30/08/2019 15:33
Mídia Ninja¹
O Brasil vive um momento crítico com relação às políticas ambientais: desmonte nos órgãos de fiscalização e acompanhamento do desmatamento, grandes queimadas, um ministério que não contribui para o combate aos problemas, perdeu fundos internacionais importantes para manutenção de programas e que está aliado a interesses da bancada ruralista. O mundo inteiro está com os olhos voltados para essa situação, que a cada dia se torna mais assustadora. Atos em defesa da Amazônia estão sendo organizados e uma grande mobilização pela saída do ministro Ricardo Salles da pasta está se formando, com um pedido de impeachment protocolado, no dia 22 de agosto, pelos senadores Randolfe Rodrigues e Fabiano Contarato e pela deputada federal Joênia Wapichana no Supremo Tribunal Federal (STF).
Conversamos com Letícia Turra, da FASE, que nos contou um pouco sobre o histórico do desmatamento na Amazônia, das políticas que foram construídas em formação, capacitação das populações e de órgãos de fiscalização para cuidarem da floresta, dos investimentos nacionais e internacionais realizados e que estão ruindo atualmente.
Além de compor a diretora executiva da FASE, Letícia também integra o núcleo executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), o Grupo Carta de Belém – que acompanha a questão climática – e é membro da Comissão Nacional para REDD+ (CONAREDD+), uma comissão de governança nacional de um mecanismo internacional para a prevenção do desmatamento e degradação, conforme previsto na Convenção do Clima. A FASE é uma entidade fundada em 1961, portanto tem mais de 57 anos, com seis programas regionais, atuando com projetos de agroecologia, fortalecimento de populações tradicionais e camponesas, defesa de direitos e justiça ambiental, além de construção de política públicas e articulação de sujeitos.
Letícia relaciona o aumento da devastação com o aumento da violência no campo e na floresta e a perseguição aos povos tradicionais com a atividade agrícola. Confira:
“Acho que uma das primeiras coisas a se colocar é que o desmatamento na Amazônia começa a crescer desde os anos 70, a partir da abertura de estradas na Amazônia e também das ondas de migração. E que isso levou então à abertura de áreas, ao longo das rodovias para atividade agrícola, fundamentalmente a atividade pecuária.
A partir do final dos anos 90 até início dos anos 2000, acontece um pico muito grande do desmatamento na Amazônia, e não era somente ao entorno das rodovias, chegando às áreas mais remotas da Amazônia, e com cada vez com mais tecnologia.
Imagens de satélites, as possibilidades também de locomoção, de comunicação, foram permitindo que o desmatamento fosse chegando cada vez mais a áreas remotas, que não se chegava em outros períodos, ameaçando unidades de conservação.
Um ponto a se destacar é que junto com o desmatamento chega também o aumento da violência no campo. Se pegarmos os dados de conflitos de violência da Comissão da Pastoral da Terra (CPT), é possível observar o crescimento da violência e do desmatamento.
Fizemos uma campanha através do Fórum da Amazônia Oriental ‘Na floresta tem direitos. Justiça ambiental na Amazônia’, porque queríamos mostrar que uma das consequências também era o ataque aos direitos dos povos e populações tradicionais, povos indígenas e camponesas da região. Desde então, se luta na região pela constituição e fortalecimento de políticas públicas de combate ao desmatamento, entendendo antes de tudo que o combate ao desmatamento se faz com o fortalecimento das populações que estão no campo, que vivem na floresta, e que vivem da floresta há muito tempo. Foram propostas baseadas na agroecologia e na segurança alimentar, no manejo florestal sustentável da biodiversidade, na construção de circuitos curtos de comercialização, e baseada também em muitas atividades de formação.
Estas lutas resultaram na conquista de ações governamentais de formação e capacitação para combate ao fogo, cursos em lugares de difícil acesso; o fortalecimento das áreas de monitoramento e controle como, por exemplo, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Esse processo visava não a política de controle, de multa, mas de capacitação, de pensar alternativas para a região.
Em 2004 se constrói um programa, o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), um programa de prevenção e controle do desmatamento na Amazônia, que foi construído com a participação de diferentes setores da sociedade civil, buscando fazer um planejamento, articular essa região. Foram abertos muitos concursos públicos. Foi investido muito recurso para fortalecer essas ações. E isso trouxe reconhecimento para o Brasil internacionalmente, pelos sistemas de monitoramento, de proposição, por toda sua base científica que está no INPE, que está no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).
Toda essa institucionalidade se fortaleceu com diferentes setores da sociedade civil. Não é uma ‘coisa de ONG’, é de várias organizações, de diferentes setores, da sociedade amazônica e nacional, e também internacional.
Na era Temer, inicia-se um processo de desconstrução a partir da redução dos gastos públicos. Nem todas as áreas são cortadas da mesma forma, então os cortes vão sendo direcionados para a área ambiental, a área da agricultura familiar, de povos e populações tradicionais. Em contrapartida, vemos os recursos destinados para o agronegócio crescendo, num país que já tem muita desigualdade e programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER), sendo cortados. E com isso diminui a fiscalização. Na região amazônica, fiscalizar significa muito investimento. Porque você precisa ter não só uma equipe grande, mas transporte. Precisa ter diferentes instrumentos além de toda uma rede da própria população. Ela é a primeira barreira para o desmatamento. Quando essas populações começam a ser ameaçadas, também a floresta começa a ser. Por isso a importância de políticas como o PAA, o PNAE, a PNATER e a Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial em Áreas Indígenas (PNGATI).
No governo Bolsonaro, começamos ver uma destruição da institucionalidade ambiental. O desmonte do Ibama, que teve redução em 70% de suas ações. A perda de secretarias importantes, como a que cuidava do PPCDAm, a desconstrução do ICMBIO, do INPE, de políticas. E vemos, por exemplo, por outro lado, a redução no ritmo das multas aplicadas. Você tem autorização do comando mais alto do país ao desmatamento.
Tem uma questão também, que é mais técnica, que leva a esse crescimento do desmatamento: a floresta Amazônica é bastante sensível, é uma floresta tropical. O desmatamento a deixa mais frágil e as intempéries climáticas começam a fazer com que as árvores sejam mais facilmente derrubadas. E por outro lado, nós temos sempre na região períodos de muita chuva e períodos de seca. E nós estamos exatamente no período de seca. Então o fogo pega muito fácil e facilita as queimadas criminosas. E lembrando também que há populações que vivem nessa floresta, que tem cidades que vivem no entorno dessa floresta, então nós estamos falando também de vidas.
Paralelamente a isso tudo que estamos vivendo no Brasil, estamos também sofrendo com o ataque ao Fundo Amazônia. Estamos falando de dificuldade do Estado em ter recursos para executar políticas, e o Estado Brasileiro simplesmente abre mão dos recursos do Fundo Amazônia. Em sua maioria, o Fundo era destinado para órgãos governamentais. A menor parte dos recursos ia para ONGs, outra parte ia para o Corpo de Bombeiros. Estão sendo jogados no lixo mais de 20 anos de investimento do país, recursos de fundos públicos, nacionais e internacionais, para capacitar as pessoas, sistemas de monitoramento, de construção de um marco legal. E tudo isso terá graves consequências para o país.”
[1] Entrevista publicada originalmente no site Mídia Ninja.