26/07/2018 17:53
Gilka Resende¹
“Agitando pensamentos, reagindo para transformar a sociedade” é o tema do novo edital do Fundo SAAP, lançado na quinta-feira (26/7). Taciana Gouveia, coordenadora dessa unidade da FASE, explica que a ideia é fortalecer e incentivar a construção de narrativas e ações frente ao conservadorismo, o ódio e a violência do Estado. O objetivo é apoiar grupos, coletivos e organizações de mulheres, negros e negras, jovens, populações LGBTs e indígenas que vivem nas cidades, sendo que as atividades devem ocorrer em favelas e periferias de diversas partes do país.
Nesta entrevista, Taciana fala sobre assuntos que de alguma maneira se relacionam ao edital, como os 30 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988; a ideia de “tempo” em diferentes contextos sociais; e a importância das lutas contra as desigualdades e por direitos. Em suma, a conversa trata de “vida e política”, ou melhor, da ideia de que talvez seja impossível separá-las.
O edital fala em “gramática de direitos”. Poderia explicar?
Existe um conjunto importante de grupos e pessoas que analisa a sociedade brasileira chamando atenção para algo que aparece, estranhamente, a partir de 2013 e 2014: a existência de uma ruptura do que a gente chama de “gramática de direitos”. O que é isso? Antes, acho importante destacar uma coisa: existia uma visão de que os direitos eram algo dado, como se tivessem surgido com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e fossem imutáveis. Isso muda. Nos últimos 30 anos, toda luta política brasileira se pautou na ideia de que existiam direitos que deveriam ser disputados, ou seja, nossas lutas passaram a ser em torno desses direitos, que tinham as mais variadas dimensões. Passamos a pensar nos direitos também como criação. Então, um conjunto amplo de direitos passou a reger o entendimento da política brasileira, incluindo aí os direitos das mulheres, o direito à educação, o próprio direito à cidade, os direitos das populações tradicionais, dentre outros. Mesmo quem era contra esses direitos passou a reconhece-los. Ou seja, passamos a ter uma legitimidade quando se falava em direitos.
Mas, nos últimos anos, houve uma grande perda de direitos conquistados. A maioria dos direitos, na prática, não eram efetivos. No entanto, agora, parece que a “gramática de direitos” passa a não ser mais o ponto de vista por onde enxergamos a sociedade. Nesse contexto, cresce o discurso de ódio, o conservadorismo e, digamos assim, temos uma certa legitimidade social para a violência do Estado contra as populações com as quais ele sempre foi mais violento. Nesse sentido, fica parecendo que essa “gramática de direitos” não vale mais. Para nós, ela vale. Então, a gente pensou que o momento é de dizer isso. E ainda questionar: será que ela coube a todo mundo? Talvez não. E o que a gente faz para tentar construir um processo de justiça e igualdade? É preciso pensar de novo. Foi essa ideia que trazemos com o edital.
Temos um governo golpista no poder. Quais estratégias podemos pensar diante das eleições de 2018 e para além delas?
Existe aí uma trajetória de grupos que se baseiam no ódio, no preconceito, na negação da existência do outro que é diferente de si, ou seja, baseada em uma lógica branca, masculina e heteronormativa. O golpe se insere nisso. E as eleições não vão mudar radicalmente essa cultura. A conjuntura não vai se desfazer a partir das eleições. Democracia não é apenas eleger. Ela é processo, é compreensão de sociedade. Acreditamos que os grupos, coletivos e organizações para os quais esse edital está voltado devem conversar, estar próximos um dos outros, pois é a partir do cotidiano que a gente pode dar um salto para a política, para a discussão do coletivo. No cotidiano, descobrimos as raízes da exploração. A gente descobre que não sofre sozinha. Não temos culpa da opressão, do ódio, da violência que sofremos.
Há 30 anos foi promulgada a Constituição de 1988. Quais aprendizados e reflexões trazemos daquele importante momento histórico?
Esse pensar e fazer coletivos são aprendizados importantes da construção da Constituição. Não podemos voltar atrás. Vivemos momentos diferentes. Mas podemos pensar que tudo é processo. A gente lida com um tempo cronológico, um tempo linear. Mas existe uma outra ideia do tempo, que é o que só se realiza quando acontece algo que almejamos. Então, há um vai e volta. É nessa lógica que podemos pensar os aprendizados de 1988, porque eles são muitos. Na verdade, os ensinamentos são sobre o que nos levou até a promulgação da Constituição, um processo que começa no final dos anos 1970 ou até mesmo antes, numa época da ditadura ainda mais ferrenha, quando grupos, organizações e sujeitos que tinham sido desmantelados começaram a se agitar e a pensar juntos, ainda que no miúdo, no pequeno. A partir desse caldo é gerada a Constituição de 1988. Uma das coisas mais incríveis é lembrar que os constituintes, em sua maioria, não eram progressistas. E, mesmo assim, se consegue passar uma Constituição progressista. Isso demonstrou uma capacidade de construção política que foi além do parlamento. Eu acho que é isso que temos que reaprender.
Ao mesmo tempo, grupos que historicamente sofreram de forma mais violenta as consequências de uma sociedade extremamente desigual como a brasileira não se mobilizam da mesma maneira que há 30 anos. Como você disse, os contextos são diferentes. Lembrando o tema do edital, quais devem ser as estratégias para “reagir e transformar a sociedade”?
Por vezes a gente tende a achar que só aprendemos com o que funcionou, mas também aprendemos com o que nos limitou. A Constituição de 1988 é muito importante como arcabouço, mas houve muita dificuldade para dinamizá-la e implementá-la. Até 2013 e 2014, a gente conseguia ir por esse caminho institucional, ainda que os instrumentos de participação social já estivessem um pouco desgastados. Atualmente, um conjunto expressivo e importante de sujeitos políticos que surgiu nos últimos anos, articulado em torno da luta contra a violência do Estado, mostra o seguinte: ‘olha só, não é assim. A gente não está perdendo direitos. A gente, inclusive, nunca teve acesso a esses direitos’. Então, esses sujeitos políticos têm lutado para serem reconhecidos como pessoas que importam. Isso é um algo anterior ao estágio de ter direitos.
Na escola, muitas vezes, aprendemos uma norma de como devemos ‘escrever do jeito certo’, como se a gramática fosse algo pronto, como se tivesse vindo do além. Mas, quando falamos em “gramática de direitos”, estamos dizendo que é possível ter outras gramáticas. E que essas podem ter uma concepção dos direitos muito mais ampla. A gente tem que fazer acontecer. E isso também significa inventar um novo idioma. Inventar mais formas de luta. Ou seja, agitar os pensamentos para mudar a vida.
[1] Comunicadora da FASE.
[2] Acesse todas as informações do edital do Fundo SAAP. Assista também vídeo sobre o tema.