12/05/2008 17:51

Pedro Cláudio Cunca Bocayuva
Assessor da Fase

O aniversário de vinte anos da chamada constituição cidadã pode e deve ser um momento de reflexão. Mas, diante de tantas emendas (mais de 62 até março de 2008) que geram um “mal-estar da constituição”, segundo Samuel Rodrigues Barbosa1, será que deveríamos arriscar uma emenda da revisão geral, precedida de plebiscito, como propõe Fábio Konder Comparato? Por força de todo o ataque ao patrimônio estatal que solapa as bases materiais do desenvolvimento autônomo nacional, será que nos restaria apenas assumir o esgotamento da força normativa de longa duração da Constituição? Em artigo intitulado E Agora Brasil? 2, publicado pela Folha de São Paulo, Comparato insiste no caráter patrimonialista e na lógica oligárquica aberta nos anos 1990, que alienou a população do processo de decisão em matérias decisivas, tais como as questões trabalhistas e previdenciárias ou o tempo de duração dos mandatos eletivos.

A maioria das mudanças usadas para desqualificar os princípios constitucionais foi resultado legal do intento de superação do “nacional desenvolvimentismo” e do “getulismo”, processo no qual Fernando Henrique Cardoso foi muito mais longe do que Fernando Collor de Mello. Desde então, o uso da prerrogativa das medidas provisórias, o espetáculo das CPIs, a disputa de ações diretas de inconstitucionalidade, tudo faz parte de um quadro mais geral de morbidez, corruptibilidade e casuísmos, que representa o cenário material e político do império do globalismo financeiro e do individualismo possessivo.

A esse processo da sociedade política corresponde, na sociedade civil, a substituição do cidadão pelo consumidor, o proletariado pelo precariado, e a questão social urbana e a questão agrária se tornam “caso de polícia”. A cultura do medo se instala com mais facilidade num ambiente de exploração da economia da insegurança, mobilizada pelo discurso dos jogos de guerra contra as periferias e os jovens (conduzido por torturadores, paramilitares, tropas de elite e especialistas em tecnologia), que ganha as telas e a audiência nos auditórios.

Pode parecer uma conseqüência lógica de um raciocínio crítico, necessariamente pessimista, que se proponha uma saída na direção de uma nova constituinte, até porque o processo da anterior esteve marcado pelas restrições da sua soberania, num quadro de derrota da emenda das “diretas já”. Até mesmo porque uma reforma restrita da política, ou uma continuidade de reformas do tipo da tributária, só deve levar água ao moinho da contra-reforma constitucional permanente. Na dialética negativa do argumento crítico mais sólido, o vício de origem marca a fragilidade da criatura (a Constituição de 1988), que se converteu numa caricatura. Será que por isso podemos realizar uma manobra institucional, por dentro da lógica das emendas, para deter, em definitivo, esses atentados ao poder soberano do povo? Bastaria estabelecer o instituto da revisão geral e, por meio desta, realizar um plebiscito de modo a convocar uma Assembléia Constituinte com funções exclusivas, eliminando o vício de origem do Congresso Constituinte de 1986 que produziu a Constituição de 1988. Como veremos, mesmo que esse objetivo possa ser logicamente correto, para ampliar o poder instituinte e o controle democrático é preciso buscar os elementos contraditórios e uma correta avaliação das disputas em crise, como uma crise de hegemonia dentro de uma transição democrática inconclusa num quadro de transição paradigmática global.

Devemos buscar a resposta para colocar o poder constituinte em relação com a soberania popular, como base de uma democracia participativa, dentro das disputas reais e a dinâmica processual da crise de hegemonia. O que significa um tipo de crise que não pode ser resolvida no plano de uma batalha só, pela guerra de manobra direta. Para o bem ou para o mal, a questão do valor da Constituição só pode ser medida na sua relação com o processo histórico da transição democrática.

