20/10/2006 10:04
Como analisa o quadro político eleitoral depois do primeiro turno?
O primeiro turno teve um quadro marcado por alguns elementos que davam a entender não haver um opositor com capacidade de levar ao segundo turno. Por parte da campanha do Lula havia o fato de que ele tinha o respaldo de uma base eleitoral muito grande e que na falta do opositor poderia ter vencido no primeiro turno. Acredito que tenha sido uma operação eficiente de crítica, ataques, denúncias, uma mobilização muito grande de fatores. Permitiu-se várias operações políticas, a visibilização da Heloísa Helena para além do peso que tinha o PSOL. Tivemos um momento de legitimação do discurso de oposição, e esse discurso tinha que partir da dissidência do PT, que não fazia uma avaliação do governo, mas dos erros do governo. Um segundo elemento da tática oposicionista faz uma conversão gradual em torno da candidatura do Alckmin, que de alguma forma se beneficia da situação de impossibilidade do PMDB apoiar o Lula, isso criou um certo dinamismo de disputa do centro e dos apoios políticos, rachando em parte a base governista que já vinha minada por denúncias. Um complemento dessa operação ainda se deu com a entrada do Cristovam Buarque em cena, o que também diminuiu o espectro partidário e trouxe mais um ingrediente, ele entrou como candidato que pleiteava que no Brasil se realizasse o segundo turno. Eu diria que além disso, o fato da desigualdade da distribuição dos votos no primeiro turno demonstrou que o governo Lula tinha se dirigido mais às populações mais pobres, ao interior, aos bolsões de miséria, que tinha feito uma colagem sólida. O primeiro turno indicou que Lula tem uma base sólida, mas nos lugares onde suas quase políticas não têm o mesmo impacto existe um campo de disputa. Mas havia áreas ligadas ao problema dos efeitos do desenvolvimento do agrobusiness, os efeitos da seca, as grandes propriedades do sul e do centro-oeste. Além disso houve a operação que garantiu uma retaguarda sólida em São Paulo, que tirou o candidato mais capacitado da disputa, que seria o Serra, que poderia de fato produzir mais contestação e aparecer melhor como oposição, mas ele ficou garantindo São Paulo. Ao colocar o seu melhor nome para garantir São Paulo, o PSDB garantiu que São Paulo viesse com um peso relevante no desenho eleitoral, a base mais sólida do candidato Alckmin. No entanto, se criou um ambiente que deu iniciativa à operação de desgaste, que teve como capítulo final essa combinação de banditismo, denuncismo, artimanhas, tudo em torno do caso do dossiê, que junta os elementos de esperteza da campanha oposicionista e uma capacidade de manejo e interação ativa com a mídia, que mais uma vez funcionou. Ao lado disso, o Lula estava numa posição mais defensiva no primeiro turno, esperando, para manter o fôlego do embate. Uma vitória muito pequena poderia permitir a constituiução de uma situação polarizada ainda mais forte do que temos. A oepração de segundo turno por parte do PSDB tem características venezuelanas, com a agregação da classe média, denúncias das características de um governo mais aparelhista, e há uma crítica às prioridades adotadas, mas uma crítica mediada pelo discurso da moralidade que produziu o seu desgaste. Na realidade, o susto das urnas não foi sobre o PT, foi sobre o eleitorado, nas pessoas que começaram a refletir sobre perdas e ganhos. Produziu também uma percepção em grande número de pessoas que tinha votado para criticar o Lula, querendo que ele pagasse pelos desmandos, equívocos, etc. Então o segundo turno já entra com outras características, porque mostra que o Lula tem uma base social popular. Ele demonstra que as quase políticas do governo beneficiaram setores populares, que apesar do governo não ter rompido com a blindagem macroeconômica, ele produziu um efeito ambivalente em matéria de políticas sociais e distributivas. Ao mesmo tempo, se beneficia do fato de que se mantiveram efeitos como o controle inflacionário. A soma desses ingredientes e ao mesmo tempo o estilo de radicalizaçao verbal e denuncismo acabou revelando uma fraqueza, não mais do Lula mas da inexistência de um programa alternativo por parte da direita. Por que não tem? Porque a direita não pode assumir suas bandeiras mais radicais por serem antipopulares. A radicalidade oposicionista que não tem consistência real, pois o país não tem desabastecimento, as elites não estão perdendo e por isso a radicalização não gera uma mobilização e sim um forte preconceito. Isso não impediu o início de uma mobilização e uma desconfiança por parte do eleitorado pelo modo como se organizou o ambiente de informação; e aí eu diria que os elementos moleculares difusos passaram a ganhar peso do ponto de vista do eleitorado. A identificação com o Lula, em vez de ter diminuído, se acentuou com a onda de preconceitos. Não quer dizer que isso vá se resolver de maneira simples, pode haver uma nova operação de criar fato, jogar uma casca de banana.
