22/10/2019 13:23

Vitor Taveira¹

Marcelo Calazans. (Foto: Flavia Bernardes/FASE)

O recente derramamento de petróleo no litoral Nordeste brasileiro, que pode atingir também a costa capixaba, tem causado preocupação em governantes, ambientalistas, especialistas e cidadãos comuns. Em entrevista, Marcelo Calazans, coordenador do programa da FASE no no Espírito Santo (ES), fala sobre as lições que podem ser tiradas dessa tragédia e também dos impactos da exploração petroleira no estado. Há anos a organização vem trabalhando com as comunidades afetadas pela indústria do petróleo, sendo uma das impulsionadoras da Campanha Nem Um Poço a Mais, inédita a nível nacional.

Que lições se pode tirar desse último incidente com derramamento de petróleo no litoral brasileiro, que pode chegar ao Espírito Santo?

A primeira lição desse mega-vazamento no oceano e no litoral do Nordeste é que não existe exploração petroleira segura. Com muita propaganda das empresas petroleiras, omissões do Estado, e também com o aval de cientistas e pesquisadores que lhes servem, criou-se o mito da tecnologia precisa, como se em uma exploração petroleira estivesse tudo sob controle.

Seja no Golfo do México com a BP, no Campo de Frade com a Chevron; na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro (RJ); na Ilha de Maré, na Bahia (BA); ou em São Mateus (ES) com a Petrobras, os vazamentos sempre ocorrem. Seja em terra ou no mar, na extração, no poço, no transporte por caminhões, navios ou dutos, nos terminais de armazenamento e abastecimento, nas refinarias e ainda nos descartes de seus derivados – plásticos, agroquímicos, fumaça da queima de seus combustíveis -, os vazamentos sempre ocorrem

Em cada uma de suas partes, a indústria petroleira sempre vaza. O único lugar em que o petróleo está seguro é no subsolo! Sua extração e uso deveriam ser muito mais criteriosos e tema de um debate mais abrangente na sociedade cada vez mais petrodependente.

E apesar de ser a principal responsável pelo aquecimento global, a indústria petroleira segue em expansão, explorando territórios cada vez mais complexos, nas geleiras, nos oceanos, em áreas de grande risco, como no pré-sal. Se a nível do mar, em terra, sempre há vazamentos, conforme relatam as comunidades que habitam na vizinhança da extração, como vão garantir que não haverá a 6 km do espelho d’água do Atlântico? A 250 km da costa?

Daí uma segunda lição: Não há planos de contingência, nem das empresas, nem do Estado. Operam com manuais de maquinário e com pesquisas de variáveis sob controle, como em uma cadeia lógica do necessário; daí, na hora e na vez do vazamento, não sabem lidar com a contingência, o imprevisível e imponderável.

Foto: Adema/Governo de Sergipe

Como vão proteger os berçários de pescado e as pedras e corais de marisco que desconhecem e destroem? Como vão garantir a sobrevivência dos povos da pesca artesanal que ignoram? E como vão impedir que o óleo atinja os manguezais e as matas de restinga? E o que vão fazer com as cidades que vivem do turismo, suas praias, bares, restaurantes, barcos, quiosques, hotéis e pousadas, seus festivais de frutos do mar? E quais as novas doenças que estarão acontecendo a partir dessa contaminação? Os postos de saúde estarão equipados?

Impressionante como que a constância de vazamentos ainda não gerou sequer protocolos mais complexos de ação. Diante do mais arriscado, as empresas e os governos só se importam com os lucros e os royalties e se portam sem nenhuma cautela e sem qualquer prevenção, dois princípios básicos de relação ancestral dos povos com a natureza.

A atenção das autoridades e da mídia está voltada para achar as empresas culpadas e tirar daí uma casca de ação política, anti-Venezuela ou anti-Shell ou anti-piratas, conforme o gosto. Claro, embora o crime do vazamento ainda esteja sem autor, é sempre mais fácil encontrar as empresa culpadas, abrir um procedimento de termo de ajuste de conduta, aplicar uma multa, transformar tudo em um valor a ser compensado ao Estado, criar uma fundação gestora do conflito [como a Renova no caso da Samarco], que vai contratar outras empresas para enfim começar identificar famílias e áreas afetadas, que poderão vir a ser compensadas e reparadas. Já conhecemos este filme e ele vai se repetir por muitos anos, já que a exploração no mar está só começando.

Foto: FASE/ES

O ES esteve por muito tempo como segundo maior extrator de petróleo do país. Quais os impactos sociais e ambientais dessa exploração? Quem são os principais afetados? 