Cabe, como aliás fará a Ordem dos Advogados do Brasil em seu congresso nacional de novembro deste ano, medir o papel da Constituição de 1988 na qualidade de instrumento de defesa e ampliação de direitos diante dos problemas da democratização no quadro da atual reestruturação capitalista global, com todas as implicações e processos de crise do Estado e dos paradigmas políticos clássicos. Isto exige uma percepção da luta pelos direitos sob a ótica do pragmatismo radical, da acumulação de forças e das contradições que fazem com que a crise não gere uma estabilização da dominação. Ao invés de vermos um problema no caráter programático da Constituição, não devemos ver aí a sua força? Ao invés de vermos nos impasses a força oligárquica e corporativa, não podemos identificar elementos de uma crise de legitimidade? Ao invés de vermos apenas os recuos, não percebemos disputas e conquistas? De todo modo, não se resolve a batalha sobre os direitos coletivos e a democracia, sobre os modos de governar e organizar o poder do Estado, sobre as políticas e o gasto público, sobre a tributação, as desigualdades, a propriedade, o trabalho e a previdência sem antes definir um patamar de conquistas que foram obtidas, mesmo que permeadas de recuos e derrotas parciais.

A construção da democracia e a potência política da cidadania não podem prescindir das conquistas parciais escritas no texto original. Aliás, este esclarecimento sobre o que foi escrito pelo constituinte sob a pressão da cidadania (movimento pela participação popular) abriu brechas decisivas sem as quais não se pode avançar. Controvérsia semelhante marcou o debate sobre as reformas de base e a ampliação da democracia antes de 1964, face aos limites e restrições da Constituição do pós-guerra. Existe o risco de se tentar avançar sem ter por base uma superação sustentada real, o que pode produzir mais regressão que avanço. A questão da mobilização para o resgate das conquistas democráticas passa pela capacidade de defesa organizada de direitos. O conhecimento se entrelaça e amplia o interesse. Por isso, a base subjetiva e objetiva da Constituição depende do arco de forças capazes de lhe dar sustentação material e simbólica. Os direitos são sustentados se pudermos responder aos questionamentos sobre: quem tem interesse em defender o artigo 6 (dos direitos sociais), quem tem interesse em defender a função social da propriedade, quem tem interesse em defender o instituto da lei de iniciativa popular?

As derrotas não se resolvem por saltos sem que as forças sociais estejam em movimento. Estamos longe de uma frente única de mobilização popular, estamos longe de um cenário sem contradições e opacidades. A nitidez é boa para ensinar lições reais, muitas vezes amargas, como a que aprendemos no referendo sobre o estatuto do desarmamento/comércio de armas. Para avançar na cultura dos direitos, é preciso aprender a defendê-los e conhecê-los, conhecer e se apropriar da Carta, conhecer seus princípios, reafirmar sua base normativa potencial de caráter programático. Precisamos reagir contra o esbulho perpetrado pela sanha neoliberal das emendas, colocando em questão os defeitos de base, o que só pode ser realizado com uma cultura política que coloque na ordem do dia o ato de fazer valer o que foi escrito, única condição de avançar e superar.
A Constituição só pode ser cidadã na medida em que ganha vida no processo social e político, através do movimento molecular dos sujeitos sociais, pela arte da conquista de posições pelos atores políticos. Na produção e reprodução da vida social, a Constituição pode ganhar o significado de um campo do qual partimos para construir a nitidez política, no mínimo como parte do enigma. Será que não devemos ler o seu significado a partir das descontinuidades na realização do potencial inconcluso da democratização brasileira? Essa lógica lembra as lições da história, em que perdem sempre os que não sabem ler as razões da derrota e deixam de lado as conquistas e referências plantadas no passado. No aniversário de vinte anos da Constituição brasileira, fazemos uma aposta afirmativa na direção do resgate das lutas e conquistas parcialmente alcançadas. Optamos por partir do argumento em favor do valor universal das conquistas básicas da Constituição, como caminho para desencadear o aprimoramento de nossas instituições e para reafirmar o primado da soberania popular para o exercício da democracia.

No aniversário da Constituição Cidadã, o que vale é resgatar o poder e a legitimidade que lhe foi dada por uma potência soberana sempre contraditória, sempre em gestação, que precisa se pôr em movimento tendo à mão o que foi escrito vinte anos atrás. Porque para a Constituição do espaço da cidadania, vale o que está escrito!

[1] BARBOSA, Samuel Rodrigues. O mal-estar da constituição. In http://br.geocities.com/profpito/omalestardaconstituicao.html

[2] COMPARATO, Fábio Konder. E agora, Brasil? In Jornal Folha de São Paulo, 03 de março de 2008.

Leia também “Vinte anos da Constituição de 1988: o balanço do Estado dos direitos no Brasil“, do mesmo autor.