05/08/2019 18:26

Angélica Almeida ¹

12 de agosto de 1983. Naquele dia, a mando de fazendeiros e pelas mãos de pistoleiros armados, Margarida Maria Alves seria assassinada na porta da sua casa, em frente ao marido e filho. Uma tentativa brutal de silenciar uma líder que ousou romper com os padrões de gênero e, por 12 anos, presidiu o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande (PB), denunciando o abuso e o descumprimento dos direitos de trabalhadoras e trabalhadores na região.

Passados quase 36 anos do crime, Margarida permanece viva como símbolo de resistência em milhares de mulheres do campo, das águas e das florestas que, assim como ela, preferem viver da luta que padecer na submissão. Como não podia deixar de ser, o enfrentamento a todas as formas de violência é um dos eixos centrais de denúncia, debate e proposição que a Marcha das Margaridas 2019.

5ª edição da Marcha das Margaridas. (Foto: Mídia Ninja)

Nas muitas formas em que se expressam e, desde 2006, tipificadas pela lei Maria da Penha (Lei nº 11.340) como físicas, psicológicas, sexuais, patrimoniais e morais, as violências contra mulheres comprometem a liberdade e autonomia femininas. Articuladas a outras formas de opressão, discriminação e desigualdade, como as de raça, etnia, classe e orientação sexual, deixam marcas profundas na vida das mulheres, atingindo, de forma mais acentuada, as negras, indígenas, lésbicas, pobres, quilombolas e camponesas.

A violência ganha contornos machistas quando atingem as mulheres pelo simples fato de serem mulheres, se caracterizando como qualquer conduta que discrimine, agride, maltrate ou obrigue as mulheres a fazerem algo (ou a deixarem de fazer). Um dos marcos legais de enfrentamento à situação foi a tipificação do feminicídio (Lei 13.140/2015), transformando em crime hediondo – com maior reprovação e punição por parte do Estado -, assassinatos de mulheres decorrentes de violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de ser mulher.

Como demonstram inúmeros estudos, apesar dos avanços legais, a escalada da violência permanece atingindo as mulheres de forma perversa, tanto no ambiente familiar quanto nos espaços públicos e de participação política, seja nos locais de trabalho, nas cooperativas, nos sindicatos ou mesmo em igrejas, sendo das mulheres negras, os piores indicadores sociais e econômicos no Brasil.

Violências contra mulheres rurais, negras e indígenas

No campo, na floresta, nas regiões ribeirinhas e nos quilombos, mesmo os equipamentos de atendimento à violência contra a mulher mais disponíveis, como as Delegacias da Mulher, estão muito longe de existir e, quando existem, não têm funcionárias e funcionários qualificados para atendimento, assim como também a mulher tem dificuldade de deslocamento.

Além das violências físicas, mulheres rurais enfrentam uma série de violências simbólicas e materiais, como a invisibilização e desconsideração de suas contribuições econômicas. Foram elas as mais afetadas pelo aumento da pobreza e extrema pobreza rural na América Latina entre 2007 e 2014². Mesmo constituindo importante parte da força de trabalho das famílias e responsáveis por produzir mais da metade de todos os alimentos do mundo, apenas 30% são donas formais de suas terras, 10% conseguem ter acesso a crédito e 5% recebem assistência técnica³. Em geral, suas atividades não são suficientemente reconhecidas, sendo classificadas como “ajuda” ou “complemento” ao sustento da família, o que limita seu acesso aos rendimentos e o poder de interferência sobre os rumos da produção e da comercialização, ainda sob domínio masculino.

(Foto: Lula Marques/Fotos Públicas)

Para Luiza Cavalcanti, mulher preta, agricultora agroecológica, educadora popular e ativista, é fundamental a compreensão de como a escravidão foi uma dimensão estruturadora da sociedade brasileira, fundada na exploração dos povos negros e indígenas, cujos reflexos permanecem incidindo sobre a vida das mulheres. “Falar da violência que nos afeta é lembrar de tantas coisas. Das que nos precederam, de como nós fomos arrancadas de nossa ancestralidade, arrancadas da África, jogadas aqui para viver tantas violências. No navio negreiro, fomos tratadas pior que qualquer tipo de animal, e não como seres humanos. Assim como continuamos sendo tratadas ainda hoje, ora nas casas grandes, ora nas favelas verticais, nas ditas ‘casas de famílias’ como empregadas domésticas, como operárias de fábrica, como qualquer profissional… Sofrendo assédio sexual, moral, institucional e toda forma de violência que atinge nossos corpos”, destaca. “As mulheres são assassinadas todos os dias por aqueles que deviam amá-las e protegê-las”, completa Luíza.