No ES, a indústria petroleira já possuiu um grande passivo social e ambiental. Ainda no início dos anos 60, são muitos os relatos de ex-trabalhadores e moradores do norte do estado sobre as pesquisas sísmicas da Petrobras. Subiam desde Linhares, cruzavam São Mateus e Conceição da Barra dezenas de equipes de trabalhadores terceirizados contratados para detonação das bombas de dinamite. E não havia obstáculo. Drenavam lagoas, aterravam córregos e nascentes, derrubavam mata. Não muito longe da costa, explodiram milhares de bombas. Mas não todas! Algumas estão até hoje por ali, enterradas, aguardando uma detonação. Tanto é que a própria Petrobras criou um disk-bomba e espalhou cartazes pelas comunidades da região. Pouca chance disso ser um plano de contingência, pois o risco do descobridor explodir com a descoberta não está no cálculo.

Melhor que na propaganda da Petrobras, e de seus tecnocratas, para se compreender um pouco da história dos impactos da indústria petroleira no ES, vale muito visitar as áreas onde estão os chamados poços maduros, aqueles abertos nos anos 70 e 80. Se parar uma hora nas comunidades da vizinhança desses poços e conversar com as pessoas, os relatos são os mais chocantes.

Indígenas botocudos da aldeia de Areal relatam uma dezena de casos, entre eles uma grande explosão que atingiu todas as casas e obrigou que as famílias se movessem para outra parte, até que o vazamento fosse contido. E dutos e estações de gás do lado das casas, no trajeto das crianças. Nunca houve reparação!

Em Regência, ribeirinhas e pescadores narram diversos vazamentos ao redor dos poços, no carregamento de caminhões, nos dutos e na área de processamento, onde está “o fogo” 24h queimando a vida fossilizada de bilhões de anos atrás e lançando esses fantasmas no espaço. A família onde se instalaram os poços e o terminal da Petrobras sofreu radical empobrecimento. Perderam o uso da maior parte de suas terras, perderam plantios, mata, gado, água, cacau, etc., e o que receberam de dinheiro (pela produção e aluguel de áreas) é infinitamente injusto.

Quarenta anos depois, os poços já maduros nada rendem, e a Petrobras devolve áreas agora inúteis e contaminadas. Em Conceição da Barra, no Cantagalo, na Comunidade Quilombola de Linharinho, se ouve os mesmos relatos a respeito dos poços maduros. Empobrecimento, contaminação da água, expropriação de terra, vazamentos. O que as famílias ganharam pela exploração não cobre nem um mínimo quantificável do que perderam. E, depois ainda fica uma herança maldita para limpar. Ainda nos poços maduros, perto de cada um deles a empresa abria uma “piscina” (um buraco na terra!) onde lançava o chamado crudo, isto é, aquilo que sai da perfuração dos poços e junto com o óleo, material dos mais tóxicos que se conhece, pois contém além de areia e pedra, sobem para a superfície água de formação, lubrificadores de broca, minerais e metais pesados, material radioativo e o que mais estiver no caminho da perfuração. No Equador essas piscinas de crudo (da Texaco, atual Chevron) estão associadas a uma epidemia de câncer na região amazônica.

 A Petrobras vem se livrando desse passivo, oferecendo esses campos “marginais” a preço de banana. No leilão de poços maduros que houve em 2017, tinha um poço em São Mateus que valia menos de 30 mil reais! Foi comprado por uma empresa de pequeno porte, comparada à Petrobras ou às demais grandes petroleiras do planeta. O governo Temer criou um programa chamado de Reate (Reativação das Atividades de Exploração e Produção de Petróleo e Gás em Áreas Terrestres) e Bolsonaro dá sequência. Fica a dúvida sobre as técnicas que vão usar para sacar até as últimas gotas desses poços! Se o poço vale o preço de um carro usado, certamente não vão gastar muito para operá-lo.

O Espírito Santo também tem a expansão de novos poços em terra, como na Comunidade Quilombola de Divino Espírito Santo, em São Mateus. Interessante que a comunidade está ilhada por eucaliptos da Suzano, por todos os lados, mas os dutos, os poços, as instalações de armazenamento, os caminhões, estão dentro da comunidade! Por que a Petrobras não negociou com a Suzano/Fibria/Aracruz de se instalar em uma pequena parte de seu enorme deserto verde? Claro racismo ambiental. O que é pequeno para a Suzano, é uma parte muito significativa para as comunidades até hoje sem titulação. E os novos poços serão os maduros de amanhã! Ocupam áreas que eram usadas para agricultura, para a produção de alimentos, farinha, beiju, criações. Os novos poços destroem trabalho, não geram emprego e desestruturam toda a economia local. Depois de explorados, em 20 ou 30 anos, essa economia não volta, nem a natureza.

