26/05/2017 17:53

Rosilene Miliotti¹

Moradores da Maré e de outras partes da cidade caminharam pedindo paz. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Na quarta-feira (24), estudantes, lideranças religiosas e comunitárias, militantes dos direitos humanos, trabalhadores, artistas, moradores de favelas e de outras partes da cidade se uniram na “Marcha Basta de Violência! Outra Maré é Possível” que reuniu cerca de 4 mil pessoas no interior do conjunto de favelas da Maré², na zona norte do Rio de Janeiro, para pedir paz na comunidade. Pequenos grupos saíram de diferentes partes da favela e se encontraram na região conhecida como “Divisa”, entre a Nova Holanda e a Baixa do Sapateiro. Um lugar onde muitas pessoas, há anos, morrem por causa de operações policiais e conflitos entre facções rivais. Na esquina de uma das principais ruas foi montado um pequeno palco. Ali, as fachadas das casas e a memória dos moradores estão marcadas pela violência.

Pelo direito de viver diziam os cartazes. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Organizado pelo “Fórum Basta de Violência! Outra Maré é Possível“³, a Marcha teve o objetivo de mobilizar a população para que, de forma permanente, possa pensar iniciativas criativas e colaborativas para enfrentar as muitas violações que sofrem no cotidiano. Segundo o Fórum, apenas de janeiro a abril deste ano, 18 pessoas morreram por armas de fogo na comunidade da Maré, em decorrência de operações policiais e da disputa entre grupos rivais. O número já supera a quantidade de mortos ao longo de todo 2016, que somou 17 vítimas.

“Outra Maré é possível. Outra cidade é possível. Outro Brasil é possível”, gritava Joelma Souza, moradora da comunidade Nova Holanda e educadora da Redes da Maré.  Para Jorge Barbosa, coordenador do Observatório de Favelas, esse ato conseguiu chamar atenção da cidade em um momento muito difícil para o país. “Esse é o momento de mostrar que as favelas constroem essa cidade há mais de 100 anos. É importante que nós tenhamos o direito à cidadania garantida e efetivada”, comenta.

Bhega Silva, morador do Parque União, trabalha na própria comunidade divulgando eventos usando sua bicicleta. Ele relata que já teve seu trabalho impedido por conta da violência. “O ato foi bonito porque fez com que os moradores circulassem e ficassem nesse espaço tão estigmatizado como é a “Divisa”. Estou emocionado. Em 2013, quando fomos para a Avenida Brasil protestar contra a chacina⁴, o ato foi bom, mas entrar e andar pela comunidade está sendo muito melhor”, comemora.

Alunas das escolas da Maré. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

“Eu só quero é ser feliz”

Um dos momentos mais bonitos da Marcha foi quando crianças, das diferentes escolas da Maré, se juntaram à manifestação. Os pequenos, junto com seus professores, chegaram cantando, sorrindo e pedindo paz. “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde nasci…”⁵ era cantado como se fosse um hino. Muitas dessas crianças convivem com violência, medo e perdas. Esse ano, as escolas da comunidade fecharam as portas durante 11 dias. Em todo ano de 2016, foram 28 dias sem aula.

Natasha Carvalho, há seis anos professora de língua inglesa da Escola Municipal Nova Holanda, diz que por causa da violência cada dia em sala de aula com os alunos é importante. “Temos que aproveitar o tempo com eles ao máximo, porque não sabemos se no dia seguinte vamos conseguir entrar para trabalhar ou se os alunos vão ter a tranquilidade necessária pra aprender”, explica. A professora lembra que a Maré já teve a presença policial e das forças armadas, mas o cenário pouco mudou. “É muito dolorido quando vemos um aluno sofrer pela perda de um parente por causa da violência. São muitas histórias. De mortes até violência sexual dentro de casa”, lamenta. Os familiares de Natasha já se acostumaram, mas ela revela que, quando iniciou seus trabalhos na Maré, chegaram a pedir para que ela largasse e fizesse outro concurso. “Eu entendo o medo. Mas segui e estou aqui”, destacou.

Galega, como é conhecida, há quatro meses foi atingida por uma “bala perdida” e se emocionou com a Marcha. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Mãe de três filhos, Natália Fernandes dos Santos, moradora da comunidade conhecida como Fogo Cruzado, uma das que ficam à margem da Linha Amarela⁶, diz que fica desesperada quando há operações policiais. “Levo meus filhos para escola, mas se chego no meio do caminho e escuto alguma coisa já fico tensa”, comenta. Natália lamenta o fato de não achar mais a escola um lugar seguro para seus filhos. “Hoje em dia, nem dentro de casa estamos seguros. Sendo mãe dentro do Complexo da Maré fico preocupada em toda parte, dentro de casa ou na escola”, explica ela, que já ficou presa no meio do tiroteio.

