30/07/2018 16:37
Rosilene Miliotti¹
“Vivemos em tempos em que as violências, as desigualdades, o racismo e o adoecimento são dinâmicas recorrentes na vida cotidiana. Contudo, as mulheres negras são aquelas que sentem mais profundamente os seus impactos. […] A busca por soluções para o enfrentamento ao racismo e a violência institucional tem exigido um esforço muito maior da sociedade civil e dos órgãos públicos, especialmente num contexto de desmonte dos direitos sociais”, dizia a carta-convite para a oficina “Práticas de cuidado em contextos de violência e racismo”, realizada no dia 25 de julho, no Museu da Maré, no Rio de Janeiro, a atividade fez parte da programação do III Julho Negro².
A oficina realizada pela Rede de Comunidades e Movimento Contra a Violência, Julho Negro, programa da FASE no Rio de Janeiro, Justiça Global, Iser, Renfa (Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas), e Com-Por Pretas teve como objetivo aprofundar o tema do cuidado e a sua importância para a redução dos impactos psicossociais das violências e violações de direitos sofridas por mulheres. Durante a atividade, informações, protocolos e conhecimentos sobre as práticas na defesa e garantia de direitos das mulheres foram compartilhados. Cerca de 70 ativistas de movimentos e organizações sociais, coletivos, grupos, profissionais da saúde, da assistência social e do direito que atuam com grupos e populações que sofrem violações participaram do encontro.
Durante o encontro, os participantes foram convidados a relaxar e participar de uma dinâmica onde um cuidava do outro e se deixava cuidar. Rachel Barros, educadora do Programa da FASE no RJ, explica que a atividade foi importante por possibilitar o diálogo entre militantes, ativistas e profissionais da área da saúde e do direito. “Debater o cuidado dentro da institucionalidade não deve ficar restrito somente a um cuidado pessoal, deve implicar em uma mudança de postura de atuação dentro das políticas públicas”, afirma. A oficina foi a primeira da ação “Violência institucional e políticas públicas: fortalecendo mulheres vítimas de violência”.
A educadora ressalta que entre os objetivos está a produção de uma narrativa sobre as formas de segregação e controle dos territórios de vida das mulheres que denuncia a relação entre a violência institucional, a violência contra mulher e as recorrentes intervenções militarizadas nas favelas e periferias da região metropolitana do RJ. “Para nós, realizar essa atividade dentro do Julho Negro também foi uma forma de pensar essa relação com a militarização em curso. Outro ganho foi ter sido feito no Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha³. Foi uma oportunidade de refletir sobre o lugar dessa mulher nos seus espaços de luta e militância, o cuidado a essa mulher negra que está sempre nas piores colocações, mas também está na linha de frente dos enfrentamentos. Então, realizar o encontro nesse dia e dentro desse evento ampliado foi uma forma de criar estratégias de atuação”, comemora.
Chacina no Rio de Janeiro, no Ceará e em qualquer lugar
De acordo com o Mapa da Violência, desde as chacinas da Candelária e de Vigário Geral, ambas em 1993 no Rio de Janeiro, mais de meio milhão de jovens entre 15 e 24 anos foram assassinados no Brasil. Entre essas vítimas está o filho da cearense Edna Carla Sousa, do grupo Mães do Curió que participou da atividade, se emocionou diversas vezes ao falar de seu filho. “No dia 12 de novembro de 2015, policiais militares (PMs) do estado do Ceará mataram onze jovens, entre eles o meu filho. E isso aconteceu porque um policial, que estava à paisana, reagiu a um assalto e foi morto. Meu filho, Alef Sousa, foi atingido por três tiros e ainda assim poderia ter sido socorrido, mas eles não deixaram. Alef tinha 17 anos e eu o criei para servir ao Exército Brasileiro. Lembro do meu filho se olhando no espelho e dizendo ‘mãe, no próximo ano eu vou servir o exército’. Só que a PM não deixou. Hoje tenho que ser forte por mim e por meu filho”, se emociona.
Edna conta ainda que um dos jovens foi tirado de dentro do ônibus, humilhado, espancado e atropelado pela viatura mesmo depois de se ajoelhar pedindo para não ser morto. Outro foi atingido e correu para dentro de casa, mas morreu nos braços da mãe. “Foi muita crueldade. A maior parte das vítimas não se conhecia e nem eram do mesmo bairro. Eu não fui logo para as ruas lutar por justiça. Além de eu ter perdido meu filho, passei pela decepção de ter alimentado um sonho. No começo a dor era tão grande que eu mal falava, mas uma jovem amiga de uma das vítimas foi para as ruas e me chamou para lutar pelo meu filho. Hoje, no grupo, nós nos ajudamos e damos força uma para outra. Infelizmente, chacina virou moda no Ceará. Só neste ano de 2018 já aconteceram oito chacinas lá”, revela.
As Mães do Curió, assim como tantos outros grupos de mães de vítimas da violência do Estado e de chacinas executadas por policiais, querem que os responsáveis pelos assassinatos sejam exonerados dos seus cargos na PM. “Eu achava que tudo que a PM fazia era certo e por isso deixo um apelo às mães do Brasil: não espere que isso aconteça na sua casa. Não feche seus olhos achando que todos os PMs são bonzinhos. Eu paguei pela bala que matou meu filho. Paguei a farda, o salário e o carro desses PMs criminosos. Paguei e continuo pagando, e por isso quero a exoneração deles”, exige Edna.
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Veja outras fotos no Flickr da FASE.
[1] Jornalista da FASE.
[2] Julho Negro reúne organizações ao redor do mundo que pautam a luta contra a militarização e o racismo como o Black Lives Matter (Vidas Negras importam) dos EUA, mães e familiares da Palestina, do México e da Associação de Haitianos do Brasil.
[3] O dia 25 de julho tem como objetivo fortalecer as organizações voltadas às mulheres negras e reforçar seus laços, trazendo maior visibilidade para sua luta e pressionando o poder público.