23/03/2018 14:38
Julianna Malerba¹
Enquanto um conjunto de políticas voltadas para o campesinato tem sofrido, desde o golpe, profundos cortes orçamentários a ponto de serem inviabilizadas, são ampliados os recursos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para emissão de títulos de posse, provisórios e definitivos, para assentados da reforma agrária. Em 2017, foram emitidos 123 mil títulos, um recorde em relação aos governos anteriores, cuja média entre 2003 e 2016 girou em torno de 20 mil títulos ao ano.
No mesmo ano em que o Programa de Regularização Fundiária do Incra recebia o maior aporte de recursos em toda a sua história, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) experimentava uma redução orçamentária de 66%: o PAA garante aos produtos da agricultura familiar o acesso a mercados institucionais e representa uma das principais fontes de financiamento para o setor.
Para 2018, a previsão de cortes no Programa é ainda mais severa, indicando uma clara intenção de torná-lo inoperante: segundo o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentária (PLDO) estavam previstos apenas R$ 750 mil ao PAA contra R$ 330 milhões destinados em 2017. Caminho semelhante tem sido traçado aos programas destinados à criação, desenvolvimento e infraestrutura aos assentamentos, cuja previsão de cortes para 2018 variavam entre 60 e 80%.
Mas, em meio a cortes tão significativos, o governo já anunciou que pretende, em 2018, repetir a meta de titulação, tendo já entregue 50 mil documentos em solenidades que contaram com a presença do próprio presidente. O que explica tamanha disparidade?
Os dados evidenciam que a prioridade da atual política agrária é produzir mais proprietários e menos assentados, tendência que já vinha sendo traçada antes do golpe. Entre 2015 e 2016, o número de famílias assentadas caiu de 26.335 para 1.686, chegando em 2017, justamente quando o Incra bate o recorde de titulações, a zero. Ou seja, enquanto milhares de títulos são concedidos, nem uma só família foi assentada. Não por acaso, o valor destinado à obtenção de terras para a reforma agrária para 2018, segundo o PLDO, teve uma redução de 84% e contará com R$ 34,2 milhões. A título de comparação, em 2015, ano em que o número de criação de assentamentos já estava em queda, os recursos para obtenção de terras para reforma agrária totalizaram R$ 800 milhões.
Antes, o Incra só emitia títulos aos assentados depois de comprovar a autossuficiência dos assentamentos com o objetivo de justamente evitar que essas terras voltassem rápido ao mercado e gerassem reconcentração fundiária. A nova política – que conta até com incentivo de meta de titulação às superintendências regionais e que ficou conhecido como titulômetro – vai em sentido inverso. Ao conceder títulos de domínio sem que sejam aferidas as condições de reprodução econômica do assentamento, o que o governo faz é se isentar de um eixo estruturante da reforma agrária: garantir políticas de infraestrutura e apoio para que os agricultores produzam e permaneçam na terra.
Ao se tornar proprietário, o assentado perde o acesso a diversas políticas públicas fundamentais que garantiriam sua permanência no campo. Um exemplo é o financiamento a juros baixos por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Com o título da terra, o agricultor passa a ter que buscar crédito junto aos bancos, a juros mais altos, o que pode levar a um endividamento e a consequente perda de sua terra.
Nos últimos 10 anos, a terra foi o ativo que apresentou maior valorização: entre 2009 e 2014, os preços médios da terra no Brasil cresceram 95%, com destaque para o Centro-Oeste, onde esse índice chegou a 130%, coincidindo com a expansão da fronteira agrícola que avança em direção a Amazônia e ao Cerrado Nordestino, áreas prioritárias para as ações de regularização fundiária.
Apesar de sua menor liquidez, a terra – e também o setor agroindustrial – tem se tornado um investimento bastante atraente ao capital especulativo, sobretudo após a crise financeira de 2008. A captura de terras é, portanto, um fator crucial para entender a prioridade que tem sido dada pelo Incra à regularização fundiária nos assentamentos de reforma agrária.
Do mesmo modo, a edição de outras medidas correlatas que visam reestruturar o mercado formal de terras no Brasil, a exemplo da MP n° 759, convertida na Lei 13.465/17. Ela alterou os regimes jurídicos relacionados à regularização fundiária rural e urbana e criou mecanismos que facilitam os critérios de titulação e a antecipação da emancipação dos assentamentos, viabilizando a política de titulação em curso. Também modificou as regras de alienação dos imóveis da União, estipulando preços bem abaixo do mercado e ampliou para 2.500 hectares o limite da área de terra devoluta passível de ser regularizada na Amazônia pelo Programa Terra Legal, facilitando a grilagem, já que uma área desse tamanho não corresponde a uma ocupação de boa fé, destinada à produção e ao trabalho familiar.
Portanto, o que o governo vem anunciando como política de apoio à reforma agrária deverá resultar, na verdade, em uma nova dinâmica de concentração fundiária. Dinâmica essa que, apesar de contar, cada vez mais, com o aparato normativo a seu favor, segue acionando formas tradicionais e truculentas de coerção.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) registrou 65 assassinatos no campo em 2017, quase metade deles em situação de massacres (em Colniza (MT), Pau D’Arco (PA), Lençóis (BA) e Vilhena (RO)). Outras formas de violência por meio de expulsões e despejos têm sido recorrentes. A mais recente ocorreu no último dia 17 de março, quando o acampamento Helenira Resende, em Marabá (PA), sofreu uma pulverização aérea de agrotóxicos. A área atualmente abriga as famílias sem-terra que foram despejadas em novembro de 2017 de um terreno reivindicado pelo Grupo Agro Santa Bárbara, a quem as famílias atribuem o ataque aéreo.
Essa situação revela que a disputa em curso não se limita à arena normativa, mas segue se dando no nível territorial, reatualizando a forma historicamente truculenta como a luta de classes se configura no Brasil. Luta que teve sempre como pano de fundo o controle desigual e predatório sobre a terra e seus recursos.
[1] Julianna Malerba é do Grupo Nacional de Assessoria (GNA) da FASE e doutoranda em planejamento urbano e regional pela UFRJ. Como pesquisadora e ativista, integra a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) e participa do coletivo Globale Rio. Esse artigo foi publicado originalmente no site “Brasil em 5“.