07/10/2020 15:48

Aercio Barbosa de Oliveira¹

Ainda não apareceram justificativas ou pesquisas que exponham satisfatoriamente as razões do Rio de Janeiro – refiro-me ao estado e à capital – ter alcançado tamanho desarranjo em suas instituições políticas, que beira à anomia. Não faltam alegações a respeito, mas nenhuma está livre de refutações. Algumas afirmam que o Rio de Janeiro, ao deixar de ser capital do país, ficou órfão de uma elite política voltada para os interesses do estado; os partidos de todo o espectro político são frágeis, em decorrência da justificativa anterior; a fusão do antigo Estado da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro teria alterado a forma de distribuir os recursos públicos, prejudicando principalmente a cidade polo da metrópole fluminense; a herança do fisiologismo e corrupção do chaguismo; o avanço da milícia e da quantidade de facções responsáveis pelo varejo das drogas consideradas ilícitas; a existência de agentes políticos insaciáveis e “viciados” em acumular para si o dinheiro público; ao pluralismo político, religioso, social que dificultaria o estabelecimento de uma cultura cívica e uma concertação política estável, onde adversários partidários assumiriam pontos comuns; por ter sido sede do Império Português e capital da república, o que ajudou a moldar uma tradição política fluminense, especialmente na antiga Guanabara, a megalomaníaca, numa combinação de orgulho e a soberba (a vida mostra o quanto esses atributos em excesso nos cegam); por ser o estado, em termos relativos, com a maior quantidade de habitantes vivendo na região metropolitana, espremidos entre a serra e o mar, dificultando a execução de políticas públicas. As apresentadas, são as mais conhecidas. Seguramente tem outras, para todos os gostos.

O fato é que, ao olhar para a história fluminense, ao menos desde quando alguns poucos militares de alta patente criaram a República, foram poucos os momentos em que o sistema político do estado do Rio de Janeiro esteve em situação similar e tão vexaminosa. Uma situação que reforça o desprezo das pessoas ao sistema político da democracia liberal e mesmo o seu sistema de justiça. Não é nada fácil, para uma pessoa que acompanha, minimante, o cotidiano da política carioca e fluminense apostar um “tostão furado nessa estrutura”. A longitude entre os interesses dos representantes e representados se expandi ilimitadamente. Para gerações mais novas, é compreensível que a percepção seja a das piores.

Qualquer literatura distópica parece fichinha comparada à realidade. Quem mora em favela ou em algum bairro da periferia em cidades da região metropolitana sabe o que é viver sob o terror provocado pelo Estado – é polícia dando tiro a esmo de dentro de helicópteros, governador dando ordem para polícia acertar na “cabecinha”, milícia assumindo o controle de serviços essenciais nos territórios, inclusive sendo responsáveis pela construção e venda de imóveis. Quando não é este terror estatal ou paraestatal, temos a negligência dos governos estaduais ou municipais com os serviços e os bens públicos. Saúde, transporte, moradia e abastecimento da água, quando funcionam, são precários.

A maioria dos eleitos, que tem entre as suas funções fiscalizar as ações das prefeituras e governos, mais representam seus interesses particulares e de empresas que controlam o Estado. A estrutura do estado, faz tempo, está nas mãos de empresas de diferentes ramos de negócios para a produção mínima das cidades e de financistas. A estrutura do sistema político formal virou um espaço para se fazer negócios. Uma minoria de legisladores, prefeitos e governadores conseguem atuar de maneira lícita, mesmo sofrendo o custo de ameaças e, inclusive, perseguições da própria justiça e de setores do Ministério Público.

Gestores públicos sob a mira

A situação é alarmante. Assassinatos de parlamentares e prefeitos na política fluminense infelizmente não são novidade. A força da bala, muitas vezes esteve acima da força do argumento ou das leis. Em levantamento feito pela revista Carta Capital, em setembro deste ano, nos últimos 30 anos foram assassinados no estado do Rio de Janeiro 14 pessoas, entre gestores públicos, prefeitos e parlamentares, boa parte deles atuavam em cidades da Baixada Fluminense. Um caso bem conhecido foi o assassinato do prefeito da cidade de Belford Roxo, em 1995, próximo ao Palácio Guanabara, quando ele se dirigia a uma audiência com o então governador do estado, Marcelo Alencar.  Esses episódios, que se restringiam à “margem”, se espalharam para o “centro”, como acertadamente afirmam pensadores simpatizantes daquele conjunto de ideias denominadas pós-estruturalista.

Talvez o trágico marco histórico que mostra a alteração qualitativa dessa situação foi o covarde e planejado assassinato da Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro. Naquele momento, a fronteira que demarcava centro e periferia foi apagada. Desde o assassinato de Marielle, que era uma parlamentar combativa e conectada com os movimentos sociais democráticos, aumentou a presença de parlamentares na Câmara Municipal do Rio de Janeiro e na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro ligados organicamente a milícias ou defensores da violência como forma de enfrentamento do nosso conflito distributivo. Temos na presidência da república, no senado e na câmara federal eleitos que explicitamente defendem criminosos e torturadores. Esse fenômeno político parece mostrar o fim da diferença do Rio de Janeiro com as outras cidades da Baixada Fluminense. O sistema de Justiça do estado funciona desrespeitando o rito processual e facilita a vida dos agentes da barbárie. Evidente que ainda existe setores da polícia e do sistema de justiça atuando, seguindo as normas legais, para conter o avanço de tantos crimes e violações.

