20/10/2020 16:58

Hugo Lima¹

A afirmação da física e ecofeminista Vandana Shiva, fundadora da organização indiana Navdanya, durante o webinar “Soberania Alimentar: resistência e organização dos camponeses, povos indígenas e comunidades tradicionais”, realizado, nesta sexta-feira (16), pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos, com apoio de diversas organizações sociais, é, sem dúvidas, o caminho capaz de fazer frente ao avanço das políticas de desarticulação da vida. 

Biomas inteiros em chamas e outras devastações causadas pelo avanço do agronegócio, da mineração e das explorações dos recursos naturais; milhões de famílias rurais à espera de um auxílio emergencial; e a precarização dos empregos promovida bem antes da pandemia começar não conseguiram outros resultados que não a pobreza e a fome. Segundo Maria Emília Pacheco, da Articulação Nacional de Agroecologia, do Fórum Brasileiro de Soberania, Segurança Alimentar e Nutricional e da FASE, “temos, por dados de 2017/2018, 10 milhões de pessoas com fome no Brasil. Temos uma situação que reflete as desigualdades que permanecem, porque a fome se instala principalmente nas regiões Norte e Nordeste do Brasil e também entre as mulheres e a população negra.”

No momento em que o Brasil enfrenta uma das mais dramáticas crises ambientais e sociais, causadas pelo apagamento das políticas públicas para o meio ambiente, para a agricultura familiar e para as trabalhadoras e os trabalhadores, não há muito o que comemorar no Dia Mundial da Alimentação (16 de outubro) – mas sim muito o que fazer!

No encontro on-line, participaram da conversa com Vandana Shiva, além de Maria Emília Pacheco, da FASE, Alexandre Pires, da Articulação Semiárido Brasileiro, Via Campesina e Centro Sabiá, e Fernando Cabaleiro, do Naturaleza de Derechos, com mediação de Fran Paula, da FASE e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos.

Falso benefício dos venenos

Vandana argumentou sobre os percursos violentos feitos pela indústria de agroquímicos, dando luz às muitas informações falsas difundidas em favor de sua disseminação. Num paralelo com exemplos históricos das arrogâncias de superioridade humana, uma das reflexões da física indiana foi de que vê o fascismo entrando através dos alimentos. “O cartel dos tóxicos [o lobby dos transgênicos] organiza-se através de táticas mafiosas para seguir empurrando tecnologias que já fracassaram e são destrutivas. Tecnologias que nos dividem. E tudo isso muito intensamente sobre os alimentos.”

Vandana exemplificou a afirmação com o caso do algodão BT, introduzido ilegalmente em 1998 na Índia. “Ele não só fracassou, levando os agricultores ao suicídio, mas fracassou tão mal que a praga virou super praga e os agricultores tiveram que usar cada vez mais veneno. Muitos morreram deste envenenamento agudo e há muitos casos de suicídio, com agricultores envenenados pelo algodão BT, que era para evitar o uso de inseticidas. Então aumentou o glifosato, as plantas resistentes ao glifosato, as super pragas e as super doenças que não conseguem controlar” Para ela, a divisão da humanidade entre superiores ou não também se direciona para a natureza, “como se os humanos fossem superiores e não fizessem parte da natureza”.

Os movimentos fascistas que se encontram no agronegócio baseado em agrotóxicos tentam convencer que, usar produtos transgênicos, pode limitar o uso dos inseticidas – mas o que se vê é o contrário, destaca Vandana. E pior, quando o produto transgênico é plantado, ele contamina as plantas crioulas do entorno. Vandana lembrou de uma situação ocorrida no estado do Oregon, nos EUA, onde um ensaio com trigo transgênico contaminou as plantações. “Para nós, não pode haver patente sobre as sementes, sobre a vida. Porque não são inventos humanos, são criações.” 

A física também desmistificou a afirmação de que a transgenia é resiliente às secas. “É falso. A engenharia genética é a manipulação de genes. A resiliência à seca é uma característica multigênica – todos os genes trabalham em harmonia para criar resistência, para aumentar o rendimento, para resistir à seca. Só as características de um só gene, como a resistência a um inseto ou a um herbicida, não mudam o conjunto sem perturbar o conjunto”, destacou a ecofeminista. Vandana explicou que a mudança proporcionada por um ou outro gene é compensada por um conjunto de outras características que, na prática, apenas transferem o mal rendimento. As empresas criadoras de trigo transgênico afirmam que nos anos de seca, esse produto pode ter rendimento 20% maior, mas, segundo dados australianos, não contam que nos anos de chuva, “funcionam muito mal”. Já na agroecologia, os solos se tornam mais úmidos, acumulam mais água, beneficiam as plantas e há mais tolerância à seca. Segundo Vandana, com apenas 0,5% de matéria orgânica na agroecologia, você pode reter até 85 mil litros de água. As tecnologias “falham e não têm a sofisticação de criar a tolerância.”