Mas é no mar que ocorre o boom petroleiro capixaba, depois da descoberta do pré-sal em 2007. Com o preço internacional do barril acima dos U$ 100 dólares, a expansão da indústria petroleira era a principal alavanca da aceleração do crescimento econômico, no linguajar nacional desenvolvimentista do PT e de seus PACs. A Petrobras planejava construir dezenas de sondas e navios, ampliar a rede de dutos, novos terminais de gás e de óleo, fábrica de fertilizante químico. O Estado oferecia infraestrutura, isenções fiscais e crédito farto, além de inúmeras facilidades, inclusive na fiscalização ambiental, para atrair investimentos externos.

Daí vêm estaleiros como a Jurong, portos como o Porto de Roterdã (Porto Central), o Itaoca Offshore, o C-Port, o Petrocity. Com colegas da Campanha Nem Um Poço a Mais produzimos um mapa com todos os portos planejados no ES e constava um porto a cada 12 km! O delírio petroleiro da esquerda tradicional era pensar que esses investimentos assegurariam as políticas sociais, saúde, educação, reforma agrária, previdência. Não havia um mínimo debate sobre a necessária transição energética.

A queda do preço do barril, em 2014, para menos de U$ 40 fez ruir o pacto de poder das esquerdas com as oligarquias regionais do MDB, PP e demais partidos que compunham o arco de aliança da “governabilidade”. Com Temer e Bolsonaro a privatização e venda fatiada da Petrobras passa a ser um atrativo a mais para as grande petroleiras internacionais, conforme vamos ver no leilão do pré-sal previsto para novembro próximo. A Shell pode passar a própria Petrobras como principal operadora em blocos do pré-sal.

Então os impactos não são apenas das petroleiras estrito senso, mas também de cada um dos projetos associados à indústria petroleira. Ao longo de toda costa capixaba vão se instalando os mais diferentes projetos, cada um deles com dezenas de impactos sobre os territórios e seus povos.

Por exemplo, para a construção dos três portos previstos ao sul do ES, em Presidente Kennedy, Marataízes e Itapemirim, como vão fazer com a chegada de mais de cinco mil trabalhadores temporários que em sua grande maioria virão de fora, para as obras de construção civil? Onde se hospedarão esses homens, em sua maioria jovens? Como vão proteger as comunidades e principalmente as mulheres da violência e da exploração sexual?  Novamente: os postos de saúde estão equipados para toda essa gente e doenças novas? E a segurança pública? Como vão proteger os berçários de peixes e manguezais dos impactos das dragagens e das centenas de navios?

A expansão da indústria petroleira no sul atinge principalmente as comunidades de pesca artesanal, como diz o Nego da Pesca, presidente da Federação Estadual das Associações de Pescadores e Pescadoras Artesanais do ES. A colônia de pescadores de Marataízes e mulheres marisqueiras do Pontal vão virar criadoras de mariscos in vitro? E a segurança alimentar da sociedade regional, muito baseada nos frutos do mar, como ficará? E quem vai querer fazer turismo para ficar contando navios nas praias?

Foto: Rosilene Miliotti/FASE

Como as pessoas e comunidades afetadas têm reagido a esse processo de expansão petroleira que afeta seus territórios?

Contra a indústria petroleira as lutas locais de resistência são as mais difíceis e desiguais. Como o petróleo está no subsolo e é propriedade da União, tudo que está por cima é classificado como “superficiário” conforme o novo Código Mineral. Contra a expansão da indústria do petróleo não há o direito de dizer não! Assim foi quando dos poços maduros, assim é até hoje.

A crítica à expansão petroleira é vista pelas empresas, pelo Estado e pela mídia tradicional como uma crítica à evolução da espécie e ao desenvolvimento! Se o alvo da crítica é a Petrobras, as comunidades são acusadas que defenderem a privatização da empresa. Se é contra uma multinacional, as comunidades são tratadas como inibidoras de investimentos externos. Em casos extremos como na Baía de Guanabara; na região de Suape, em Pernambuco (PE) e; na Ilha de Maré, na Bahia, a crítica à expansão petroleira tem gerado ameaças e assassinatos de lideranças e processos de criminalização.

