10/11/2016 15:10
Jean Pierre Leroy era francês naturalizado brasileiro, mas sua luta sempre foi internacional. Morreu aos 77 anos nessa quinta-feira (10), no Rio de Janeiro, vítima de câncer. Enfrentava a doença desde 2009 com a mesma garra que sempre se empenhou em favor da organização dos trabalhadores, dos direitos dos indígenas e de outros povos tradicionais, da justiça ambiental e, mais recentemente, dos bens comuns. Todas e todos da FASE se sentem gratos pela dedicação do pesquisador, ambientalista e educador popular, que por mais de 40 anos integrou a organização se esforçando para colocar em prática a missão de contribuir para a transformação da sociedade e por alternativas ao modelo de desenvolvimento vigente. Também lutava contra desigualdades e discriminações e pela universalização dos direitos sociais, ambientais, econômicos, culturais e políticos.
A FASE manifesta carinho e solidariedade à Noêmia Pereira, companheira de Jean Pierre, a sua família e aos amigos. “É difícil destacar apenas uma contribuição de Jean Pierre para a FASE. Ele teve uma importância grande para a construção do movimento socioambiental no Brasil, algo que ultrapassa em muito a nossa organização. Trouxe a questão dos direitos humanos e dos direitos territoriais para o debate ambiental, dando outra roupagem à questão. E, ao mesmo tempo, levou para os movimentos sociais “mais tradicionais” a ideia de que a luta não poderia se reduzir a “capital e trabalho”, de que a natureza e os conhecimentos de indígenas, extrativistas, ribeirinhos, dentre outros povos, tinham que ser considerados. Foi uma pessoa visionária, pois já abordava esses temas nos anos 1970”, destaca Letícia Tura, diretora da FASE.
Palavras como “desafio” e “futuro” apareceram constantemente nos depoimentos e escritos de Jean Pierre, que inspiraram muitas gerações. “Li o livro dele “Uma chama na Amazônia: campesinato, consciência de classe e educação”. Isso me impulsionou a ir para a Amazônia, onde fiquei por 13 anos”, relata Letícia. Além desse estudo, de 1989, Jean Pierre foi autor de diversos artigos publicados em coletâneas, cadernos de debates e de livros, como “Territórios do Futuro: educação, meio ambiente e ação coletiva”, de 2010, e “Mercado ou Bens Comuns?”, lançado no mês passado. Formando em Filosofia e mestre em Educação, Jean Pierre tinha um olhar crítico para o significado da palavra desenvolvimento.“Entendemos por injustiça ambiental o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis”, afirmou em entrevista à Fundação FioCruz, em 2002.
A Justiça Ambiental, que muitos concordam resumir sua trajetória, é o contrário disso. “A maioria dos cientistas concorda que a humanidade se defrontará com um meio ambiente em drástica e dramática transformação. Há uma larga parte de desconhecido nisso, mas, pelo menos, podemos tentar nos preparar da melhor maneira possível, pensando em consequências longínquas. Nesse sentido, olhar para o passado é imprescindível, pois é ele que nos dá bases para nos preparar”, completou Jean Pierre. Ele chamava atenção para o “forte impacto da pegada humana sobre o planeta”, capaz de “influenciar decisivamente o futuro”. Os passos de Jean Pierre foram contra-hegemônicos e deixaram sugestões de caminhos para organizações e movimentos sociais.
Uma caminhada de lutas
Jean Pierre Leroy nasceu em 17 de janeiro de 1939 na Normandia, França. Sua mãe era servente de bar, filha de uma família de 14 filhos. Seu pai, de família de meeiro, tinha deixado a roça para ser carteiro e, depois, ferroviário. Jean Pierre conheceu a guerra, combates aéreos, bombas e enterros de famílias inteiras. Teve dois irmãos e três irmãs, sendo ele o mais velho. A longa doença da mãe e sua morte, quando as crianças tinham entre seis e 15 anos, causaram a dispersão da família.
Estudou teologia e concluiu seus estudos religiosos em um seminário da Congregação dos Oblatos de Maria Imaculada (OMI). Padre, a espera de ser designado para vir ao Brasil, foi vigário e assistente de Ação Católica Operária (ACO) e da Juventude Operária Católica (JOC) em áreas industriais e em periferias com forte presença de migrantes.
Chegou ao Brasil em 1971, passando a viver em Belém. Lá se aproximou de pescadores e agricultores familiares. Ainda em 1973, foi vigário no subúrbio da capital paraense. Dois anos depois, se mudou para Santarém e passou a ser educador da FASE. Seu trabalho junto à equipe era voltado para produtores em pequenas roças, agroextrativistas, para organização sindical e para a formação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na região. Ainda nessa década, foi para o Maranhão trabalhar em uma região de fronteira submetida à grilagem e à violência. Logo depois, veio para o Rio de Janeiro para fazer estudos sobre regiões no Paraná, no Maranhão e no Pará.
Em 1977, deixou de ser padre e se casou com Noêmia. Mineira de Caratinga, ele a conheceu quando estudou em São João Del Rey para a revalidação dos seus estudos de Filosofia. Um ano depois, assumiu a coordenação nacional da FASE, exercendo a função até 1983, quando passou a ser coordenador nacional adjunto. A conjuntura de ditadura recomendava que o coordenador nacional tivesse um perfil mais discreto, que não chamasse a atenção e desse respaldo à organização. Envolveu-se, então, na reorganização sindical, em particular pelas Oposições Sindicais, urbano-industriais e rurais, e na organização da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Como coordenador nacional da FASE, Jean Pierre liderou o processo de resgate da sua identidade institucional como organização voltada para a educação popular, assegurando de forma democrática e pluralista as bases para a consolidação da FASE e a continuidade do seu compromisso com a transformação social, nas décadas seguintes.
