21/06/2016 15:54
Gilka Resende¹
Em meio à crise no país, a experiência de uma cooperativa na Bahia inspira e anuncia uma nova economia. Rosélia Batista, do programa da FASE no estado, explica que a instituição gera valores para além dos financeiros, como a solidariedade e a comercialização justa. “Estamos trabalhando o cooperativismo”, ressalta. A ideia é permitir uma melhoria de vida, com autonomia no trabalho, e o cultivo de alimentos realmente saudáveis. No meio do caminho, muito se debate sobre direitos, meio ambiente e o combate ao uso de agrotóxicos.
Nesta entrevista, Rosélia conta um pouco da recente história da Cooperativa dos Trabalhadores na Agricultura Familiar, Economia Solidária e Sustentável dos Municípios de Mutuípe e do Vale do Jiquiriçá (Coopeípe)² e revela que, mesmo diante de dificuldades, a organização popular permanece sendo um caminho gerador de histórias reais e transformadoras.
Você está auxiliando famílias agricultoras a conhecerem melhor o cooperativismo. Como surgiu essa necessidade? Qual seria o papel da FASE nesse processo?
No final de 2014, um grupo que agricultores e de agricultoras do município de Mutuípe constituiu uma cooperativa. A partir de 2015, a gente começa intensificar nossos trabalhos em relação à comercialização. Aí, nesse contexto, eles falaram da cooperativa para a FASE. Explicaram que ela já existia, mas que estava com ‘problemas para engatar’. Com isso, a gente se voltou, dentre outros trabalhos, para isso. Os educadores da FASE passaram a participar do processo de formalização da instituição, mas foi algo que surgiu a partir de uma demanda deles. A gente, de início, pensava em apoiar a construção de duas cooperativas, uma no Vale do Jiquiriçá e outra no Baixo Sul [regiões onde atua o programa da FASE na Bahia]. Depois de diversas conversas, percebemos juntos que não seria interessante dividir energia. Optamos, então, por assessorar a construção de uma cooperativa que atendesse aos dois territórios. Assim, a Coopeípe foi se fortalecendo.
Houve um incentivo a um processo de participação popular?
Exatamente. Agora estamos trabalhando principalmente na organização da documentação, na legalização e ajudando na gestão. Esse último ponto se mostra como um grande gargalo, já que as famílias agricultoras não têm experiência em administrar uma cooperativa. Essa é a primeira iniciativa que eles participam. Hoje, já são 48 cooperados. Faz parte debater nas comunidades, que estão em oito diferentes municípios dos dois territórios, o que significa construir essa cooperativa.
E que significado é esse? Por qual motivo é estratégico ter uma cooperativa organizada pelos próprios agricultores e agricultoras?
Os agricultores sempre produziram alimentos, mas eram as pessoas de fora que davam preço a essa produção. Tipo assim: se o agricultor produz cacau, na hora de comercializar alguém chegava e dizia: ‘dou tantos reais na saca’. Então, nesse contexto, qual é o objetivo da cooperativa? Organizar famílias e grupos, como associações e outras figuras jurídicas. Com isso, queremos que quem cultiva possa conseguir dizer qual é o preço ideal do seu produto. Para isso, a FASE está trabalhando junto com os cooperados a questão dos estudos de viabilidade, a formação de preços, tudo para que consigam chegar a preços justos.
Mais que financeiros, quais são os valores envolvidos na cooperativa?
A questão é chegar a um valor que possa pagar os custos de produção, ressarcir justamente as horas de trabalho e que não venha a prejudicar quem está consumindo. Que seja, um preço justo para os dois lados.
Essa justiça também se dá na qualidade dos alimentos?
Principalmente. Considerando que o foco também está em fortalecer cada vez mais a produção agroecológica. A FASE incentiva um cultivo sem agrotóxicos. Trabalha junto a agricultores que produzem por meio da mão de obra familiar. Apostamos muito no conceito de transição. Existem agricultores que estão produzindo totalmente sem o uso de venenos, mas ainda existem outros que, devido à influência das empresas, acabam usando químicos. Essa complexidade aparece na construção da agroecologia.
Quais tecnologias que a FASE incentiva junto aos agricultores e agricultoras que ainda não largaram o veneno?
Tendo a produção de alimentos saudáveis como foco, falamos no uso de caldas, de defensivos naturais, a questão de estar sempre produzindo compostagem, dentre outras tecnologias. Uma característica dos agricultores da região é a de diversificar a plantação. Uma família que tenha meio hectare vai ter, no mínimo, dez tipos de culturas alimentares. A FASE reforça a valorização disso e a ideia de tirar como possibilidade o monocultivo, até mesmo pensando no ataque de pragas. A produção nessas regiões inclui a fruticultura, com a graviola, o cacau, o cupuaçu, o açaí, a goiaba, o cajá, enfim, um leque de variedades. Também existem a mandiocultura, a horticultura e, ainda, os produtos agro-industrializados, que são os mais elaborados. As comunidades os preparam em casas de farinha e em suas cozinhas. Transformar a mandioca em beiju, o inhame em bolo e assim por diante. Há uma produção muito forte de variados tipos de pão, de cocada, de temperos, como o feito com urucum, dentre outros. Por meio de um levantamento, localizamos um total de 57 produtos. Encaminhamos para a secretária do estado e conseguimos um selo de agricultura familiar para esses produtos, o que gerou a isenção de alguns impostos na hora da comercialização.
Quais outros avanços a cooperativa conquistou até o momento?
Construímos a marca “Afagos da Terra”. Ela foi formulada a partir dos cooperados em diálogo com especialistas da área. Agora, estamos trabalhando nas tabelas nutricionais, ou seja, os rótulos vão trazer informações sobre os nutrientes dos produtos.
Uma dificuldade local é a pouca quantidade de terras. As famílias produzem muitos alimentos, mas em terrenos pequenos. Essa estratégia de agir em conjunto na cooperativa viabiliza conseguir quantidades maiores para acessar mais mercados?
Sim, essa é uma estratégia para acessar políticas públicas como o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] e o PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar], mas até mesmo colocar a produção no mercadinho da esquina ou em redes maiores. Juntando os agricultores, conseguimos dar vazão a uma produção que, às vezes, acabava ficando nas propriedades, sem organização suficiente para ser comercializada. Percebemos nas feiras livres dos municípios onde trabalhamos a presença de produtos de outras regiões. Mas, com essa organização na cooperativa, isso tem mudado e já temos agricultores locais conseguindo ter pontos específicos de venda. Isso é importante também pelo fato de ser forte a questão da insegurança alimentar na população, principalmente nas que estão nas áreas mais urbanizadas dos dois territórios.
[1] Jornalista da FASE.
[2] O trabalho do programa da FASE na Bahia junto à cooperativa é possível a partir do apoio da União Europeia (UE). O conteúdo deste artigo é de nossa responsabilidade exclusiva, não podendo, em caso algum, considerar que reflita a posição da UE.