06/11/2019 10:52

Fernanda Couzemenco¹

Na terça-feira (28), os boletins oficiais e o noticiário dão conta de que o petróleo cru, que já contaminou mais de dois mil quilômetros de praias do Norte e Nordeste brasileiros, durante os dois últimos meses, avança para o litoral Sudeste, tendo o Espírito Santo como primeiro possível impactado. 

Linhares é um dos municípios que já conta com um comitê de crise instalado, de prontidão para agir no caso de mais uma tragédia consumada em suas águas. A cerca de dez quilômetros do litoral, está a comunidade de Areal, onde vivem cerca de 200 famílias descendentes de índios botocudos. 

Foto: Leonardo Sá

É um dos lugares no Estado onde o impacto visual da indústria petroleira é mais chocante.  E o visual é só a ponta do iceberg, ou melhor, dos profundos poços que escoam sua produção das unidades de Lagoa Parda e Cacimbas e são levados pelos dutos, a partir de Areal, para a Bahia e o Rio de Janeiro. 

É um dos lugares que não deixam dúvidas sobre a característica biocida da indústria petroleira. Onde ela se instala, a vida é expulsa. Quando não é expulsa totalmente, como nas vastas áreas desmatadas e nos cursos d’ água destruídos pelas explosões e contaminações, acontece como em Areal, em que os modos de vida tradicionais são inviabilizados, a identidade cultural é sequestrada e mesmo a sobrevivência se torna frágil, em função da esterilização da terra e das águas, do vazio de equipamentos públicos essenciais e das promessas de emprego e riqueza financeira que nunca se tornam realidade. 

Os dutos da Petrobras que atravessam a pequena Areal estão localizados a poucos metros das casas, no limite com os quintais. “Nós estamos aqui em cima de uma bomba”, sentencia Dona Ilda Sousa de Oliveira, 72 anos. 

Foto: Leonardo Sá

A entrevista se deu há cerca de um ano pela reportagem de Século Diário, com apoio do edital Mais Vida Menos Petróleo, da campanha Nem Um Poço a Mais, encampada pela Federação dos Órgãos de Assistência Social e Educacional (Fase) e dezenas de organizações representativas de comunidades e profissões afetadas diretamente pela indústria petroleira operante no Brasil.  

Outrora uma vasta planície fértil, florestadas, com lagoas – Areal, Boa Vista e Piabanha – e rio piscosos, Areal hoje não tem mais agricultura nem pesca e nem emprego do petróleo. “Não chamam ninguém daqui [pra trabalhar com petróleo]. Só vi duas pessoas trabalharem naquela estação [de Cacimbas]”, relata Jeane da Barcelos, em conversa na varanda de sua casa, onde os dutos separam seu belo quintal florido da rua principal do vilarejo.

Há oito anos, sua filha e outras crianças que brincavam juntas subiram na tubulação e caíram. A filha de Jeane quebrou a clavícula. Relatando o acidente, Jeane enfatiza a inacreditável ausência de um posto de saúde e ambulância na comunidade. “Tem a ambulância deles [da empresa petroleira], mas eles não vêm”, balbucia. 

Foto: Leonardo Sá

A ambulância da prefeitura fica em Regência e, quando acionado, nem sempre chega no tempo urgente necessário. O frete particular, para levar os enfermos e feridos até o hospital na sede de Linhares, a mais de 50 km, costuma custar R$ 150,00. “A gente sempre pede pra consertar a estrada, pra ter ambulância aqui e posto de saúde”, diz, indignada. 

Dona Ilda é categórica: “a Petrobras chegou trazendo a derrota. Eu nasci aqui, me criei aqui e me casei aqui e tive minhas filhas aqui. A Petrobras nunca olhou pra gente. Estamos abandonados”. 

Ao seu lado, uma de suas filhas, Ziza de Oliveira Alves, confirma: “A gente plantava mandioca, abóbora, melancia, muito feijão, muita lavoura. Era uma benção. Mas agora não pode mais plantar”, lamenta. “Cacau colhia quatro, cinco sacos. Hoje nem 10 kg. Agora é tudo na balança”. “Acabou nossa fortaleza, nossa riqueza. Cada dia é um prejuízo. Se esperar a Petrobras …”, diz, sem concluir a frase. 

