21/08/2017 18:56

Gilka Resende e Rosilene Miliotti¹

O Fórum Alternativo Mundial das Águas (FAMA) será realizado no Brasil em 2018, fazendo um contraponto ao 8º Fórum Mundial da Água. Em um contexto de mercantilização da natureza e de acirramento dos conflitos sociais, organizações da sociedade civil denunciam que o chamado “fórum oficial” é, na verdade, o “fórum das corporações”. Com o objetivo de fortalecer uma articulação contínua de lutas em defesa da água como um bem comum em diferentes territórios do país e a partir de distintas perspectivas, foi promovido o “Encontro das Águas – Oficina de Diálogos e Convergências entre Redes”², que reuniu, no Rio de Janeiro, representantes de mais de 30 organizações, fóruns e movimentos sociais.

Evento reuniu representantes de 30 entidades. (Foto: Rosilene Miliotti/FASE)

O evento contou com grupos que resistem ao desenvolvimento defendido por quem enxerga a água como mercadoria. “Houve uma troca de conhecimentos sobre alternativas de proteção das águas criadas pelos povos. Elas estão sendo postas em prática por populações do campo, do cerrado, das florestas, que vivem nas margens dos rios, em regiões litorâneas e próximas a manguezais, bem como as que moram em periferias das cidades. Esses povos são guardiões das águas”, destacou Maiana Maia, do Grupo Nacional de Assessoria (GNA) da FASE, instituição que organizou a atividade junto da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, do Núcleo Tramas e da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz).

Durante a oficina, que ocorreu de 12 a 14 de julho, os presentes repudiaram o modelo privatizador das águas, desempenhado principalmente pelos setores da mineração, do petróleo e do gás, assim como pelo agronegócio. João Juventino, da Articulação Nacional de Quilombos, destacou que a água é um elemento de cobiça na chegada de qualquer empreendimento. Diante disso, afirmou que não faz sentido debater a água sem se pensar nos territórios e em suas populações. “É preciso dar um basta ao Matopiba³, que está dentro dos territórios quilombolas, aos parques de energia eólica, ao hidronegócio, à mineração…Vamos dar um basta nisso tudo a partir do momento que consigamos avançar com a demarcação dos territórios, embora a conjuntura não seja favorável”, analisou.

Maiana Maia, da FASE. (Foto: Rosilene Miliotti/FASE)

Ele, mais conhecido como João do Cumbe por viver na Comunidade Quilombola do Cumbe, em Aracati (CE), citou algumas experiências que fazem frente aos “projetos de morte”, como a Campanha Nacional pela Regulação dos Territórios das Comunidades Tradicionais Pesqueiros, a luta dos povos indígenas e a criação de reservas extrativistas. “A questão das águas é anunciada pelos povos para além da abordagem da escassez da água, que, muitas vezes, é feita de forma despolitizante. Falam de um ciclo das águas muito mais vivo, onde vemos as interconexões com os biomas, com as pessoas, as comunidades, os movimentos, as empresas e o Estado. Essa leitura contra-hegemônica traz a dimensão de um enfrentamento que tem recusado a lógica da desigualdade”, explica Maiana.

Criminalização e resistências 

Isolete Wichinieski, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), alertou para o crescimento dos conflitos no campo. Esses têm a ver com a disputa por terra, que está frequentemente associada a processos de apropriação das águas. E essa realidade está atravessada por assassinatos, ameaças e prisões. “Dentro da lógica da criminalização, quando a polícia faz uma desapropriação, leva os trabalhadores para a delegacia. Criminaliza comunidades inteiras. No ano passado, foram, em média, cinco assassinatos por mês. Nesse ano, já tivemos 46 mortes”, conta Isolete, citando dados da publicação Conflitos no Campo Brasil 2016.

Ela também representou na oficina a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado. As principais bacias hidrográficas brasileiras nascem nesse bioma, o que faz com que o tema ganhe peso na iniciativa. A Campanha, que reúne cerca de 40 organizações e movimentos sociais, denuncia que, a cada ano, desaparecem no Cerrado dez rios pequenos, que são responsáveis por abastecer rios maiores. Entre os principais fatores, está a ação do agronegócio. “Nos últimos anos, houve um aumento significativo da produção da soja na região. Se no sul o aumento foi de 37%, no Cerrado foi de 69%. 75% da água foram usados na agricultura, 68% na irrigação. Em apenas um dia, um pivô de irrigação gasta o equivalente ao que consome uma cidade de 36 mil habitantes”, afirma Isolete.

Houve troca de experiências entre diferentes grupos. (Foto: Rosilene Miliotti/FASE)

Cleonice Puggian, que também participou do encontro, vive em Duque de Caxias. Pelo relato de Isolete, cerca de 25 pivôs usados em monocultivos gastariam uma quantidade de água que supriria as necessidades da população dessa cidade, que tem cerca de 890 mil habitantes. Se o agronegócio impacta a vida dessas pessoas indiretamente, a exploração de petróleo causa impactos mais visíveis aos moradores. “Não tem como falar de refinaria sem falar da falta d’água. Não tem como falar de refinaria, sem falar nas injustiças ambientais no entorno”, destaca ela, referindo-se à Refinaria de Duque de Caxias (Reduc), empreendimento da Petrobras instalado nos anos 1960.

