Rosimere Nery
21/12/2023 12:37
Publicado em Caranguejo Antenado
Inicio esse texto afirmando que a violência sofrida pelas mulheres é resultado das desigualdades de gênero estabelecidas em nossa sociedade machista, onde as mulheres são consideradas objetos e homens sentem-se proprietários das mesmas. Isso vem se fortalecendo nos últimos anos em todo o Brasil, não tendo sido diferente em Pernambuco, porque o conservadorismo também cresceu aqui, fruto da ausência de políticas públicas para as mulheres, provocando um aumento significativo de feminicídios e outros crimes, como estupro e importunação sexual.
Aliás, o Atlas da Violência de 2023, desenvolvido pelo Fórum Nacional de Segurança Pública e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), constata “que a violência contra a mulher permanece como a mais cruel e evidente manifestação da desigualdade de gênero no Brasil. Uma realidade perversa que muitas famílias vivenciam”. Segundo o Atlas, Pernambuco é considerado um dos estados do país mais violentos para as mulheres. Esse quadro é crescente e pode ser verificado através dos boletins divulgados pela Secretaria de Defesa Social de Pernambuco, segundo os quais entre 2011 e 2022, o número de vítimas de violência doméstica e familiar do sexo feminino no estado cresceu 55,2%, passando de 28.189 para 43.752 casos anuais. Esse número continua aumentando e, entre janeiro e novembro de 2023, a violência contra as mulheres já atingiu 47.125 vítimas, numa média mensal de 4.284 casos.
Esses dados precisam ser encarados pelo Estado Brasileiro, pois é necessário identificar as causas dessa tendência de crescimento, sendo necessário aprofundar algumas questões que já vem sendo apontadas, tais como: (i) a descontinuidade das políticas públicas federais de proteção nos últimos governos e declarações de ódio do ex-presidente da república contra as mulheres; (ii) o crescimento dos crimes de ódio e a utilização das mídias sociais por grupos conservadores de extrema direita para disparar campanhas mentirosas, a exemplo da “ideologia de gênero”; e (iii) a herança histórica das desigualdades entre mulheres e homens, resultante da afirmação contínua de que as mulheres são seres de menor valor e que precisam de um homem para poder viver, não sendo reconhecida sua capacidade intelectual.
Outro aspecto a ser encarado é que, por incrível que pareça, por trás desses alarmantes números da violência contra a mulher há muita subnotificação. De acordo com a Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, do DataSenado, realizada com 21 mil brasileiras maiores de 18 anos, entre agosto e setembro de 2023, 73% delas afirmaram que o medo do agressor faz com que as mesmas não os denunciem. Dentre as entrevistadas, 61% disseram que a dependência financeira é uma situação que as impede de denunciar, pois a falta de uma rede de apoio para conseguirem sair dessa relação violenta faz com que permaneçam em silêncio. Mesmo percentual de mulheres
atribuiu à falta de punição de agressores o motivo para não os denunciarem, enquanto 48% afirmaram que a falta de conhecimento dos seus direitos faz com que não denunciem.
Tem uma frase dita por uma mulher num encontro aqui mesmo em Pernambuco, em Tracunhaém, que gosto muito, que escrevi em meu caderno porque me chamou muito a atenção:
“Só tirando estes crimes da invisibilidade é que poderemos de fato enfrentar essa violência”
Então, em briga de marido e mulher precisamos denunciar, porque o ditado original de que “não se mete a colher” reforça o machismo em nossa sociedade, resulta no aumento dos casos de violência, feminicídios, transfeminicídios e lesbocídios. A partir da minha experiência em acompanhar mulheres vítimas das mais diversas formas de violência até a delegacia, em um município da zona da mata de Pernambuco, durante 4 anos seguidos, as histórias se repetiam: marcas da violência física (olhos roxos, dentes e membros quebrados, hematomas pelo corpo), psicológica (emocionalmente fragilizadas, sem autoestima, achando que o caminho era morrer) e patrimonial (apropriação e destinação do seu ganho em dinheiro fruto do seu trabalho pelo homem). Em geral, afirmavam não ter força para denunciar, nem se separar, por variados motivos, desde a insegurança de não conseguirem sustentar os filhos, até o
receio de terem sua reputação “manchada” junto aos familiares (o que minha família vai dizer?).
Nesse cenário que se mantém comum a muitas mulheres, acredito que precisamos criar condições para que possam, individualmente ou em grupos, como fazíamos no município citado e fazem muitos grupos da sociedade civil, trocar vivências e estudar sobre os direitos, assim se fortalecendo para a denúncia, a busca da autonomia e a ruptura do ciclo de violência. No entanto, essas provocações e reflexões precisam extrapolar os espaços das organizações sociais onde, na grande maioria, as vítimas são acolhidas. Necessitam chegar ao cotidiano da família e da comunidade, perpassando pelas instituições públicas, majoritariamente dirigidas por homens, ricos, brancos e heterossexuais, onde se reproduzem e se propagam as desigualdades. É fundamental que o poder público busque aprimorar essa ação-reflexão como proposta de enfrentamento ao machismo que se estruturado no modelo neoliberal, implementando políticas de enfrentamento passando, necessariamente, pela criação de condições para a denúncia.
*Educadora FASE Pernambuco