Foto: Leonardo Sá

Nesse ponto, a conversa deságua para um dos casos mais marcantes na comunidade, que foi a explosão de um poço próximo à escola da vila, no ano de 1983. “Saiu fogo e lama pra todo lado. Matou gente. Primeiro foi a lama. O fogo dava pra ver de Povoação [vila pesqueira à margem esquerda do Rio Doce, a cerca de 20 km). Quando explodiu subiu uma bomba que procuram até hoje. Balançou tudo”, relata a anciã. 

Desde então, o medo de novas explosões é uma constante entre os moradores. Mas a fúria com que os carros das empresas de petróleo passam pela comunidade são uma constante. “Se não sair da frente, eles passam em cima”, reclama. Bem como os pequenos vazamentos. “De vez em quando sai um líquido amarelão que pega fogo”. 

Foto: Leonardo Sá

Suportando a tóxica presença do petróleo durante metade de sua vida, Dona Ilda não tem mais ilusões. “O que a gente espera é a qualquer momento a Petrobras acabar com nós” dispara. “Quando a Petrobras entrou aqui ela trouxe a derrota porque ninguém entendia nada. Ela fez o que fez e fica por isso mesmo”, desabafa. 

Tribunal 

A Campanha Nem Um Poço a Mais realizou, no dia três de outubro último, mais um Tribunal dos impactos do petróleo sobre a Natureza, os Povos e os/as Defensoras, desta vez na cidade de Salvador/BA. 

O Tribunal é realizado desde 2014 na América Latina e é tido como uma ferramenta para fortalecer os processos de resistência. Além do reconhecimento de direitos, a proposta do tribunal é a de tornar visível o trabalho dos defensores, bem com os processos de violações vividos por todos. E a partir daí, buscar alternativas legais e políticas para a sua defesa. 

Foto: Daniel Gomez

Em Salvador, o Tribunal ocorreu dentro da programação do II Intercâmbio Latino Americano de pescadores e pescadoras contra a exploração do mar, no dia 3 de outubro, no Auditório Raul Chaves, na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Após o relato de diversos defensores de direitos convidados, constatou “que há evidências para afirmar que na indústria petrolífera estão configurados crimes contra a vida de pessoas, comunidades e natureza, além de ecocídio, racismo, genocídio, perseguição, estigmatização de defensores”.  

Também concluiu que “a raiz da violência contra as mulheres tem um caráter patriarcal, racista e neoliberal; eles usam a violência social e o feminicídio como um instrumento, especialmente na Colômbia e na Guatemala, que exige mecanismos especiais de proteção” e que “a extração de petróleo afeta os territórios, as relações de vida dentro das comunidades e com a natureza, e os corpos violentados das mulheres, dos homens e dos corpos plurais.

O Tribunal enfatizou ainda que “a extração e o consumo de petróleo são a causa raiz da mudança climática e do aquecimento global, porque estes apoiam todo o modelo energético urbano e agroindustrial”.

As histórias ouvidas, afirma o relatório, “mostram que as comunidades conservam os territórios. A força da espiritualidade e da própria natureza para proteger e proteger-se. A preservação da memória e o reconhecimento da sabedoria dos povos que iluminam as propostas das organizações em nível local, regional e internacional”.

Entre as deliberações, foi determinado que o documento será enviado ao Sínodo Panamazonico e aos delegados que participam na Conferência das partes na Convenção-quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP) a realizar na cidade de Santiago do Chile em dezembro de 2019.

Também se concluir ser necessário continuar fortalecendo as redes de articulação e as campanhas para deixar o petróleo no subsolo e evitar novos poços; bem como promover processos de formação para fortalecer os mecanismos e jornadas comunitárias para a defesa da natureza e os povos afetados ou ameaçados pelas operações petrolíferas, com ênfase especial no reconhecimento e no respeito da espiritualidade ancestral dos povos para a vida. 

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[1] Jornalista do site Século Diário.