08/01/2019 16:00
Amélia Gonzalez¹
O risco preto sobre a citação “Consea: órgão de assessoramento imediato ao Presidente da República, responsável pelas seguintes atribuições” na Lei federal número 11.346 e a frase, em azul, que diz “Revogado pela Medida Provisória número 870 de 2019” não deixam dúvidas sobre o fim do órgão. Criado sob inspiração de Herbert de Souza, o Betinho, em 1994, quando Itamar Franco era presidente, e trazido à tona em 2006 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) teve um papel relevante para incluir os mais pobres e tirar milhões de pessoas da fome. Foi também referência internacional e serviu de exemplo para muitos países, sobretudo pela característica de sua composição: dois terços da sociedade civil, um terço do governo, e à sociedade civil cabia a presidência.
Como não podia deixar de ser, a extinção do Consea, proposta pela gestão de Jair Bolsonaro, mas que ainda precisa ser referendada pelo Congresso Nacional, causou indignação em muitos movimentos sociais. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que compõe o Conselho, foi a primeira a lançar nota em repúdio, seguida pela Ação da Cidadania, organização criada pelo Betinho. A Organização pelo Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas chamou a medida de “Anti-povo”.
A antropóloga e assessora da FASE, Maria Emília Pacheco, foi a primeira mulher a presidir o Consea, em junho de 2017. Busquei saber sua opinião sobre a extinção do órgão e qual sua expectativa no sentido de reverter a medida. Maria Emília falou sobre alguns bastidores das mesas de negociações do Conselho, criado quando o país vivia sua redemocratização, e está certa de que é preciso lutar por ele hoje, tentando convencer os parlamentares. Entre outras coisas, porque a sua extinção está “ferindo um direito que consta da Constituição Brasileira no artigo 6, que é o direito humano à alimentação”.
Mas, de verdade, Maria Emília não parece muito otimista. E faz um alerta sobre algo ainda mais crucial: há, segundo ela, “um desmonte muito profundo” da política de segurança alimentar e nutricional, o que é muito preocupante. Leia abaixo o teor da entrevista:
Qual a importância do Consea para a população?
O Consea é um dos pilares da concretização do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), criado em 2006 para que o poder público, com a participação da sociedade civil organizada, formule e implemente políticas, planos, programas e ações para assegurar o direito humano à alimentação adequada. Ele não só aplica este princípio da participação social, como também é o espaço por excelência de monitoramento e formulação de propostas para a política de alimentos.
E como se explica que o governo atual queira extinguí-lo?
Não dá para explicar o que está se passando na política de segurança alimentar no atual governo só analisando o ângulo da participação social. Isso é fundamental, claro, e devo dizer que o que mais chamou a atenção das visitas de comitivas internacionais que nós fomos recebendo durante todos estes anos foi, justamente, a composição do Consea: dois terços da sociedade e um terço do governo, sendo a presidência da sociedade civil. O Brasil inspirou vários países. Isto é uma parte da questão, mas ela é mais complicada, porque há um desmonte muito profundo, uma desestruturação da política de segurança alimentar.
Explica melhor, por favor.
Não dá para entender a política de segurança alimentar e nutricional se não estivermos atentos a como ela interage com muitas outras políticas. O Ministério da Agricultura, no governo Bolsonaro, passa a ser um superministério, o que reafirma, de forma categórica, a hegemonia do agronegócio. Isto impacta a vida das populações, porque é para este ministério também que se deslocou a atribuição de cuidar dos indígenas e dos quilombolas. É uma negação da existência desses povos, como diz a nota da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Portanto, é preciso analisar de forma mais profunda o que está acontecendo com a política indigenista, ambiental, relacionada à segurança alimentar. Se formos analisando cada aspecto desses no diálogo com a política ambiental vamos ver que a política de segurança alimentar e nutricional está desmoronada.
A senhora disse que há uma espécie de namoro da comunidade internacional com o Consea. Mas, e aqui dentro de casa, no Brasil, o Conselho era bem considerado?
Sim, era. É claro que tem contradições de posicionamentos, porque não tivemos mudanças fundamentais como a Reforma Agrária, tivemos a votação do Código Ambiental, que atende bastante aos ruralistas, e já havia, no governo de Dilma Rousseff, medidas em debate sobre mudanças do Código de Mineração. Ao mesmo tempo, não conseguimos cumprir algumas iniciativas para checar a regulação da indústria de alimentos, o aumento do consumo de super processados, que sempre foi uma das tônicas do nosso debate no ultimo período. Mas foi no Consea que debatemos a proposta da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, garantimos essa proposta que se transformou em realidade em 2012. Teve um papel significativo também a Marcha das Margaridas, onde Dilma assumiu o compromisso com as mulheres do campo. Tivemos ainda o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, pelo qual estamos ainda em luta.
E tem agora um projeto de lei avassalador que é, justamente, para flexibilizar a compra de agrotóxicos…
Sim, nossa ideia inicial, na 5ª Conferência Nacional [de Segurança Alimentar e Nutricional], era ter um programa de redução de agrotóxicos, mas não conseguimos. A ideia, ali, era pelo menos não ter mais uma subsídios para a produção de agrotóxicos. Enquanto isso, crescia no Congresso o apoio a este Projeto chamado de PL do Veneno. Foi então que os movimentos sociais elaboraram o programa que já estava bem definido pelos participantes da Conferência. Mas foi um ponto que teve muita tensão dentro do próprio Consea, houve muitas mesas de debates.
Por que a tensão no próprio Consea?
Porque a produção dominante do país é de larga escala, é um país que se tornou exportador de comoditties agrícolas e minerais. A tensão, é claro, não ocorreu na parte da sociedade civil. Não se esqueça que o órgão tem também a participação do governo. Mas foi no Consea que conseguimos também propor o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos], com uma iniciativa inédita na história: compras públicas de alimentos produzidos perto de casa. O PAA abriu as portas para o Pnae [Programa Nacional de Alimentação Escolar], que vem do tempo do Governo Vargas e foi aperfeiçoado. Garantiu pelo menos 30% de compra de alimentos da agricultura familiar e rompeu com a Lei de Licitação 8.666 porque criou um mecanismo de Chamada Pública mais apropriado para os agricultores familiares. Estas mudanças significaram o reconhecimento do papel econômico, social e ambiental desses segmentos de agricultores, o campesinato.
E o que aconteceu com o PAA neste orçamento de 2019?
Deixaram o mínimo, uma modalidade que consegue acolher só a produção do médio produtor para vender a exército e hospitais, diferente das outras modalidades, que acolhiam os pequenos para vender a asilos e creches. É bom lembrar também que houve uma criminalização desse programa, uma Operação chamada Agro Fantasma, da Polícia Federal com participação do atual ministro Moro, da Justiça.
Como foi esta operação?
Com alegação de que havia corrupção chegaram a prender camponeses, que depois foram soltos. Eles consideraram crime, por exemplo, a entrega de produtos que não estavam no contrato. Se era para entregar laranja e entregavam um produto análogo porque a terra não tinha dado laranja naquela safra, isto era considerado crime.
A sociedade civil está mobilizada para tentar recuperar o Consea no Congresso?
As pessoas estão estudando primeiro a proposta do governo. Há, inclusive, o entendimento de que é inconstitucional porque, ao transfigurar a Lei de Segurança Alimentar e Nutricional eles estão, ao mesmo tempo, ferindo um direito garantido no Artigo 6 da Constituição: o direito humano à alimentação.
[1] Texto originalmente publicado no G1. Amélia Gonzalez é colunista do site e foi editora por nove anos do caderno Razão Social, do jornal O Globo.