14/02/2023 14:29
*Tatiana Ferreira e Guilherme Guerreiro Neto
Povos e comunidades tradicionais das ilhas de Abaetetuba (PA) ocuparam a Praça do Barco, no centro da cidade, em protesto contra a empresa Cargill, no último dia 7 de Fevereiro. A multinacional do ramo de commodities alimentícias tenta implantar um Terminal de Uso Privado (TUP) que vai gerar impacto para milhares de famílias das ilhas e das beiras de Abaetetuba.
Enquanto a mobilização ocorria, uma audiência de instrução era realizada no Fórum em frente à Praça, com participação do Ministério Público do Estado do Pará, da Procuradoria Geral do Estado, da Defensoria Pública e da Cáritas, que atua em defesa das comunidades, além de advogados da Cargill e suas empresas terceirizadas. Representantes do Incra e da Fundação Palmares participaram por videoconferência.
A equipe da FASE Amazônia apoiou os preparativos para o ato público realizado pelas comunidades e acompanhou a audiência, ao lado de representantes dos movimentos sociais, pesquisadores da UFPA e lideranças dos territórios.
Segundo a FASE, um total de 72 ilhas de Abaetetuba e 24 Projetos Agroextrativistas (PAEs), totalizando 70 mil pessoas, serão impactados pelo porto. Os comunitários possuem esses territórios há mais de 200 anos, porém até hoje não há concessão de direito real de uso em nome dessas comunidades. “Isso facilita a tentativa de tomada desses territórios pelas empresas, como é o caso de 388 hectares do PAE Santo Afonso, na Ilha Xingu. Esse processo de tomada está sendo feito pela BRIC Logística e Cargill”, explica João Gomes, coordenador adjunto da Fase Amazônia.
A intenção da Cargill é expandir para a foz do rio Tocantins a logística de transporte de grãos que desenvolve no rio Tapajós. No oeste do Pará, a multinacional atua há mais de uma década sem realizar consulta às comunidades prejudicadas e sem licenciamento ambiental.
Andrei Ferreira, da comunidade Bom Remédio, representou a juventude local e fez questão de deixar seu recado durante o protesto. “Vim aqui dizer que estamos lutando pela defesa dos nossos territórios, como nossos pais fizeram antes, e queremos preservar nossa cultura ameaçada todos os dias não só pela Cargill como por outras grandes empresas. Eles querem nos ensinar como devemos viver, mas nós somos o território e sabemos como viver bem. Somos ribeirinhos, quilombolas e queremos sim melhorias, mas que venham do governo, não de empresa. Queremos nossas frutas e peixes, tomar nosso açaí, lutar também por igualdade social, por respeito às nossas vidas e pela permanência das nossas comunidades”, ressaltou.
A agricultora e liderança Daniela Araújo, do Projeto de Assentamento Agroextrativista Pirocaba, reforçou a necessidade de escuta das comunidades sobre a instalação do porto. “A Cargill diz que vai instalar um porto pequeno, mas sabemos pela experiência de Santarém que será ainda maior, com o dobro do tamanho. Não vamos abrir mão dessa consulta porque sabemos que várias comunidades serão afetadas e temos direito de consentir ou não sobre esse empreendimento”, avaliou.
Ficou definido na audiência que, em prazo de 60 dias, as partes do processo apresentem uma definição de metodologia para garantir o direito à realização da consulta prévia, livre e informada nos territórios. A consulta é garantida pela legislação internacional, por meio da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e foi exigida por decisão do Tribunal de Justiça do Pará. Alguns territórios tradicionais de Abaetetuba têm protocolos de consulta, que definem os termos em que devem ser consultados.
A Consulta Prévia, segundo a Convenção 169 da OIT, deve ser realizada pelo governo e tem por objetivo obter o consentimento dos povos interessados para atos legislativos administrativos que possam afetá-los. Portanto, as comunidades podem ou não consentir após o processo de Consulta.
“A Convenção também garante no seu artigo 7° o direito dos povos a sua autodeterminação, portanto o rito de como devem ser procedidas as Consultas deve respeitar as suas formas organizativas e regras, tendo algumas comunidades já estabelecido metodologias em seus Protocolos e, mesmo que algumas comunidades afetadas ainda não as tenham, o estado também deve respeitar o tempo de cada uma delas para que elaborem os seus Protocolos, e não assumir por elas essa prerrogativa”, acrescenta João Gomes, da Fase.
A pesquisadora e professora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da Universidade Federal do Pará, Marcela Vecchione, acompanhou a audiência e considerou o resultado importante para a defesa dos territórios. “A definição da metodologia para a consulta livre, prévia e informada é importante porque as comunidades terão oportunidade de definir como elas querem ser consultadas e também um cronograma, além dos agentes responsáveis. A Cargill vai precisar seguir as diretrizes definidas para essa consulta e, sobretudo, ficou estabelecido que essa consulta é obrigatória”, enfatizou.
Embarca na luta, embarca!
Os próximos passos são importantes não só para a construção de proposta de metodologia de consulta a ser apresentada em juízo conforme o acordo entre as partes, no processo de negociação. Serão dias importantes, principalmente, para a formação política nos territórios. Todos precisam conhecer as ameaças que estão em jogo, os riscos para vida e para a natureza envolvidos no projeto do porto da Cargill. “É importante construir politicamente o terreno da formação das comunidades para dizer não. A consulta não pode ser só a consulta, mas especialmente o direito de manter administrativamente o que significa dizer não a este empreendimento”, alerta Marcela Vecchione.
*Tatiana Ferreira e Guilherme Guerreiro Neto são Jornalistas Doutorandos da UFPA em colaboração com a FASE