14/11/2017 14:59
Rosilene Miliotti¹
Mais de 300 mulheres participaram da VI Feira Agroecologica das Mulheres contra a Violência², em Camamu, no Baixo Sul da Bahia. Este ano, o evento contou com a participação de agricultoras, marisqueiras, quilombolas, assentadas e pescadoras dos territórios do Sul, Baixo Sul e Vale do Jequiriçá. Um espaço plural que envolve diferentes níveis de articulação e apresentações artísticas e culturais, assessoria jurídica, orientações sobre sexualidade e prevenção a doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), terapia auricular, preparação de turbantes e trançado de cabelos. “O objetivo é visibilizar a produção dessas mulheres e às manifestações culturais dos territórios, fortalecendo a autoestima e identidade das participantes”, conta Ana Celsa Bonfim, do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (SASOP).
Além de ser um espaço para comercialização de alimentos, a feira se reafirma como importante lugar político de afirmação dos direitos das mulheres do campo, especialmente na discussão da violência de gênero. Rosélia Melo, educadora do programa da FASE na Bahia³, explica que a troca de experiências é muito valorizada pelas participantes porque implica em saber como cada uma supera dificuldades comuns.
O enfrentamento à violência contra mulher e a busca às alternativas para o aumento da renda, são ações estratégicas no trabalho da FASE no estado com mulheres nos territórios do Baixo Sul e Vale do Jiquiriça. A educadora revela ainda que às vezes chegam notícias sobre casos de violência física e moral, mas a que mais afeta as mulheres assessoradas é a patrimonial. “A violência patrimonial é quando a mulher trabalha com a mesma carga horaria do companheiro, mas na hora da comercialização o homem acaba embolsando todo o dinheiro como se ele fosse o único responsável pela produção e se acha no direito de não dividir os lucros com a mulher”, explica. “Tentamos driblar essa questão fazendo com que elas se organizem e a realização da feira é uma forma dessas mulheres venderem seus produtos e voltar para casa com o dinheiro fruto do seu trabalho”, comenta Roselia.
Para Cosmiana da Conceição, moradora da comunidade do Barroso, secretaria da associação da comunidade e monitora do programa “Mais Educação”, a feira é um momento em que as mulheres podem se manifestar e expor seus sentimentos. “Aqui mostramos ao povo que somos capazes de produzir com amor e dedicação e que temos força para juntas lutarmos para melhorar a vida nas nossas comunidades, cidades e até do país. Sou negra com muito prazer, mas não quero ser só dona de casa, quero ser tudo: dona de casa, trabalhar na minha roça e onde mais eu quiser”, ressaltou.
Apesar de conseguir reunir um número significativo de participantes, Ana explica que essa foi a primeira vez que a organização não conseguiu pagar pelo transporte das mulheres. “Nessa edição nós identificamos diversos avanços, entre eles o fato das mulheres se identificarem e se valorizarem enquanto agricultoras e se auto organizarem para participar da feira”, comemora.
Violência institucional
“É preciso denunciar a violência contra as mulheres”, assim o agricultor Gilmar, do assentamento Zumbi dos Palmares, iniciou sua fala ao perceber que as mulheres no evento não queriam se expor, denunciando a violência que cotidianamente estão submetidas nos hospitais públicos da região. “Uma companheira mais jovem foi ter seu filho na maternidade pública de Camamu. Ela pariu sozinha e a criança nasceu morta. Esse crime é histórico nessa cidade. A maternidade é sagrada, e infelizmente temos vários casos iguais”, afirmou. Gilmar sugeriu que o Ministério Público abra uma ação civil pública.
Gilmar contou ainda que na sua família já houve casos de morte por complicações durante e após o parto na maternidade de Camamu. “Minha irmã e prima morreram por negligência pública. Tenho duas netas e não quero que elas passem por isso. Vamos debater a questão das parteiras, elas devem voltar. Precisamos investir em nós mesmos”, disse emocionado. “Peço desculpa e licença para minha emoção. Os bichos têm veterinários e nós temos o SUS [Sistema Único de Saúde]. Não posso aceitar que a criança nasça na maternidade sem assistência digna”, explica.
“Gilmar expôs uma das violências que a gente percebe de forma frequente no campo da agricultura familiar e principalmente quando a mulher é negra. Há um descaso muito grande do poder público com a saúde da mulher tanto na hora do parto como no acompanhamento da gravidez e com os exames preventivos. Nem todos os hospitais públicos dispõe de equipamentos para exames como preventivos e de diagnóstico de câncer de mama, por exemplo”, revela Rosélia.
Pela Divisão do Trabalho
Fruto de uma iniciativa da Rede Feminismo e Agroecologia do Nordeste, a campanha provoca uma reflexão sobre a desigualdade de direitos e a sobrecarga de responsabilidades das mulheres no campo – responsáveis pelo cultivo, pela família, pela educação dos filhos, pelos cuidados da casa, pela complementação da renda. “A campanha vem corresponder ao desejo que elas trazem de que os homens possam evoluir e dar passos sólidos para uma igualdade. A escola e a família têm um papel decisivo para a discussão desses temas e a introdução dos homens nestas reflexões”, conta Janine Jesus França, educadora da Escola Agrícola Comunitária Margarida Alves.
[1] Jornalista da FASE.
[2] Evento organizado pelo SASOP, FASE, Koinonia , Escola Agrícola Comunitária Margarida Alves, Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Camamu, Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar de Presidente Tancredo Neves, contou com o apoio da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) e das mulheres agricultoras do Baixo Sul.
[3] O conteúdo deste artigo é de nossa responsabilidade exclusiva, não podendo, em caso algum, considerar que reflita a posição da UE.