Pior, “a invasão de soja transgênica na Amazônia tem criado escassez de água”, sublinhou ela. A destruição da floresta, segundo ela, fez os estados de Mato Grosso e Rondônia perderem cerca de 4 semanas de chuvas.

Vandana nomeou como “agrocídio” a aniquilação as condições para cultivar plantas neste contexto. “Empresas criam agrocídio em escala planetária e impõem fascismo tóxico, fascismo de alimentos. Cada vez que se impõe intervenções agressivas no agrossistema, isso se dá em escala global. E isso é ruim. É como Hitler em escala global.”

A ecofeminista fez mais correlações entre os avanços do uso e do negócio dos químicos no mundo com as relações de poder próximas da eugenia e do nazismo. As propostas que vem do Vale do Silício, enfatiza Vandana, são de uma nova agricultura digital, de precisão, sem agricultores, uma agricultura única, de monocultivo, baseada em uma tecnologia nova – a edição genética. Para ela, investidores desse tipo de tecnologia, como Bill Gates junto com outros gigantes da Califórnia, fazem um novo fascismo, um novo colonialismo. A liderança internacional destaca que é necessário que a sociedade esteja atenta a novos movimentos de destruição para evitar um colapso do sistema holístico. 

“Vamos tomar de volta nosso planeta, vamos tomar de volta nossas sementes, vamos tomar de volta nosso alimento, nossa terra, nossa democracia! (…) Deveríamos ter uma só humanidade no planeta, com diversidade de sementes, de sistemas agrícolas, de alimentos, de línguas. (…) Esse novo imperialismo filantrópico que está escondido, empurrando a política a favor do império, ao corromper nossos governos, subvertendo nossos avanços, desregulamentando nossa proteção. Este é o momento para nos levantarmos juntos”, convoca Vandana.

Agricultura sem agricultores 

A sequência de contribuições trazidas por Vandana Shiva ao debate da resistência dos povos contra as investidas dos modelos de agronegócio foi sucedida pelo pesquisador argentino Fernando Cabaleiro. Interagindo com mais informações sobre essa agricultura vinda do Vale do Silício, ele explicou que sua organização “tem denunciado a aliança estratégica que o IICA – Instituto Interamericano de Agricultura – fez com a Microsoft, Bayer/Monsanto, Dow Chemical e Syngenta, de Bill Gates. Esta é uma aliança para fazer avançar a agricultura na Argentina e no Brasil e implementar o Plano Ag One, de Bill Gates. Um plano que visa uma agricultura sem agricultores, substituindo o conhecimento de milhares de anos de agricultura ancestral e das comunidades que nasceram nos territórios de nossa bacia, pela tecnologia de Bill Gates, com o objetivo de apropriar-se e ter controle total sobre nossos territórios” relata

Ainda segundo Cabaleiro, “o plano de Bill Gates já foi implementado esta semana”, destaca em referência a semana do Dia da Alimentação. “O Ministro da Agricultura da Nação, um aliado do agronegócio que estimula o uso de venenos e OGMs, assim como os piores governos liberais, já anunciou que um milhão de hectares serão submetidos à agricultura digital, repetindo as falsas soluções”, complementa. 

Olhando para um cenário regional, Fernando analisou o contexto das fronteiras nacionais da Bacia do Prata, área que abrange  Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina, e como as empresas se aproximaram da região desde a implantação da Revolução Verde e dos modelos de agricultura da Monsanto/Bayer e das grandes corporações do agronegócio. Segundo o pesquisador, a Syngenta até chegou a chamar a região  “cinicamente de República Unida da Soja.” E completa: “assim começou um modelo devastador de nossos ecossistemas, há 30 anos, que desmatou e queimou milhões de hectares de floresta e contaminou nossos rios, nossos solos, nossos alimentos e nossos corpos. Além de ter afetado milhares de espécies de nossa rica fauna. É também um processo que está impregnado com a ganância da classe latifundiária e dos grandes magnatas que avançaram na posse de terras de comunidades nativas e movimentos camponeses, para submetê-los ao processo do agronegócio, denuncia.”

Fernando nos conta que esse cenário fez surgir, em cada canto do Rio da Prata, movimentos e organizações pelos direitos das comunidades. “Hoje podemos dizer que este movimento está vivo mais do que nunca, e que uma rede incessante foi construída entre nossos países que luta contra o agronegócio e o extrativismo.” Ele acredita que é preciso continuar fortalecendo essa “coalizão” de ações e pessoas, “pois após o colapso ambiental do coronavírus, o capitalismo continuará com sua lógica de acumulação, contaminação e destruição.”

