14/09/2007 09:42
Fausto Oliveira
Poucas semanas depois que os indígenas do Espírito Santo conseguiram o reconhecimento oficial de seu direito à posse de 11.009 hectares de terra ocupados indevidamente pela multinacional Aracruz Celulose, o debate sobre a questão fundiária naquele estado anda a largos passos. Apenas nesta semana, dois eventos trataram do tema em plena sede do poder legislativo capixaba, a Assembléia Legislativa. Em um deles, quilombolas da região norte do ES debateram com deputados, sociedade civil e fazendeiros a questão de sua ocupação tradicional da região conhecida como Sapê do Norte. O outro evento é um seminário que traz pesquisadores para falar da concentração fundiária no estado, suas origens, as distorções que provoca e as perspectivas de uma reforma agrária que garanta o direito a terra às populações tradicionais e aos pequenos agricultores que se recusam a deixar o campo em troca de uma vida incerta nas grandes cidades.
O primeiro destes eventos, que tratou exclusivamente da questão dos quilombolas, foi tenso. Uma comitiva de fazendeiros uniformizados fez grande número no plenário da Assembléia Legislativa. Se não chegou a haver intimidações ou violências, os quilombolas sentiram que seu direito ainda é afrontado por interesses mesquinhos de vários atores do cenário rural capixaba. Especialmente agora, quando o Incra reconheceu oficialmente uma das comunidades (Linharinho) como dona legítima de uma faixa de terra também ocupada pela Aracruz.
Sobre isso, contudo, o próprio Incra declarou novamente o direito das comunidades tradicionais do Sapê do Norte. O superintendente do Incra estadual, Jerônimo Brumatii, afirmou publicamente que a comunidade de Linharinho vai entrar em processo de demarcação fundiária em outubro. Ele previu que até o fim do ano a demarcação estará completa, faltando apenas a titulação definitiva, nos moldes do decreto presidencial de 2003 que regulamentou a forma de instituir terras quilombolas no país.
Este decreto presidencial de 2003 é alvo de constantes golpes da parte de ruralistas e grandes empresas que tentam abocanhar fatias escandalosamente grandes do território brasileiro. Trata-se de uma norma estabelecida pelo governo federal para regulamentar o que a Constituição de 1988 previa nas suas disposições transitórias. Sem o decreto, o direito quilombola aos territórios tradicionais ficava no papel, como ficou de 1988 a 2003. Como afeta interesses monumentais, o decreto tem sido objeto de campanhas difamatórias das antigas oligarquias rurais e das novas grandes corporações que dependem de chão para produzir, como a Aracruz Celulose, que fez-se “dona” de gigantescas porções de terra e plantou a monocultura de eucalipto. “Eles continuam agindo para derrubar o decreto”, afirma Daniela Meirelles, educadora da FASE – Espírito Santo.
Já o seminário “Terra e a questão fundiária: entraves, desafios e perspectivas” acontece nesta sexta-feira. A audiência é formada por movimentos sociais do campo, como o Movimento dos Sem Terra e o Movimento dos Pequenos Agricultores, além de representantes das numerosas comunidades indígenas e quilombolas do estado. Como participante da luta pelo reconhecimento dos direitos ao território destes povos e defensora da reforma agrária no estado, a FASE Espírito Santo também está presente.
Este evento tem um caráter mais didático e informativo. No centro das discussões, está a brutal concentração fundiária verificada tanto na realidade do Espírito Santo como no resto do Brasil. Um dos pesquisadores participantes, o geógrafo Paulo Scarin, fez uma exposição que derrubou alguns mitos com relação ao desenvolvimento do estado. Segundo Daniela “há duas versões usadas para justificar a instalação de grandes complexos industriais e agrícolas no Espírito Santo, uma fala do ‘atraso’ do estado, e a outra, do ‘grande vazio’ que existia antes das indústrias”. O professor Scarin, que dá aulas na Universidade Federal do Espírito Santo, desmontou as duas falácias.
“Ele demonstrou que hoje sim há um grande vazio no campo. Até os anos de 1960, havia grande presença humana e diversificação da produção agrícola no meio rural capixaba. É a chegada das grandes indústrias e a concentração fundiária que esvaziam o campo. Porém, empresas de consultoria, aliadas à federação das indústrias do Espírito Santo e a ministros da ditadura militar, montaram essa farsa do grande vazio. Hoje sim, o campo está bem mais vazio, depois de décadas de êxodo e uso insustentável da terra e dos recursos naturais. Hoje, os lugares com maior concentração fundiária no Espírito Santo são aqueles onde há a monocultura do eucalipto”, relata Daniela Meirelles.