Cleonice, que integra o Fórum dos Atingidos pela Indústria do Petróleo e Petroquímica nas Cercanias da Baía de Guanabara (FAPP), expôs um pouco da realidade de duas localidades fluminenses: Campos Elíseos, em Caxias mesmo, e Pacobaíba, em Magé. Essa segunda também se encontra ameaçada pela construção do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), empreendimento da Petrobras em construção. “Não tem água em Pacobaíba. Não tem sequer uma rede de abastecimento. Donos de propriedades furam poços artesianos e fazem comércio da água. Cobram cerca de R$100 por mês. Uma água sem nenhum tipo de controle. Já em Campos Elíseos, que tem a Reduc como vizinha, parte da comunidade tem rede de água, mas com abastecimento intermitente. E grande parte nem tem”, relatou.

Luta popular e identidades

Entre os diversos grupos que resistem à apropriação das águas por transnacionais na Amazônia está o Movimento Tapajós Vivo. A articulação luta em defesa deste rio, criticando a implantação de sete barragens e de um complexo de portos, empreendimentos que ameaçam os modos de vida de comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas, além de centros urbanos. Entre diversas consequências, Carlos Alves, integrante do Movimento, aponta o aumento da violência por conta da chegada de populações externas à região. Nesse ponto, são afetadas, em especial, as mulheres, adolescentes e crianças.

Debates em pequenos grupos. (Foto: Rosilene Miliotti/FASE)

Carlos destaca ainda que a Amazônia é, cada dia mais, vista como rota de escoamento de grãos e minérios, o que implica também na chegada de projetos de ferrovias e estradas. “Somos totalmente contrários a esses grandes empreendimentos. São feitos de cima para baixo. É realmente uma imposição de poder”, expõe Carlos, que mora em Santarém, o terceiro município mais populoso do Pará.

A Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) também participou do encontro. Entre suas atividades, a organização fortalece ações que envolveram populações da região na construção de tecnologias sociais. A construção coletiva de cisternas de placas de cimento para estoque de água em casas, escolas e estabelecimentos de saúde, inclusive, conseguiu virar política pública e ser reconhecida internacionalmente. A jornalista Fernanda Cruz desnaturaliza a leitura sobre a seca na região, afirmando que a existe uma condição política por trás da escassez de água. “Mas é lógico que não a desconsideramos. Embora estejamos no Semiárido mais chuvoso do mundo, de 1500 para cá houve 72 secas. Ao mesmo tempo, esse é um Semiárido com 23 milhões de pessoas”, destacou ela, que integra o núcleo de Comunicação da ASA.

Nesse contexto, Fernanda compartilhou na oficina os aprendizados da aposta na Comunicação Popular para fortalecer as lutas ao valorizar as histórias e as perspectivas dos povos do Semiárido. “Uma vez perguntei a uma agricultora qual era o significado água. Ela me respondeu que era tudo, vida, alimento. A água para essas pessoas está relacionada à identidade”, ilustrou.

Para além do FAMA

As perspectivas do Encontro das Águas se somam aos ideais do próximo FAMA, que tem como lema “Água é um direito humano, não mercadoria”. Camila Mello, representante do Fórum, disse que o diálogo com os debates e as práticas de lutas concretas presentes na oficina vai enriquecer ainda mais o evento, que deve ocorrer em Brasília, entre os dias 17 e 19 de março de 2018. Em seu manifesto, o FAMA critica a lógica como a água tem sido encarada pelas transnacionais, ou seja, como a “melhor oportunidade de negócio do mundo”.

Camila Mello, do FAMA. (Foto: Rosilene Miliotti/FASE)

“O Conselho Mundial vê a água como um recurso econômico. E quem opera e estimula isso? Grandes bancos, o FMI [Fundo Monetário Internacional] e a OMC [Organização Mundial do Comércio]”, garante Camila. Diante disso, ela defendeu que é urgente que o tema das águas ganhe mais força nas mobilizações da sociedade civil brasileira. Citando estudos de Vandana Shiva e Maude Barlow [4], apontou os primeiros estágios necessários para a privatização deste bem nos países. “Primeiro, destroem a democracia, instaurando políticas neoliberais. Depois, acabam com a diversidade cultural. Em vez de múltiplas visões sobre a água, vigora apenas uma. Isso tem totalmente a ver com o que a gente está vivendo agora”, alertou.

[1] Jornalistas da FASE.

[2] Oficina realizada com o apoio da Fundação Heinrich Böll e da Fundação Ford.

[3] Região delimitada para fins de planejamento dos territórios do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – formando com as primeiras sílabas dos nomes desses estados a sigla Matopiba – como fronteira para a expansão do agronegócio no Cerrado.

[4] Vandana Shiva é uma física indiana, feminista, ativista ambiental e anti-globalização. Maude Barlow é autora e co-fundadora do Blue Planet Project, movimento global de cidadãos para a proteção da água.