia Internacional dos Trabalhadores, foi mais uma tragédia que mostra a miséria das políticas habitacionais em nosso país. Ali, havia 146 famílias com rendimentos de zero a um salário mínimo. Para nós, ao contrário do que a mídia corporativa está a propagar, o que a tragédia revela é, de um lado, o descaso público com a problemática habitacional e, de outro, a certeza de que esse descaso é orquestrado. Expressões como “invasão” ou “ação irregular” só reforçam os preconceitos sofridos por pessoas que enfrentam cotidianamente a pobreza, gerando ainda a criminalização de movimentos sociais de luta por moradia. O déficit habitacional brasileiro é um fenômeno que só aumenta seus números, de acordo com o próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): em 2013 (5.846.040); em 2014 (6.068.061); e em 2015 (6.186.503). Isso caracteriza o que chamamos de “tanta gente sem casa”.

Concomitantemente, como expressão da desigualdade social e do patrimonialismo, apresentamos dados que caracterizam “tanta casa sem gente”, ou seja: no ano de 2013, se registravam 7,230 milhões de imóveis vagos, 79% dos quais localizados em áreas urbanas e 21% em áreas rurais. Desse total, 6,249 milhões em condições de serem ocupados, 981 mil em construção ou reforma. Em 2014, os domicílios vagos somaram 7,241 milhões de unidades, 6,354 milhões das quais em condições de serem ocupados e 886 mil em construção ou reforma¹. Resultado: em todos esses anos o número de imóveis vagos é superior ao déficit habitacional, que se concentra nos grandes centros urbanos e entre as famílias com rendimento médio de até três salários mínimos – 83,9% do total do déficit, como é o caso das famílias vítimas da tragédia em São Paulo.

E quem está por trás de “tanta casa sem gente, tanta gente sem casa”? A especulação imobiliária! Nas áreas centrais das grandes metrópoles há, crescentemente, a política de deixar os imóveis privados e públicos vazios. Em geral, seus proprietários não públicos são devedores de tributos ao erário ou estão amparados em leis de “preservação” do patrimônio histórico. Essas deveriam proteger a memória e a história, mas acabam sendo usadas em favor da especulação imobiliária. Nada é feito para cuidar de prédios, ficando esses vazios e “em perfeito estado” para a chegada de algum megaprojeto. As edificações ficam se deteriorando, enquanto que o entorno é valorizado com obras de infraestrutura urbana. Um exemplo dessa estratégia é o projeto Porto Maravilha, no Rio de Janeiro. Houve despejos e remoções. Centenas de imóveis e terrenos foram valorizados e, mesmo o poder público sendo o proprietário, foram negociados no mercado imobiliário de alto padrão.

(Foto: Paulo Pinto/ Fotos Públicas)

Em alguns estados brasileiros, a relação entre domicílios vagos com potencial de serem ocupados e o déficit habitacional é a seguinte: na Bahia são 766.821 imóveis vagos para um déficit de 437.472; em Minas Gerais existem 875.860 imóveis vagos para um déficit de 592.270; no Pará, 238.102 imóveis vagos e um déficit de 286.766; em Pernambuco são 312.408 imóveis vagos contra 274.905 de déficit; No Rio de Janeiro, chegamos a 605.269 imóveis vagos diante de 460.273 de déficit; e em São Paulo, cuja capital é a maior metrópole brasileira, os números são ainda mais impressionantes: 1.240.439 imóveis vagos e um déficit de 1.327.408.²

O que isso revela senão o descaso público com o direito à moradia e seu compromisso com a especulação imobiliária? Esses imóveis poderiam ser recuperados e ofertados como habitação popular. Temos leis e meios técnicos para isso. Movimentos sociais estão corretos ao afirmarem, por meio das ocupações desses imóveis vazios em áreas centrais, que há “tanta casa sem gente, tanta gente sem casa”. Os dados são oficiais. Por trás deles estão pessoas que procuram viver perto do local de trabalho. Os que conseguem algum meio tentam economizar os gastos com transporte; os que ainda estão sem, aumentam as chances ao morarem na área central. A maioria forma o “exército” de trabalhadoras e trabalhadores precarizados – são ambulantes, pessoas que fazem pequenos bicos, serviços de limpeza etc. Então, viver no centro de uma metrópole, para essas pessoas, não é só ter um lugar para se proteger do sol, do frio e da chuva, é também a necessidade de encontrar meios de obter trabalho ou alguma renda, ainda mais num momento que os programas sociais estão erodindo. Enquanto o governo não implementa uma política habitacional que priorize esse extrato social, que lhe assegure moradia digna e renda para o sustento da família, só resta a ele lutar e ocupar imóveis vazios das áreas centrais das cidades. Esses imóveis não estão cumprindo suas funções sociais.

Todos os dispositivos, previstos em leis, para enfrentar o déficit habitacional no Brasil, garantir a função social da propriedade, priorizar, com recursos públicos, o provimento de moradia em áreas centrais e aproveitar imóveis públicos ociosos, dentre outras medidas, têm sido reiteradamente ignorados. O que prevalece são os interesses do mercado imobiliário, que, para realizar a especulação imobiliária nas áreas centrais, conta com a falta de políticas de moradia que priorizem atender os mais empobrecidos e com o descumprimento da lei. Essa é uma realidade que se repete nos diversos centros urbanos brasileiros.

(Foto: Paulo Pinto/ Fotos Públicas)

A tragédia do edifício Wilton Paes de Almeida, além de escancarar o grave déficit habitacional, mostra o quanto avança o neofascismo e o conservadorismo das elites. Antes mesmo de sabermos o número e a identidade dos mortos e desaparecidos já começaram a aparecer nas mídias corporativas e nas redes sociais narrativas carregadas de preconceito e ódio, em uma desavergonhada tentativa de desqualificar as ocupações; nessa onda punitivista e de criminalização dos movimentos sociais querem atribuir a responsabilidade do triste episódio àquelas famílias, como se elas fossem criminosas, responsáveis pela sua própria desgraça. Fazem de tudo para confundir a opinião pública e esconder que o direito à moradia digna está previsto no artigo 6º da Constituição Federal e que é responsabilidade do poder público garantir a execução de políticas públicas de habitação e que a propriedade cumpra a sua função social.

[1] Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE 2014).

[2] Ministério das Cidades e Fundação João Pinheiro (2014).