De igual modo, Franciléia Paula, educadora da FASE no Mato Grosso e do Coletivo Pretas da Agroecologia, avalia que os reflexos da escravidão se manifestam de diversos modos no dia a dia. “Vão desde o genocídio da população negra, da juventude negra, do encarceramento em massa dessa população, do baixo acesso ao ensino público, às universidades. Os dados de pobreza e fome no Brasil escancaram o racismo refletido dessa sociedade”, considera.

(Foto: Contag)

Por isso, como defende Luíza, é essencial o reconhecimento de que os feminismos são plurais, de que há um feminismo preto e um feminismo indígena específicos e que precisam ser considerados e ouvidos. “A gente compreende que é um trabalho que precisa ser feito, em todo e qualquer instante e em todo lugar: o empoderamento de nossas vozes. A gente viveu séculos de silenciamento. Sair desse lugar de silêncio não é fácil, dentro de um sistema em que o modelo de autoestima é branco, no qual quem tem poder de fala, de ser apresentado como pessoa, é uma pessoa branca. Enquanto a gente tiver um país negando a nossa identidade, a nossa ancestralidade, destruindo nossos símbolos religiosos e todas as violações acontecendo, é muito difícil haver superação. É preciso uma reação popular negra e indígena muito grande, para que a gente mude a postura de um país construído com bases escravocratas, racistas, machistas, essas coisas ruins todas”, avalia.

Já para Franciléia Paula, se há o reconhecimento de que a sociedade é machista e racista, é preciso reconhecer que mulheres negras são duplamente violentadas: por sua condição de gênero e pela condição racial. “Desta forma, é importante que os movimentos sociais, os movimentos de luta que hoje atuam no Brasil tenham essa compreensão e incluam nas suas pautas, bandeiras de luta, eixos de atuação, ações que visam não só debater e refletir sobre os processos de violência das mulheres negras, mas sobretudo agir para superar os conflitos e violências sofridas por essas mulheres negras. E, ao pensarem projetos, modelos sustentáveis e igualitários para o país, reconheçam que a questão racial no Brasil é tão fundamental de ser priorizada quanto a luta de classes”, reivindica. “Os índices de violência contra mulheres só serão diminuídos com a redução da desigualdade de gênero, de raça e de outras formas de opressão contra mulheres”, ressalta Franciléia.

Denunciar para enfrentar

(Foto: Marcha das Margaridas)

No contexto atual, de enorme retrocesso das conquistas alcançadas pela luta histórica das mulheres, milhares de Margaridas vão ocupar as ruas de Brasília, nos próximos 13 e 14 de agosto, pressionando o Estado Brasileiro a assumir a responsabilidade de garantir o bem-estar das mulheres. São algumas reivindicações: a garantia de equipamentos e recursos para o enfrentamento à violência no meio rural; a promoção de autonomia econômica para as mulheres; o fortalecimento das instâncias de participação social para avançar no enfrentamento à violência; o cumprimento exemplar da Lei Maria da Penha, combatendo as tentativas que visam fragilizar seu texto e aplicação; a educação de qualidade, que reconheça e respeite a diversidade, debata as relações de gênero e construa valores antirracistas, de paz e não violência, de igualdade entre homens e mulheres e de respeito às pessoas LGBTs.

[1] Integrante da Comunicação Marcha das Margaridas 2019, uma ação protagonizada pelas mulheres e realizada pela Confederação Nacional de Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura (Contag), Sindicatos e Federações filiadas à Confederação, e apoiada por várias organizações parceiras. Saiba mais sobre o tema dessa reportagem aqui. E sobre a Marcha aqui.

[2] (FAO, 2019).

[3]  (ONU BRASIL, 2017).