08/09/2015 16:33

Amélia Gonzalez¹

Por trás do processo de negociação para criar um tratado na ONU, juridicamente vinculante, que obrigue as empresas transnacionais a cumprirem e respeitarem normas de direitos humanos, existem mais de cem   movimentos da sociedade civil que travam uma batalha quase diária há quatro décadas. Diana Aguiar², assessora da FASE, ex-membro do Transnational Institute, participa ativamente desse processo e contou-me detalhes dos bastidores de uma luta que, para se ter uma ideia, começou com um discurso de Salvador Allende (presidente do Chile deposto pela ditadura Pinochet) numa das sessões da ONU nos anos 70. Naquela Assembleia, em Genebra, Allende chamou a atenção para a violação sistemática das transnacionais contra pessoas e meio ambiente.

Diana Aguiar, da FASE. (Foto: Amélia Gonzalez/G1)

Diana Aguiar, da FASE. (Foto: Amélia Gonzalez/G1)

Desde vazamentos constantes de resíduos tóxicos em rios que servem como fonte de vida e trabalho para populações, até o extermínio de aldeias indígenas inteiras, atrocidades oficialmente registradas e denunciadas têm sido feitas em nome do progresso, do desenvolvimento. É a indignação contra esse desrespeito que uniu os movimentos socioambientais para fazer acontecer, em julho deste ano,  uma resolução das Nações Unidas, aprovada pelo Conselho dos Direitos Humanos, para que um Grupo de Trabalho, já estabelecido e presidido pela embaixatriz do Equador Maria Fernanda Garcez Espinosa, escreva o Tratado, que é vinculante.

O fato de ser vinculante faz toda a diferença, já que sai do aspecto voluntário que sempre norteou os guias de responsabilidade social corporativa até agora vigentes. A sociedade civil pensa que já é hora de cobrar e punir das empresas, pois elas tiveram muito tempo de “aprendizagem” sobre como se portar dignamente na hora de fazer negócios que impactem pessoas e meio ambiente.

Como se pode imaginar, é uma briga pouco equilibrada. Afinal, na própria sociedade civil há aqueles que não percebem outra forma de vida que não a garantida por empresas que lhes dão emprego e renda. Mesmo a custo de muitas violações.

Depois do discurso de Allende denunciando as violações das empresas foi criado um Centro de Controle das Empresas Transnacionais na própria ONU. Funcionou?

Diana Aguiar – Este Centro esteve em operação dos anos 70 até os anos 90, quando foi extinto. É interessante notar que quando ele foi criado não se reconhecia a violação de direitos humanos por empresas, porque no Marco de Direitos Humanos, proclamado em 48, entendia-se que só o estado tem o poder de desrespeitar os humanos, porque ele também tem o dever de proteger. O Centro fazia muitas investigações, pesquisas sobre denúncias, e publicava relatórios, mas não tinha nenhum poder de fazer cumprir. Ele dava visibilidade à voz das vítimas. O Centro foi extinto como parte do processo de privatização da ONU, que incluiu a entrada do ex-secretário Kofi Annan, quem implementou esse processo. O poder das empresas foi aumentando progressivamente no mundo a partir daí, com diversos mecanismos, desde o lobby – direto nos Congressos, ou por debaixo dos panos – ou o financiamento privado de campanhas eleitorais – que a gente sabe o que representa (estamos vivendo isso no Brasil), até o financiamento de golpes. Há várias conexões entre o poder público e a tentativa de as transnacionais ganharem mais poder. Mas nos anos 2000 houve alguns progressos na ONU, algumas tentativas por parte da Comissão de Direitos Humanos.

A general view of participants at a 28th Session at the Human Rights Council on the occasion of the International Day for the Elimination of Racial Discrimination. 20 March 2015. UN Photo / Jean-Marc Ferré

Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU. (Foto: Jean-Marc Ferré/ UN/Fotos Públicas)

Tentativas de quê?

De fazer um instrumento vinculante de Direito Internacional para obrigar as empresas a cumprirem e respeitarem normas de direitos humanos. Hoje o que tem são normas voluntárias, o chamado princípio Ruggie, que você citou em seu artigo . Mas todos os movimentos que são a favor do Tratado vinculante têm restrições a esses Princípios Ruggie.

Por quê?

Porque o relatório final de John Ruggie (que teve mandato no Conselho de Direitos Humanos da ONU de 2005 a 2011 e criou os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos) leva aos princípios voluntários de empresas e direitos humanos que são, basicamente, a continuidade da maquiagem de responsabilidade social corporativa. Para você entender o que estou falando: há um Fórum Anual para revisar o que está acontecendo dentro de tais princípios no qual se sentam estado, empresas e sociedade civil e ele está totalmente esvaziado porque a sociedade civil percebeu que aquilo é um teatro. Há uma disparidade de poder, e o modelo do Fórum não reconhece o que são assimetrias do poder, nem que muitas vezes os estados estão falando em nome das empresas.

Nas negociações do clima da ONU as empresas também têm uma voz muito forte. Recentemente (leia aqui), após o anúncio das empresas que vão patrocinar a COP 21, organizações fizeram um ato denunciando que petrolíferas estão subsidiando a organização da Conferência…

Justamente por isso, vários grupos deixaram de ir ao Fórum anual de Empresas e Direitos Humanos. Há os que continuam indo lá, ouvindo os compromissos voluntários das corporações, mas a maioria, hoje, é favorável ao Tratado vinculante, para o qual 100 organizações do mundo inteiro levaram oito propostas a Genebra, numa reunião que aconteceu de 6 a 11 de julho deste ano.