Não devemos esquecer que toda a configuração social de um tempo presente, normalmente é o acúmulo de fatos, mais a sedimentação de valores que se estendem ao longo do tempo antecedente. Graças ao presentismo em que nos metemos, esquecemos disso e tudo parece emergir num “aqui e agora” alucinante. Podemos, portanto, encontrar as tantas causas de um estado violento e da forte presença de grupos paramilitares nos territórios e nas estruturas estatais, ou ao lado do estado, num movimento que foi se conformando com a aprovação de agentes públicos e prefeitos nos anos de 1990. Claro que no mundo social não é fácil estabelecer uma relação causal, são sempre múltiplas, mas ter prefeitos da “Cidade Maravilhosa” apoiando explicitamente a atividade de milícias para proteger o patrimônio dos cidadãos não é nada trivial.

De algum modo, atitudes como essas e tantas outras ajudou a pavimentar as condições para se eleger um presidente da república que sempre valorizou essa ideia e seus efeitos práticos. Tudo isso traz graves consequências quando o poder público se desresponsabiliza da função mais elementar do tacanho liberalismo – garantir a segurança pública. É tão grave quanto a maioria da população, hipnotizada pela informação fugaz e distorcida, ter como uma das referências simbólicas um presidente da república e um governador, afastado das suas funções, apologistas da eliminação física de quem se opõem aos seus valores e forma de vida. Lembremos do governador afastado, quando a polícia assassinou uma pessoa na ponte Rio-Niterói. Uma imagem que circulou não só no Brasil, mas em vários lugares do mundo. Não é difícil imaginar os efeitos que ela causou e ainda causa – ver a mais alta autoridade pública do 2º estado mais rico da federação, que é referência para o mundo quando se fala de Brasil, vibrar como se tivesse feito um gol após saber que o tiro do policial foi fatal.  

Por essas e tantas outras razões, que a conjugação da violência com o desleixo da coisa pública, o desprezo ao bem comum, atravessados por tantas mazelas sociais – desigualdades socioeconômicas profundas, aumento de famílias passando fome, de população em situação de rua, pessoas sem qualquer tipo de trabalho, uma política das mais violentas, ex-governadores e agentes públicos presos por corrupção, um sistema de justiça parcial e também corrupto etc. – ajudam a  formar e a informar ao Brasil e ao mundo que o antigo estado da Guanabara está mais para um balneário decadente, cercado por munícipios que já sofriam mazelas bem antes, do que para uma “Cidade Maravilhosa”. A antiga Guanabara e as cidades do estado do Rio de Janeiro passaram a ter muito mais coisas em comum do que se supunha. E o mais grave, o que está ocorrendo aqui, parece servir de exemplo para outras unidades da federação, inclusive para o governo federal.

Quer mudança? Então, vote

O Rio de Janeiro poderá ter a oportunidade de iniciar a alteração desse quadro institucional tão desfavorável. Desconfortavelmente, para muitos, será mais um momento para cumprir o ritual dentro de uma democracia minimalista que pouca diferença faz na vida cotidiana das pessoas. Para outros, que me incluo, é um momento de oportunidade para conter o avanço da decadência absoluta de um Estado.

Como alento, prova de inconformismo e coragem, todas as cidades do estado, sobretudo em sua capital, possuem uma expressiva quantidade de candidaturas que estão contra essa quase anomia institucional disputando vagas para câmeras e prefeituras. Na maioria dos casos, como a nossa legislação não permite candidatura avulsa, militantes, ativistas e defensoras de direitos humanos, se comprometendo com diferentes agendas, residentes em diferentes lugares das cidades, ocupam os partidos do campo democrático popular, a despeito dos limites e incompreensões dos partidos para dialogar e incorporar organicamente essa diversidade que está para além da ideia de desenvolvimento ou de um “reformismo fraco”. Muitas dessas candidaturas pautam o caminho para uma nova civilização. As questões de classe, de raça, de gênero, socioambiental, novas maneiras de existir no mundo, da produção e reprodução urbana e tantas outras estarão presentes nessas eleições.

Não deixa de ser compreensível a atitude dos que querem distância das urnas em 2020, que pensam com essa atitude deslegitimar um sistema, que, como descrevi acima, definha. Contudo, não me parece a melhor atitude num momento em que os promotores da barbárie veem nas eleições a oportunidade de ampliar seus poderes. Com o que temos disponível, diante do quadro social e institucional, talvez um voto nunca tenha significado tanto. O que não desqualifica as outras maneiras de atuar para transformar um desarranjo político que começa a extrapolar as fronteiras do estado fluminense.  

O contexto me remete a uma passagem que está no excelente documentário Eu não sou seu negro, quando o intelectual, literato e militante engajado nas mobilizações sociais antirracistas nos EUA, James Baldwin, afirma que “Nem tudo que é encarado pode ser mudado. Mas nada pode ser mudado até ser encarado”. No momento mais imediato, o que ainda não nos foi tirado é o direito de votar. Assim sendo, às urnas!!!!

[1] Coordenador do programa da FASE no Rio de Janeiro, membro do Grupo Nacional de Assessoria da FASE e mestre em filosofia.