16/10/2020 14:51
Claudio Nogueira¹
É tradição milenar sentar-se à mesa para celebrar conquistas e comemorar vitórias. Neste dia Mundial da Alimentação, porém, os números mostram um Brasil que fez um curto caminho na trilha da segurança alimentar, sem musculatura na defesa do direito à alimentação de qualidade, como garante a Constituição. Em poucos anos, o país se vê de volta ao Mapa da Fome da ONU, com mais de 10 milhões de pessoas famintas, e outras 89 milhões se alimentando mal, de acordo com os últimos dados divulgados pelo IBGE.
O problema fica ainda maior quando percebemos que os números são mais graves entre mulheres e pessoas negras, mostrando o quanto ainda somos um país patriarcal e racista. São informações colhidas em 2017 e 2018, que ainda não levam em conta os impactos do desmonte do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), da redução de programas voltados à agricultura familiar, da boiada de Salles, passando sem freios, e os reflexos da pandemia do coronavírus e da praga da desinformação.
Em debate nesta quinta-feira sobre o tema, nas redes sociais do MST, José Graziano, ex-diretor-geral da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), chama a atenção para outro dado alarmante: a parcela de brasileiros que come mal cresceu 76% em cinco anos. O ex-ministro e criador do programa Fome Zero argumenta que comer saudável custa caro no Brasil: para ter um prato diversificado, com o mínimo de nutrientes e consumo de, pelo menos, 400 gramas de frutas e legumes por dia, cada pessoa teria que desembolsar R$ 11 por dia — mais de um terço do salário mínimo.
São muitos os ingredientes dessa derrocada, como destaca Maria Emília Pacheco, ex-presidente do Consea e assessora da FASE: o crescimento da pobreza, a grilagem e a concentração de terras, o esgotamento de recursos naturais por ações da indústria agrícola, pela mineração e por grandes empreendimentos imobiliários. O autoritarismo do governo federal revela o trato da alimentação como mercadoria e não como um direito. A dieta imposta pelas monoculturas, os agrotóxicos goela abaixo, tudo leva a um cardápio padronizado, uma alimentação de commodities, tão diferente do conceito de soberania alimentar defendido pelos movimentos sociais e a agricultura popular com a garantia da diversidade e do direito que cada povo tem de definir seus próprios padrões de produção e de consumo. A inação e cumplicidade do governo brasileiro com o desmatamento e com as queimadas é também um movimento de asfixia das populações tradicionais: fundamentais para apoiar economicamente os agricultores familiares e camponeses, programas de compra de alimentos para merenda escolar, refeições em hospitais e nas Forças Armadas, como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), foram reduzidos drasticamente — situação que ficou ainda mais grave com o distanciamento social imposto pela pandemia. O agro não é pop, é tóxico.
É possível criar condições para evitar a erosão da nossa biodiversidade, a ditadura do transgênico e a padronização de alimentos. Medidas como a redução de impostos para agricultores tradicionais, o investimento em produtos agroecológicos, programas de educação alimentar nas escolas e veículos de comunicação, a taxação de produtos prejudiciais à saúde, como refrigerantes, álcool e cigarros, tudo isso leva a um novo caminho. Maria Emilia também lista uma série de iniciativas locais: exigir a manutenção de equipamentos públicos, como restaurantes populares, assegurar a realização de feiras livres agroecológicas, cobrar que haja limites para a expansão do agronegócio, garantir territórios livres de agrotóxicos e de mineração. Quem tem fome, tem pressa, como dizia Betinho. Podemos, juntos, tomar partido e fazer da refeição um ato político. E nos sentarmos novamente à mesa, retomando velhas conquistas e celebrando novas vitórias.
[1] Jornalista coordenador da comunicação da FASE.