Você estava lá, né?

Sim, mas na verdade a campanha a favor do Tratado foi lançada durante a Rio+20. Somos herdeiros de um processo chamado Enlaçando Alternativas que durante os anos 2000 realizou três audiências no Tribunal Permanente do Povos analisando 46  casos de violações provocadas por empresas europeias na América Latina. Nesse processo chegou-se à conclusão de que se trata de um comportamento sistemático das transnacionais, não de casos isolados.

Vazamento no poço da Chevron na Bacia de Campos, no norte do RJ. (Foto: ABr)

Vazamento no poço da Chevron na Bacia de Campos, no norte do RJ. (Foto: ABr)

E as empresas ficam impunes depois de cometerem tantas violações?

A maioria dos tratados de livre comércio  têm artigos que garantem a segurança jurídica para os investimentos com o objetivo de blindar as empresas contra punições. Além disso, há um Tribunal Internacional que pode garantir que corporações demandem se elas considerarem que alguma política pública do estado onde estão investindo prejudica suas perspectivas de lucro. Por exemplo: recentemente a Phillip Morris demandou contra o Uruguai porque o estado exigiu que ela pusesse mensagens nas carteiras de cigarros alertando contra os malefícios do tabaco. O argumento da empresa é que, para fazer isso, ela teria que mudar a caixa, o que causaria um custo que o país teria que arcar com ele.

Por outro lado, as vítimas…

Diana Aguiar – Têm muito pouco acesso à Justiça internacional e nacional. E o estado tem interesse em atrair investimentos dentro de uma lógica de desenvolvimento a qualquer custo.

Mas então, voltando à Genebra e à reunião de julho deste ano.  O que aconteceu naquela sessão da ONU?

Antes preciso contar que na sessão da ONU de setembro de 2013 o Equador liderara uma declaração ao Conselho dos Direitos Humanos assinada por 85 países dizendo ser o momento de se fazer um tratado internacional sobre empresas e a necessidade de respeitar os direitos humanos. Isso caiu como uma bomba e nos deu mais força. É uma declaração política mas, com o número de estados que assinaram, foi o indicativo para, no ano seguinte, o Equador lançar    uma resolução para iniciar o Grupo de Trabalho. Aí sim, de 11 a 16 de julho no ano passado. Estive lá e foi uma mobilização da sociedade civil que Genebra nunca esquecerá.

Como foi o processo?

Foi bastante trabalhoso. A questão é que os países promotores dos princípios de Ruggie  – Noruega, Argentina, Índia, Rússia e Gana – fizeram com que tudo tomasse um tom dicotômico, como se nós tivéssemos contra os princípios voluntários. Não é isso. O que dizemos é que está mais do que na hora de os princípios voluntários serem adotados, o Tratado vai demorar mesmo para ser implementado. Mas, enquanto isso, os princípios podem ser o marco, as deficiências que os princípios forem percebendo e documentando podem ser insumos para o processo do Tratado. Só que tudo poderia ser à base de diálogo, não de competitividade. Na hora de votar – só os países do Conselho de Direitos Humanos é que votam – a Índia saiu do processo e passou a apoiar o Tratado, e a Argentina se absteve.

Protesto da Cúpula dos Povos, evento paralelo à Rio+20, em 2012. (Foto: ABr)

Protesto da Cúpula dos Povos, evento paralelo à Rio+20, em 2012. (Foto: ABr)

E o Brasil? Ele era do Conselho? Votou?

Também se absteve, foi uma decepção. Durante várias reuniões anteriores à votação, que nós podíamos assistir e tínhamos direito a fala, conversamos com os representantes do Ministério das Relações Exteriores. A princípio eles sinalizaram que votariam a nosso favor, depois desistiram. Mas o que mais nos impactou foi o papel da União Europeia, o tempo todo tentando boicotar o processo porque estava defendendo, claramente, as empresas.

Mesmo assim, a resolução foi aprovada. E agora?

Continuamos na luta, que vai ser árdua. Equador e África do Sul são os patrocinadores, dinamizando o processo. Teremos reuniões do Grupo de Trabalho às quais a União Europeia poderá participar, além de qualquer país, e sabemos que vai ser duro. Já foi duro na primeira reunião, o grupo da UE tentou atrapalhar porque sugeria que, em vez de o Tratado visar as transnacionais, visasse também as nacionais. Só que isso poria, por exemplo, a China contra o Tratado, já que ela quer que o foco seja nas transnacionais, muito provavelmente para não punir suas empresas por violações ocorridas na China e prejudicar seu desenvolvimento.

Mas não é importante que as nacionais também estejam no rol?

Primeiro preciso dizer que a União Europeia não está, de jeito algum, preocupada com o bem-estar do povo chinês ao fazer isso. Ela quer é boicotar o processo. Depois, as violações sistêmicas são, de fato, das transnacionais, são elas que evadem jurisdições. Se colocarmos todas as empresas vai desvirtuar o processo, podendo colocar no mesmo patamar pequenas empresas locais e empresas transnacionais, o que não faz sentido.

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[1] Entrevista publicada na coluna Nova Ética Social, de Amélia Gonzalez, no G1.

[2] Diana Aguiar integra o Grupo Nacional de Assessoria (GNA) da FASE.