Outro pensamento recorrente entre os moradores é o de saírem da Maré. Mas a pergunta é: para onde ir? Natália lembra que muitos dos seus colegas de infância que entraram para o mundo do crime estão mortos. “Os que não entraram, tiveram a oportunidade de sair da Maré. Se eu tivesse oportunidade, sairia também. Esse é um sentimento comum. Vira e mexe as pessoas falam sobre isso em rodas de conversa”, relata. 

“As mães da favela não têm direito ao luto”

Mães de Manguinhos. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Após a caminhada, a carta política do ato foi lida por jovens moradores. Artistas da comunidade fizeram apresentações musicais e de dança, e mães que perderam seus filhos para a violência deram seus depoimentos. Foi o caso de Dilma Xavier Galdino, mãe de Davison da Silva, morto aos 15 anos quando saía para ir à padaria, na favela Parque União. “É importante que todos vejam o que acontece aqui, a violência que nós vivemos, inclusive a dos policiais”, afirmou.

Vitor Santiago Borges foi baleado por militares do Exército em fevereiro de 2015 quando chegava de carro à Maré. Ele agradeceu as pessoas que participaram da Marcha. “Sou vítima da violência gratuita do Estado. Durante muito tempo fiquei calado, até que as coisas continuaram acontecendo. Não quero que o que aconteceu comigo, aconteça com outros moradores da comunidade”. Irone Maria Santiago, mãe de Vitor, fez uma fala emocionada pedindo que as mães da Maré não se calem diante do abuso de autoridade. “Tenho buscado dar voz às mães da Maré. As mães e esposas não correm atrás porque têm medo, mas não podemos mais nos esconder. Precisamos lutar porque isso tem que parar”, ressalta. Irone diz ainda que essa foi a primeira vez que a violência chegou tão perto. “Sempre achei que só ia acontecer com os outros ou com quem era envolvido com o tráfico. Mas ela me alcançou e a primeira coisa que tanto a sociedade quanto o Estado fizeram foi marginalizar meu filho. Nós mães, como a Ana Paula Oliveira falou, ‘não temos direito ao luto’. Não temos direito a nada”, disse.

As marcas de tiros da fachada das casas receberam flores. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

As Mães de Manguinhos também marcaram presença empunhando cartazes com os rostos dos seus filhos assassinados. Ana Paula de Oliveira, mãe do jovem Johnatha de Oliveira, assassinado por um tiro nas costas em 2014, lembrou que o Projeto de Lei (PL) 182/15, que prevê o afastamento das ruas de policiais acusados de participar de mortes durante confrontos, foi retirado da pauta de votações a “pedido” do comando da Policia Militar. Isso aconteceu uma semana antes da morte de Maria Eduarda Alves da Conceição, assassinada aos 13 anos, e de policiais militares serem flagrados executando dois homens em frente a escola da jovem, localizada na Pavuna, na Zona Norte do Rio. De acordo com o PL, algumas ações devem ser feitas, obrigatoriamente, pelo policial, como a solicitação imediata de equipe de apoio para isolamento e preservação do local da ocorrência do crime, e, em caso de lesão corporal, o socorro à vítima deverá ser feito somente por equipe médica do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Pela proposta, o policial reincidente deverá ser afastado de suas funções por um ano.

De acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP), que divulga mensalmente as estatísticas de violência no estado do Rio de Janeiro, 920 pessoas foram mortas pela polícia em confrontos em 2016, quase sempre durante operações em favelas. O número representa um aumento de 42% em relação a 2015. “Eu sinto repúdio a toda essa corja que com uma canetada ajuda a assassinar nossos filhos. Essas pessoas [parlamentares] também devem ser responsabilizadas. Enquanto pensarmos apenas no policial, a pessoa que puxa o gatilho, as coisas vão continuar como estão. É preciso mudar as leis. A canetada também está assassinando nossos filhos”, analisa Ana Paula.  

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[1] Jornalista da FASE.

[2] A Maré possui 140 mil habitantes e é dividida em 16 comunidades. A região sofre há anos com operações policiais e o conflito entre as facções que brigam pelo território.

[3] Criado a partir da articulação de instituições da sociedade civil, de órgãos públicos, privados e moradores da Maré.

[4] No dia 24 de junho de 2013, dez pessoas foram mortas em uma operação policial do BOPE.

[5] Letra do funk “Rap da felicidade”, dos mc’s Cidinho e Doca escrito na década de 90.

[6] Uma das principais vias da cidade.