02/07/2018 14:34

Foto: André Antunes

André Antunes¹

Os impactos e a resistência ao Matopiba foram tema de um seminário durante o IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA)². Coordenado por Maria Emilia Pacheco, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e da FASE, o debate reuniu pesquisadores, integrantes de organizações da sociedade civil e representantes de comunidades tradicionais do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, os quatro estados afetados pelo Plano de Desenvolvimento Agropecuário do Matopiba.

O plano foi criado em 2015 pelo governo federal para promover e coordenar políticas públicas voltadas ao desenvolvimento do agronegócio em uma área que abrange 143 milhões de hectares ao longo dos quatro estados, 90% dos quais pertencentes ao bioma Cerrado. Grilagem de terras, aumento dos conflitos e da violência no campo, diminuição do volume de água dos lençóis freáticos e dos rios, impactos nos modos de vida das comunidades tradicionais; aumento do desmatamento e envenenamento das águas e impactos na saúde pelo uso intensivo dos agrotóxicos foram alguns dos impactos relatados pelas comunidades, na esteira da implantação do Matopiba.

Matopiba e Código Florestal

Marcela Vecchioni, professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), ressaltou a relação da criação do Plano de Desenvolvimento Agropecuário do Matopiba com um processo de flexibilização da legislação ambiental que vem se dando ao longo dos últimos anos, com destaque para a aprovação do novo Código Florestal, em 2012. A expansão do monocultivo na região, segundo ela, foi pensada em consonância com as mudanças na legislação ambiental promovida pelo Código. Ela exemplificou com um relato de uma caravana realizada no sudoeste do Piauí como parte da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado. Cerca de 35% do território do Piauí faz parte do Matopiba.

“Essa caravana foi realizada sob forte demanda das comunidades locais dessa região. A missão foi fazer uma de verificação de violação de direitos humanos e territoriais na esteira da implantação do Matopiba”, explicou Marcela. Nessa região, a caravana identificou que um dos instrumentos criados pelo Código Florestal, o Cadastro Ambiental Rural (CAR), vem sendo utilizado por grandes proprietários para declarar como Reserva Legal áreas ocupadas por comunidades tradicionais. “Os proprietários não têm a quantidade de área de reserva legal que precisam ter para sua propriedade estar regular ambientalmente. Então eles vão e fazem o CAR, que é o principal instrumento criado pelo novo Código Florestal. Ele é autodeclaratório, feito pela internet sem a necessidade de comprovação documental da área. Então, tem áreas de reserva legal declaradas que estão em cima de comunidades extrativistas, que em sua maioria não têm títulos de terras. Mas elas existem. Estão ali”, criticou Marcela. “É uma grilagem digital”, completou.

Esse foi o caso da comunidade extrativista de Melancias, cuja área, que abriga a nascente do rio Urussuí Preto, foi declarada como reserva legal por grandes proprietários ligados ao monocultivo da soja na região. Segundo Marcela, a área de chapada onde está localizada a comunidade é uma área de recarga de aquíferos a partir da água da chuva. “A água que a comunidade usa para o plantio está alaranjada, completamente contaminada. Tudo por pulverização aérea”, ressaltou a professora da UFPA. “Acaba sendo uma expropriação violenta de terras dessas comunidades, uma expropriação feita de forma indireta. O forte uso dos agrotóxicos pelos produtores de soja acaba expulsando comunidades de suas áreas de vivência. A água e o solo estão contaminados, e as pessoas estão ficando doentes em última instância”, disse.

Cartografia social como estratégia de resistência

Foto: André Antunes

Integrante da Associação para os Pequenos Produtores de Tocantins (Apató), Paulo Gonçalves relata que a grilagem de terras das comunidades tradicionais é uma realidade no estado há décadas. Uma iniciativa da Apató em diálogo com as comunidades para resistir a esse processo tem sido a utilização da cartografia social para fazer o mapeamento dos territórios ocupados por elas e um registro das tentativas de grilagem capitaneadas pelo agronegócio.

“Essa cartografia tem sido fundamental para caracterizar os territórios das comunidades, seus modos de vida, de produção, suas lutas e conflitos. O Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] no Tocantins, inclusive, acata esses documentos nos processos de regularização fundiária, e com isso a gente ganha um tempo. Mas o tempo é extremamente lento no Incra, e enquanto isso ocorrem invasões”, lamenta Paulo. Ele destaca que o saber tradicional das comunidades tem sido essencial na construção das estratégia de resistência. “Essas comunidades vivem lá há décadas, aliando seus sistemas de produção tradicionais, nas roças de vazante, por exemplo, com o extrativismo e com o gado criado na solta. E com isso conseguem manter o Cerrado vivo, a natureza continua existindo , se recuperando e as comunidades produzindo e comercializando sua produção”, destaca.