São muitas as lutas locais no Brasil, embora quase sempre invisibilizadas. No ES a principal resistência contra a expansão petroleira vem de comunidades de pesca artesanal, de quilombolas, indígenas, camponeses e ribeirinhos cujos territórios vêm sendo submetidos à extração. Cobram por reparações e por condicionantes não cumpridas, mesmo depois de anos de instalação e operação das empresas. A esses povos tradicionais se somam ambientalistas, agroecologistas, acadêmicos e pesquisadores independentes, defensores de direitos humanos, religiosos, artistas, comunicadores, gente que vem cada vez mais questionando o consumo dos plásticos, dos agrotóxicos, dos cosméticos e tintas com petrolatos, do automóvel, um grupo ainda difuso mas com grande potencial mobilizador nas cidades. Para conter a expansão petroleira é fundamental uma problematização do consumo e de nossa petrodependência. A Semana sem Petróleo organizada por diferentes coletivos e pessoas vem conseguindo se estabelecer na agenda da região metropolitana de Vitória. Este ano, em novembro está prevista sua terceira edição.

Em alguns países se fala em “moratória petroleira”, que significaria frear a expansão da exploração, algo que é colocado também pela Campanha Nem Um Poço a Mais. Para muitos soa como uma ideia que não parece viável ou que representa abrir mão de uma alavanca para o desenvolvimento nacional e do ES. Como você responde a isso?

A Costa Rica foi o primeiro país da América Latina a decretar lei nacional impedindo a exploração petroleira. Também no Equador se trava uma luta histórica contra a exploração da Reserva de Yasuní, na região amazônica. Na Argentina se busca impedir a expansão do Fracking² na região de Neuquén. Na Bolívia há dezenas de denúncias contra as petroleiras que operam o gás por lá, inclusive contra a multinacional Petrobras. Na Colômbia se busca proteger a região do chamado Caribe colombiano da exploração do mar. Mesmo na Venezuela, o maior exemplo de uma economia petroleira fracassada, tem movimentos sociais debatendo a crise e a necessária transição energética. E também na Nigéria e nos Estados Unidos.

Por todo o globo existem lutas locais, algumas regionais e nacionais que defendem algum tipo de moratória contra exploração de novos campos. A rede global Oilwatch,  composta por organizações da sociedade civil de vários países, busca articular essas lutas e criar estratégias conjuntas de resistência.

Foto: FASE/ES

No ES foi criada a Campanha Nem Um Poço a Mais, reunindo várias organizações representativas dos povos tradicionais capixabas e defensores e defensoras da natureza e dos direitos humanos. A ideia é problematizar a expansão e dar visibilidade às violações a ela inerentes.

Como em outros países, partimos do pressuposto que o melhor que se pode fazer com o petróleo ainda não explorado é deixá-lo no subsolo. Os poços já abertos são suficientes para as principais necessidades da sociedade.

A Campanha foca na crítica à expansão, pois esta se baseia em falsos argumentos tais como emprego e desenvolvimento. Boa parte do petróleo extraído vai para usos absurdamente desnecessários, como em guerras, no caótico trânsito urbano, nos agrotóxicos, nos plásticos descartáveis, combustíveis fósseis etc. Manter o petróleo no subsolo pode permitir às gerações futuras um tempo maior para uma reflexão mais madura sobre modos de vida mais saudáveis e sustentáveis.

Permite também que se guarde essas reservas para períodos históricos mais sombrios, de colapso do clima e dos ecossistemas. O petróleo será mais nosso, soberanamente nosso, se guardado no subsolo. E terá sempre mais valor de uso e de troca, se for esse o caso.

Os governantes e as empresas deveriam é estar pensando na longa transição não apenas energética, mas sobretudo cultural. E não falta tecnologias que reduzem o uso e a dependência de petróleo, na agroecologia, nas bioconstruções, nos cosméticos naturais, nos transportes públicos de qualidade, nos combustíveis não fósseis, na diminuição dos circuitos comerciais e das embalagens, nos biogeradores de energia.

Mais importante que buscar uma alternativa ao petróleo é buscarmos aprender modos de vida menos petrodependentes. Longo tempo será necessário para essa educação, que deve começar desde já, principalmente nas elites, sempre mais consumistas, irresponsáveis e suicidas. A lógica da liberdade no final deste século não será mais a da conquista, mas a do abrir mão! E diminuir gradativamente o vício da petrodependência é um elo chave para o futuro. As comunidades tradicionais são as principais guardiães desse saber da transição. Talvez por isso sejam os principais alvos das empresas petroleiras.

[1] Jornalista. Entrevista publicada originalmente no site Século Diário.

[2] Técnica não convencional de exploração de gás.