Fala-se num “terceiro turno”, em referência à ação no no TSE relativa ao caso do dossiê.
A política contemporânea tem três características. Ela é marcada por uma série de problemas de representação, pela constituição da política como mercado e espetáculo e de judicialização da vida cívica. Assim como você tem a privatização do público, tem também a judicialização do político e a espetacularização da forma imagética e do estilo da política. Esses elementos correspondem a dinâmicas de poder. Uma dinâmica de poder globalista que desestrutura o espaço nacional da política e corresponde a uma privatização dos fluxos e ainda gera e acentua fenômenos mórbidos dentre os quais a corrupção e o aparelhismo. E há a emergência de modos de fazer política e de políticos que são comunicadores, pastores, assistencialistas, administradores. E além disso, a estrutura do Presidencialismo e do Legislativo têm como marca chantagear com o orçamento, e não se tem facilidade para uma estratégia plebiscitária que levasse à dissolução do Congresso, pois isso seria golpismo. Uma das características da sociedade é a fragmentação atravessada por individualismo e desigualdade, e a Constituição vive uma crise (ela é programática para o bem estar mas as políticas são ultraliberais). Isso força um conflito jurídico. Cidadão vira consumidor, uma fragmentação de interesses. Por outro lado, em função dos conflitos que se geram por força da desigualdade e da violência na sociedade, existe uma demanda por ordem. E por força do tipo de composição que se dá nos tribunais superiores e por força de múltiplas pressões sofridas pela nova autonomia do Ministério Público, você tem aspectos contraditórios na relação entre o MP e o Judiciário, que rebatem por exemplo no Tribunal Superior Eleitoral. Este, por exemplo, participou do mesmo processo no primeiro turno ao dizer que estava sofrendo escuta telefônica sem desmentir à mesma altura e sem a imprensa dar o mesmo destaque que deu à questão. Cada nova CPI deixa de lado o fundamental, pois deixou lá atrás o desdobramento das CPIs do Banestado e do crime organizado, que seriam as CPIs chave para definir os problemas reais que se configuraram depois. E aí a culpa no cartório do antigo centro político é maior do que a culpa do novo centro petista, o que não exime o PT da responsabilidade de ambivalência com esse processo. Mas essas coisas ganharam muita força, dando legitimidade relativa à autonomia da magistratura. O que permite falar o seguinte: no pós Guerra Fria, quando você não tem um cenário de intervenção estrangeira, de colapso econômico absoluto e você tem uma sociedade fragmentada, e com instituições formadas, então o golpe principal é o golpe institucional. A tendência da judicialização é de transcender o conflito entre partidos, e pela dinâmica do espetáculo midiático cria-se a cada dia um fato que é mais importante do que o anterior. Ninguém fala das contas do Duda Mendonça nas Ilhas Cayman, porque senão vamos pegar todo espectro de classes que apóiam o Alckmin. Por que não se foi aos paraísos fiscais, às contas CC-5? Tem uma explicação de por que não se mantém a memória da estrutura da corruptibilidade. Onde se lava dinheiro? Fala-se do doleiro tal mas não se fala porque tem tantos doleiros. Se estudarmos todos esses processos que permitem mapeamento, nós tivemos até um salto de qualidade em termos da possibilidade de discutir essa intransparência do capital financeiro. E assim você tem uma operação seletiva orientada para criminalização do Lula e do PT. Atos criminosos existem e existiram, mas esse processo de criminalização é criminalização simbólica, do centro da credibilidade política. Essas tendências produzem a despolitização do mundo. Exemplos: o eleitorado inglês em relação ao Blair, os problemas da eleição do Bush, os escândalos corporativos, para não falar em processos mais graves no leste europeu e nos processos do Berlusconi. Existe uma tendência à exceção, a produzir uma situação em que o direito ocupa o espaço da plena coerção. A idéia de uma solução penalista e carcerária não dá conta do objeto sócio-criminal de larga escala e a complexidade das situações de massificação da criminalização. Todos esses elementos vão fazer a oposição relacionar a criminalização do presidente com a judicialização dos mecanismos para produzir um contexto atual ou futuro de impeachment já declarado essa semana pelo Alckmin. O Lula não tem a maioria no sentido de 80% da população, mas o que temos é um contexto que se converteu plebiscitário com um voto majoritário popular e de classe no Lula que permite a ele ter uma expressão