Evandro Moura Dias, da comunidade quilombola de Cágados, no Tocantins, conta que, por conta disso, as áreas do estado mais bem preservadas se encontram nas comunidades quilombolas. “O Matopiba vem de certa forma retirando as comunidades de seus territórios. A minha comunidade foi praticamente toda invadida, o que tem dificultado o extrativismo, o plantio, a caça e a pesca que realizamos historicamente”, relata. Ele destaca o trabalho junto à Apató como importante estratégia de empoderamento das comunidades, que passam a conhecer melhor seus próprios territórios. “Isso que está acontecendo no Tocantins acontece no Brasil inteiro. Precisamos de unidade. A luta não tem sido fácil”, disse Evandro.

Campanha em Defesa do Cerrado

Diana Aguiar, da FASE, destacou o papel que a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, que reúne mais de 40 organizações da sociedade civil e é coordenada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), vem tendo na articulação dos movimentos e comunidades que resistem ao Matopiba. 90% do território do Matopiba pertence ao bioma Cerrado. “O que a campanha se propõe a fazer é mostrar que o Cerrado não é ecologicamente pobre, muito menos um celeiro para a produção de grãos para exportação. O Cerrado é a savana mais rica em biodiversidade do mundo, e abriga uma diversidade de povos tradicionais que seguem modos de vida e produção próprios: indígenas, quilombolas, vazenteiros, quebradeiras de coco babaçu”, disse Diana, que lembrou ainda do papel das árvores do Cerrado na filtração de água da chuva e no abastecimento de aquíferos, como o Guarani, que alimenta os rios Paraná, São Francisco e Amazonas.  “O desmatamento do Cerrado gera a destruição deste sistema de captação de água”, alerta.

Uma das frentes da campanha é a mobilização pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição 504/2010, que torna o Cerrado um patrimônio nacional. “Se ela for aprovado, o nível de proteção ambiental sobre o Cerrado aumenta. Essa é uma luta importante”, afirmou Diana. Nesse sentido, há uma petição online lançada pela Campanha que coleta assinaturas pedindo a aprovação da PEC. A Campanha também tem procurado fortalecer os laços com movimentos de países que têm sofrido com as consequências da expansão do agronegócio, na América Latina e na África, como o caso de Moçambique, cujas populações sofrem hoje com os efeitos da implantação do ProSavana, programa de cooperação entre Brasil, Japão e Moçambique, que de forma similar ao Matopiba procura expandir o modelo do agronegócio para a savana africana. “Temos povos irmãos que enfrentam dinâmicas similares, que enfrentam a expansão do agronegócio de origem brasileira. Por isso é necessária uma articulação cada vez maior”, reiterou.

Foto: André Antunes

Além das fronteiras nacionais

Para ilustrar o quadro relatado por Diana, o seminário também trouxe uma denúncia internacional dos efeitos da expansão do agronegócio a partir do Brasil. Andrea Garcia, do Paraguai, falou sobre o cenário de avanço do agronegócio no país após o golpe parlamentar que destituiu o ex-presidente Fernando Lugo em 2012. “Desde a saída do Lugo foram liberadas 22 sementes transgênicas no Paraguai. Há um poder muito grande hoje das empresas do agronegócio sobre o governo do país”, denunciou.

Segundo Andrea, 90% da produção agrícola do Paraguai hoje é feita a partir de sementes transgênicas. Três quartos das áreas agricultáveis do país abrigam plantios transgênicos. “O que sobra é para plantar o que comemos todos os dias”, criticou. Além disso, de 2009 a 2017 houve um aumento exponencial no consumo de agrotóxicos no Paraguai, de 6 milhões de litros para 32 milhões. “O mesmo se deu com os inseticidas, fungicidas”, lamentou. Como consequência, continuou Andreia, o Chaco paraguaio vem sofrendo com taxas de desmatamento que nos últimos 20 anos chegam a 180 mil hectares ao ano. “É muito. São 27 hectares por hora”, explicou. Mais de 19% da terra do Paraguai, segundo ela, é ocupada por estrangeiros, sobretudo brasileiros. “Ali não entra mão de obra familiar, só maquinários”, relatou, complementando em seguida: “Meu país se converteu em uma empresa de produção transgênica”.

[1] Jornalista da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. Matéria publicada originalmente aqui.

[2] O IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), realizado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), ocorreu em Belo Horizonte de 31 de maio a 3 de junho.