Alerta e resistências

Para Maria Emília Pacheco, “Vandana nos traz um grito de alerta. No Dia Mundial da Alimentação, não temos muito o que comemorar, temos que protestar. Porque no caso brasileiro, aqui nós estamos num contexto de volta da fome e havíamos saído disso há alguns anos. (…) Esse processo de industrialização da vida é extremamente grave.”

Pacheco acrescentou que “neste quadro que nós vivemos, de uma escalada autoritária, de devastação ambiental, de carestia dos alimentos, de risco de desabastecimentonós precisamos reunir vozes e agir. Gritar pelo alerta e pelas mudanças. Porque, de fato, a pandemia escancarou, ela tornou mais visível, a desigualdade que já existia e mostra, claramente, que projetos baseados nas medidas neoliberais e que governos conservadores, como temos no Brasil, não resolverão. Nós precisamos de transformações radicais.” 

Assim como Cabaleiro, ela lembrou que no Brasil há também os movimentos que resistem ao avanço neoliberal. E isso está evidente em vários lugares, desde os “nomes simbólicos, poéticos e com sentido político profundo” que as sementes ganham nos territórios (“da paixão, do futuro, dos avós, da fartura…”) quanto “na valorização de nossas culturas alimentares”. Para ela, “não há diversidade alimentar sem reconhecer a diversidade cultural – são sistemas culturais, trazidos e trabalhados pela diversidade dos povos, pela nossa sociobiodiversidade, que pode garantir a diversidade do alimento.”

A necessidade dessa coalizão entre os grupos e movimentos de resistência nunca foi tão fundamental para proteger o meio ambiente e as pessoas, principalmente as populações do campo, destacam as e os expositores., Alexandre Pires lembrou que, em 2018, a Articulação Semiárido Brasileiro – ASA, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, o Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA e outros movimentos sociais do campo realizaram a Caravana do Semiárido Contra a Fome. “Essa iniciativa percorreu quatro regiões do Brasil, com mais de 150 lideranças camponesas, denunciando à sociedade e alertando às autoridades, Parlamento Brasileiro e Supremo Tribunal Federal, que a desconstrução das políticas públicas já estava naquele momento levando a população à uma situação de extrema pobreza e em consequência à fome. Essa foi uma iniciativa de unidade entre os movimentos e um ato de resistência, cujas denúncias feitas naquele momento foram comprovadas pelos dados apresentados há duas semanas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), sobre a situação de Segurança Alimentar e Insegurança Alimentar”, relembra

Ele denunciou ainda  “o descaso e a cumplicidade que o atual governo brasileiro tem tido com os desmatamentos e queimadas na Floresta Amazônica, no Pantanal e no Cerrado. Deliberada incapacidade técnica somada aos interesses políticos em defesa do agronegócio exportador, estimula a destruição de nossas florestas, de nossas fontes de água, nossa biodiversidade, ameaçando os modos de vida dos povos indígenas e comunidades tradicionais nesses biomas.”

Alexandre enfatizou os resultados obtidos pelas conquistas da sociedade civil em parceria com gestões federais anteriores nas políticas públicas de acesso à água, já que, segundo ele, “falar de Soberania Alimentar é falar sobre o acesso à água para consumo e para produção.”

“Hoje, mais de 1 milhão e 300 mil famílias camponesas têm cisternas de placas, que permite que mais de 6 milhões de pessoas tenham água potável e mais de 1 milhão tenham água para produção de alimentos de base agroecológica, numa perspectiva da Convivência com o Semiárido. Essa experiência que ganhou o mundo, tem garantido segurança alimentar para as famílias e tem nos tirado o estigma da fome e da miséria, ao qual parecemos condenados, por um longo ciclo de políticas neoliberais e violentas. O [atual] governo brasileiro, mesmo no período de pandemia, quando o acesso a água é fundamental para prevenir a contaminação, não tem apoiado essa iniciativa”, aponta Alexandre

Na finalização do encontro, a física indiana reforçou que a cultura dos monopólios e das propriedades latifundiárias não são a resposta para a produção de alimentos. As pequenas propriedades, segundo Vandana citando dados da ONU, são mais eficientes. Elas são responsáveis por cerca de 80% da alimentação mundial. Para ela, “os algoritmos não dão conta. As pessoas cuidam. As pessoas com solidariedade”. E conclui: “não é nada trivial – o único sistema que vai nos trazer alimentos, e vida, e justiça, e paz e o fim da violência é a soberania alimentar.”

[1] Hugo Lima é da comunicação da Articulação do Semiárido. Texto editado por Lizely Borges, da Terra de Direitos. Matéria publicada originalmente no site da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, da qual a FASE é parte.