eleitoral provisória, das pesquisas, para ganhar. Então, a eleição adquire a feição dos grandes processos de polarização de grande aquecimento subjetivo. Só que isso está combinado com uma situação inteiramente nova, que é a capacidade de leitura do eleitorado molecularmente. Tanto a direita quanto a esquerda, o eleitorado em geral, participa de redes formais e informais de conversa na rua, leitura de jornal, conversa na internet, de programa de rádio, de conversa na igreja. E passa a haver uma situação que desconfia da justificação e legitimação golpista a partir do inchaço de um problema que se torna um factóide. O efeito paradoxal nesse processo é que os melhores elementos do PT surgiram à tona. Então, de certa forma, o risco da oposição é se perder na lógica de sapador, num ethos golpista mas, ao mesmo tempo, sem força e sem legitimidade para o golpe. A sua força e legitimidade, quando não tem uma liderança alternativa, está na destruição da credibilidade do outro. Mas esse processo na história brasileira produziu resultados terríveis. Todos os presidentes que foram forçados a sofrer esses processos entraram para a História numa chave positiva. Não estou falando do Getúlio ditador, mas do Getúlio eleito. O Juscelino e o Jango sofreram as acusações centrais de corrupção, manipulação de poder etc. A lição da História é que o crime cometido para combater essas ações foi maior do que o crime que essas ações tinham perpetrado. O que surpreendeu a todos, e faz uma marca fundamental na sociedade brasileira, é que também não se esperava tamanho retorno do preconceito social de classe. O que mostra que há intolerância brutal contra a mobilidade social. A coisa mais positiva do capitalismo brasileiro, que foi ter gerado um conflito democratizador que leva a um presidente proletário, esse fator ainda não é engolido. Isso torna o Lula, independemente de acertos ou erros, um fator a ser defendido em função da onda de preconceito e da onda de ataques. Isso trouxe uma carga simbólica ao processo que adiciona uma reconstrução carismática do Lula à experiência de governo e às quase políticas. Ou seja, num paradoxo, a direita produz carisma para quadros assim, e nesse sentido produz uma certa ativação da reidentifcação e produziu um certo ativismo na discussão. A sociedade está produzindo uma leitura extremamente complexa do momento e está dando grandes lições. Principalmente de que não se ganha mais o processo na lógica molar, a lógica de blocos. Dirceu ia fazer um bloco para o Lula governar durante vinte anos, quebrou. O Fernando Henrique ia fazer um bloco da grande burguesia associada que iria governar o Brasil a partir de São Paulo, não governa. São Paulo não impõe uma lógica prussiana, maior, ao Brasil. O Brasil é maior do que São Paulo e São Paulo tem vários Brasis dentro de si. Aí Minas aparece, Rio, Nordeste, aparecem as complexidades regionais, o Brasil aparece nas suas regionalidades, nas suas cidades, no interior, nas suas classes sociais. O Brasil aparece, portanto, em muitos mapas, recortes cartografias, expressões, identidades, ganha complexidade, aparece na sua multiplicidade, na sua diversidade, na sua desigualdade. Aí a agenda é dada por esse Brasil. A questão é saber se o governo Lula vai aprofundar essas transformações ou se ficará prisioneiro desse ataque. O Lula depende de uma colagem mais próxima no ativismo social, de uma transparência maior das estratégias de poder, de uma mudança nos mecanismos institucionais. No plano do racional, a polêmica está clara: criminalizar o Lula e fazer a análise comparativa. O Alckmin vem pela criminalização e o Lula vem pela comparação. Do ponto de vista da irracionalidade e da paixão política, existe um efeito de reação por parte dos segmentos que têm recuros mais tradicionais e mais frágeis, como movimentos sociais e comunidades beneficiadas. Mas foi tal a escala de experiência social e política nos últimos anos, de conversas e compreensão do papel do Estado, que a eleição agora tem esse lado plebiscitário, mas também tem o lado qualificado, em que o puro embate molar se converte também numa dinâmica molecular de discussão de uma cultura política. Qualquer que seja o resultado da eleição, a sociedade brasileira vai discutir um elemento da política após as eleições. Se o ativismo social avançar, esse elemento vai gerar pressões por reformas políticas e sociais. Se não avançar, vão haver as contra-reformas de mercado, a judicialização da política e os elementos de exceção. O cenário provável é um resultado dessas múltiplas tramas, o que significa que vamos ter um prolongamento de crise de longos anos.