20/03/2006 23:05
A Via Campesina Brasil (composta por Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Movimento das Mulheres Camponesas, Movimento dos Pequenos Agricultores e Movimento dos Atingidos por Barragens) tem servido de exemplo internacional de ação coletiva para um novo protagonismo no terreno dos direitos sociais individuais e coletivos. O seu fortalecimento deriva da dinâmica que vem desde baixo na sociedade brasileira, no enfrentamento da matriz colonial-escravista e da forma capitalista selvagem que determinam o modo de produção e reprodução social no Brasil. Como resultado do processo de complexificação dos problemas de nossa sociedade de classes com suas clivagens étnico-raciais, a Via Campesina Brasil tem resgatado as lutas históricas sócio-territoriais pela construção de uma forma organizada de movimento social adequado ao contexto contemporâneo.
Ao ressignificar o interesse coletivo das populações marginalizadas a partir da questão agrária e da função social da propriedade, a Via Campesina Brasil rearticulou a luta pela sobrevivência e para a autonomia destas populações, convidando-as a realizar os objetivos do acesso a terra no processo de democratização substantiva de nossa sociedade. Na defesa da nossa Constituição, ela define pela sua prática a perspectiva necessária de superação das estruturas da desigualdade patrimonial que impedem o fim das desigualdades, a partir da lógica da resistência nos territórios. Através da preocupação de construir cidadania na prática, esse sujeito coletivo da mudança democrática rearticulou os elos de uma cadeia histórica que exige a transformação da necessidade em direitos.
Atualmente, o quadro de conflitos no campo se amplia por força da manutenção das injustiças agravadas pela conexão entre monocultura, agro-exportação, nova latifundização, quimificação, biotecnologização e inserção internacional de caráter mercantilizador neoliberal pela via da subordinação financeirizadora. O custo socioambiental da transferência e da concentração da mais-valia social a partir dos territórios se amplia com a constituição de um enorme precariado urbano. A soma das condições de violência e exclusão institucional no campo, apoiada pelo regime jurídico retrógrado, atenta contra os direitos coletivos, traduzindo-se em cenários e lutas que envolvem populações atingidas pelas fronteiras em expansão da acumulação ilimitada. O que gera a avalassadora fábrica de violações que articula as dinâmicas da mínero-metalurgia, da agropecuária exportadora, dos complexos agro-industriais, do complexo energético, do mercado de terras, todas elas apoiadas por políticas de financiamento, por políticas industriais e de comércio exterior.
O suporte institucional em matéria de políticas de propriedade e opções tecno-científicas se amplia com os recursos políticos da gestão das agências públicas e o apoio da mídia financiada pelo grande capital. O silêncio sobre os direitos e sobre as alternativas produtivas e científicas constitui uma base de apoio sólido para a intenção permanente de criminalizar os sujeitos da emancipação social que, ao defenderem a realização dos direitos constitucionais, são atingidos pelos mecanismos de repressão do Estado. O protesto social legítimo das resistências ao buscar a realização das justas demandas por direitos, de construção da cidadania pelo trabalho através do acesso aos meios de produção social, não atenta contra a propriedade privada, mas contra o modelo monopolista e patrimonialista da herança colonial e das formas autoritárias do capitalismo selvagem. Enquanto fator de uma nova modernidade, a Via Campesina Brasil escreve um capítulo de luta pelos direitos no qual a ação direta civil é um instrumento legítimo e prerrogativa constitucional.
Os aspectos de desobediência e os efeitos predatórios do processo que derivam do quadro emergencial da questão exigem uma prioridade nacional que rompa com as prisões da miséria e as estratégias de genocídio social e da criminalização das classes populares nos territórios da cidade e do campo. Assim como o estatuto da cidade deveria ser aplicado como instrumento de justiciabilidade no espaço urbano, temos a urgência de realizar a função social da propriedade e o artigo 6 da Constituição em todo o território nacional. A exigência de realização dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais precisa ser a norma jurídico-política preferencial de orientação para o uso dos fundos públicos, na qualidade de índices de construção do Estado democrático de direito.
A reparação dos direitos e a sua promoção social nos territórios deveriam ser debatidas a partir da proposta justa e necessária da imediata limitação do latifúndio, condição jurídica e legal para estabelecer a paz no campo.
O processo político da democracia no Brasil tem de avançar na defesa da Constituição, mantendo um ativismo social de promoção ativa dos direitos contra a ilegalidade dos processos de concentração e acumulação selvagem, na qualidade de tarefa chave de uma cultura de direitos que impeça o retrocesso na institucionalidade republicana. O exército e a polícia não podem voltar a ser “capitães do mato”. A justiça não pode defender os grileiros históricos e oligarcas, e o aparato policial-militar não pode se converter em força privada a serviço das corporações agro-industriais. A guerra civil contra os pobres tem de acabar, sem o que a ordem democrática e a legalidade constitucional não se imporá e o império do medo e o Estado de exceção serão a norma jurídica. O excesso de violência é a essência do capitalismo selvagem que sustenta o latifúndio que, ao lado das pseudo-modernizações, nos mantém no terreno do atraso histórico colonial. Está na hora de fazer um acordo político com os movimentos sociais do campo de forma a garantir uma agenda de reforma na escala do problema. A contenção pela criminalização é o terreno mais favorável à barbárie. As liberdades democráticas cobram o seu preço em igualdade, já que justiça é por definição distribuição de renda e poder e oportunidade de bem estar e desenvolvimento integral para todas e todos os cidadãos.
A Via Campesina Brasil, que busca reconstruir e reparar as violências históricas de mais de quinhentos anos de dominação e espoliação na América Latina, deve ser apoiada para garantir a via democrática inscrita nas constituições e nos processos de luta no subcontinente. O quadro de crise social no contexto das novas democracias da América Latina precisa ser superado desde a base da reconstrução de suas lógicas de apropriação dos territórios. Os marcos legais e institucionais do sistema político e da representação e os padrões de desenvolvimento humano sustentável só ganharão sustentação na base do reconhecimento e da prática dos direitos das classes sempre subalternizadas.
Somente pelo estabelecimento de uma esfera pública ampliada pela participação das classes trabalhadoras da cidade e do campo, poderemos construir uma contribuição decisiva para modificar as dinâmicas de desigualdade da globalização. Os movimentos sociais enfrentam hoje as questões não resolvidas ao longo da história, por isso são os referenciais contemporâneos mais significativos para redesenhar o projeto civilizatório nas Américas. O Brasil está no centro desse desejo de mudança que não pode ser frustrado pela reação perversa das elites.