06/01/2020 17:41
Ouça o debate na íntegra¹:
Uma das principais preocupações das sociedades organizadas no século XXI é a preservação da espécie, algo impensável décadas atrás. A destruição do meio ambiente e da biodiversidade através do desmatamento e da poluição atmosférica tem levado especialistas do mundo todo a alertarem para a necessidade de se conter este processo sob pena de extinção da maioria dos seres vivos do planeta. Os esforços se dão, em maior ou menor escala, em diferentes países, mas não no Brasil de Jair Bolsonaro.
O presidente e sua equipe de governo relativizam os estudos científicos e questionam as mudanças climáticas. O ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo chegou a afirmar que o fenômeno do aquecimento global não passa de uma ‘trama marxista’. À esteira dessa tese, a devastação das florestas brasileiras avança a passos largos, com números recordes.
Além disso, comunidades ribeirinhas e povos tradicionais vivem sob a ameaça constante de grandes latifundiários, na tentativa de ampliar seus territórios para obtenção de lucro, com a anuência das autoridades federais, que desmontam órgãos de controle, como o Ibama, a Funai e o ICMBio.
O programa Faixa Livre convidou para debater a tragédia do meio ambiente no Brasil o coordenador do programa da FASE na Amazônia, Guilherme de Carvalho, o professor de Direito Ambiental e analista do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade, Rogério Rocco e a coordenadora de programas e projetos de justiça socioambiental da Fundação Henrich Boll no Brasil, Maureen Santos.
Os problemas que o país enfrenta não se resumem ao descaso com os ecossistemas. O diagnóstico do dirigente da Fase remete à escolha dos responsáveis por administrar as diferentes Pastas no primeiro escalão do Governo Federal.
“O governo adotou como regra colocar as piores pessoas e práticas na condução das políticas setoriais. Você vê Damares [Alves] cuidando da Cidadania, o [Paulo] Guedes tentando implementar soluções da década de 1980, adotadas na ditadura chilena, agora no Brasil e o Salles, que tem como única preocupação abrir os territórios para que as grandes corporações econômicas se apropriem das florestas e todos os bens naturais à frente do Ministério do Meio Ambiente”, pontuou.
A Amazônia é a região que mais sofre com o processo de extermínio da biodiversidade e as ameaças de grileiros e grandes fazendeiros. Além de ser fronteira de expansão das atividades agrícolas e contar com a dificuldade de fiscalização, o incentivo da gestão do Palácio do Planalto preocupa os moradores.
“Como trabalhamos muito com comunidades rurais, tradicionais e povos indígenas, primeiro há uma sensação de medo porque você tem regiões daqui do Pará que são completamente dominadas pelo crime organizado. Em parte da Transamazônica, Sul e Sudeste do Pará o crime impera e agora, com o governo Bolsonaro, os caras perderam completamente o pudor. Dois professores da Universidade Federal do Pará fizeram um vídeo em apoio a uma comunidade rural e foram ameaçados”, denunciou Guilherme.
O ataque ao meio ambiente pela gestão eleita já era esperado por Maureen, especialmente pelo que foi anunciado durante o governo de transição, a partir de novembro de 2018, para o setor.
“Começar o ano já com uma desregulação tremenda em relação, por exemplo, aos Conselhos, a modificação dos Ministérios, a parte muito profunda institucional de diversos processos, de políticas que foram sendo construídas por décadas foi muito duro. Você já vê que viria uma avalanche nesse processo e, ao mesmo tempo, o ano foi marcado por grandes tragédias ambientais”, lembrou, citando o rompimento da barragem de rejeitos de minério em Bumadinho, cidade de Minas Gerais.
“Esse desmonte já vinha acontecendo do ponto de vista legal com a aprovação do novo código mineral meio desfacelado, eles foram parando e aprovando por partes. Ao mesmo tempo, no estado de Minas há várias regiões que continuam sendo ameaçadas por conta desse processo de mineração e não se vê nenhum resultado prático”, ressaltou a coordenadora da Fundação Henrich Boll.
As críticas em torno das revisões de leis e normas destinadas à preservação da natureza não são exclusivas ao governo Bolsonaro, remetem a administrações anteriores. Nem mesmo as gestões petistas foram capazes de intervir na ânsia do agronegócio.
“A resistência às políticas ambientais vem crescendo especialmente a partir de meados dos anos 1990. Houve uma concentração grande na discussão sobre o Código Florestal quando o Brasil bateu índices de desmatamento e o governo editou uma Medida Provisória aumentando áreas de reserva legal da Amazônia. Houve uma reação do Congresso que acabou resultando na nova lei florestal brasileira, em 2012, que criou uma série de exceções para o uso das propriedades rurais, facilitando e premiando a vida dos proprietários que violaram historicamente o código”, lembrou Rocco, apontando a ampliação do poder dos empresários donos de terras na institucionalidade.
“Nesse processo a bancada ruralista se consolidou como uma das maiores ou talvez a maior bancada parlamentar. Portanto, qualquer governo de direita, de centro e de esquerda no nosso regime político, pela necessidade que tem no Congresso Nacional, acaba sendo de alguma forma refém dessa bancada. Tivemos também a lei da Política Nacional de Biossegurança que isentou a produção de alimentos transgênicos de licenciamento ambiental, temos grandes produções de soja, milho e algodão transgênico sem controle”, prosseguiu o analista do ICMBio.
A atuação dos grandes latifundiários não se dá de forma isolada no Brasil. Uma série de grupos dominantes do capital financeiro atuam conjuntamente em prejuízo aos povos originários e influenciam, inclusive, decisões em fóruns internacionais.
“O grande problema é que, hoje, as comunidades indígenas não enfrentam uma ou outra empresa, um ou outro político, enfrentamos um bloco de poder onde se articula a mídia corporativa, parte significativa do Judiciário, a maioria absoluta do Parlamento, do Executivo em todos os níveis, grandes corporações nacionais e internacionais, bancos públicos e privados e por aí vai. Fazer a luta social de resistência se tornou ainda mais difícil porque esse bloco é articulado e capaz de cooptar uma liderança em uma comunidade que está mais distante na Amazônia até atuar no interior da Organização Mundial do Comércio para poder modificar regras que os beneficiem aqui dentro do país”, citou Guilherme.
Nos órgãos do governo, quem se opõe às teorias estapafúrdias do bolsonarismo ou divulga dados relativos às queimadas na Amazônia é exonerado, caso do físico Ricardo Galvão, que deixou a diretoria do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) após contestar declarações do ex-capitão do Exército. Recentemente, o professor da Universidade de São Paulo foi eleito pela revista britânica Nature uma das 10 pessoas que mais contribuíram para a ciência em 2019.
O assédio da administração federal a dirigentes de entidades e acadêmicos renomados se dá em diferentes instâncias, conforme exemplificou Maureen. Contudo, o apoio da sociedade civil tem de ser o antídoto às mazelas da institucionalidade.
“Houve agora uma perseguição da professora Mônica [Ferreira], do Instituto Butantan, que tinha feito um relatório relacionado à questão dos agrotóxicos, um trabalho extremamente sério, foi desautorizada a ponto de ela pedir demissão. Está se criando um espaço de criminalização gravíssimo em relação à pesquisa e à ciência, mas há também uma tentativa de reconhecimento internacional para mostrar o quão importantes são essas pesquisas e pesquisadores. Não podemos deixar de fortalecer esses espaços públicos que precisam de recursos para continuar funcionando”, exaltou.
[1] Publicado originalmente no site do programa Faixa Livre.