Nos anos 1980, participou da criação da rede de Projetos de Tecnologia Alternativa (PTA)¹, considerado a semente do movimento agroecológico no Brasil. Também esteve ativo em encontros sul-americanos. Como representante da América Latina no Conselho Deliberativo do Fundo Ecumênico das Igrejas Canadenses (ICFID), teve a oportunidade de conhecer entidades de países latino-americanos e ajudou a organizar um importante encontro entre elas, realizado no Peru em 1983. A Amazônia continuava a ser um dos seus grandes centros de interesse. Desde 1988, se tornou um colaborador periódico do Movimento pela Sobrevivência na Transamazônica.
Em 1990, participou do Fórum de ONGs Brasileiras, evento preparatório para a Conferência da Sociedade Civil sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, integrando sua coordenação coletiva. Em 1991 e 1992, a FASE assumiu a secretaria executiva do Fórum, sendo Jean Pierre Leroy seu secretário. Coordenou a construção coletiva da instituição, que passou ser a chamada, a partir de 1993, de Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. Em 1996, nasce o Projeto Interinstitucional Brasil Sustentável e Democrático² e Jean Pierre assume sua coordenação. “Interinstitucional” porque sempre pareceu a ele que a produção intelectual, para entidades como as envolvidas na iniciativa, não poderia se dar da mesma maneira que na academia. A produção coletiva de conhecimento seria fundamental. O ponto de partida era o questionamento ao modelo de desenvolvimento “socialmente excludente e ambientalmente catastrófico”. Até 2002, produziu um número importante de publicações, em particular “Tudo ao Mesmo Tempo Agora – Desenvolvimento, Sustentabilidade, Democracia, o que isso tem a ver com você”. Mais tarde, incentivou a formação de coletivos semelhantes no Chile, no Uruguai, na Argentina e, em um grau menor, no Paraguai e na Bolívia.
Movimentos sociais e direitos humanos
Em 2002, foi indicado para ser Relator para o Direito Humano ao Meio Ambiente, em ação coordenada pela Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais (Plataforma DhESCA) . Com isso, cruzou o país produzindo relatórios sobre conflitos e violações aos direitos humanos que envolviam agricultores familiares, agroextrativistas, contaminação de manguezais, violências contra pescadores, populações urbanas, impactos pela expansão do eucalipto, conflitos fundiários, ação de madeireiros, ameaças e assassinatos. Como exemplo, fez estudos sobre os desmandos da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, e contra indígenas Xavante, da Terra Marãiwatsédé , no Mato Grosso. Pode repercutir denúncias em Genebra, na Comissão de Direitos humanos das Organizações das Nações Unidas (ONU), e em Washington, junto à Organização dos Estados Americanos (OEA).
Participou da fundação da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), também em 2002, e poucos anos depois, da coordenação do Mapa de Conflitos Ambientais do Estado do Rio de Janeiro³, que gerou a construção de um novo instrumento voltado para grupos sociais atingidos por empreendimentos chamado de “Avaliação de Equidade Ambiental”. Em 2009, recebeu o Prêmio João Canuto, que leva o nome do primeiro presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, assassinado em 1985. A premiação foi concedida pelo Movimento Humanos Direitos.
Jean Pierre Leroy esteve ao longo da vida comprometido com os movimentos sociais e com a sociedade brasileira. Demonstrou preocupação com os ataques à democracia e aos direitos básicos pelos quais passa atualmente o Brasil. Defensor da reforma agrária, esteve ao lado do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), assim como de muitos outros, em defesa da liberdade de organização. Para ele, a “reforma agrária não é só assentamento, mas um grande projeto de reconstituição do território, da agroecologia, é algo fundamental para as políticas e para a saúde”. Em vídeo gravado em 2011, declarou: “Apoio o MST porque ele nos diz que o futuro não pode ser o que estamos vivendo. Diz que tem que ser um futuro em que cada um tem o seu lugar, onde tenha mais igualdade. O MST não se preocupa só com seus membros, mas com todos os pobres desse país, com todos os excluídos”.
“Estamos certos de que a crença de Jean Pierre na importância de nos educarmos mutuamente para melhor reconhecermos o mundo ao nosso redor, crença que ele soube traduzir numa ação permanente em estreita ligação com os movimentos sociais, iluminará a nossa caminhada nesses tempos difíceis em que estão ameaçados direitos duramente conquistados”, conclui Jorge Eduardo Durão, coordenador do Grupo Nacional de Assessoria (GNA) da FASE, unidade da qual Jean Pierre era parte.
[1] Trabalho desenvolvido junto à AS-PTA.
[2] Coordenação era formada pela FASE, AS-PTA, Ibase, Instituto PACS, Rede de Desenvolvimento Humano (Redeh), Instituto de Energia e Ambiente (IEE-USP) e Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ).
[3] Coordenou junto ao professor Henri Acselrad, envolvendo a FASE e o IPPUR/UFRJ.