16/12/2014 13:56
Em tempos de ameaças aos direitos indígenas, como o Projeto de Emenda à Constituição 215 (PEC 215), esse artigo coloca em evidência e ajuda a compreender o direito à Consulta Prévia, um instrumento contido na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O texto é um dos conteúdos da mais nova edição do Jornal Aldeia , uma publicação do programa da FASE na Amazônia em parceira com o Fórum da Amazônia Oriental (Faor).
Rodrigo Oliveira, do Centro de Información de la Consulta Previa, destaca os potenciais da Consulta Prévia para fazer valer o direito de indígenas, assim como de quilombolas e de outros povos tradicionais, ao seu próprio território e a sua cultura. No entanto, vai além: problematiza e demonstra os limites desse mecanismo diante do crescimento de projetos desenvolvimentistas de interesse de Estados e empresas privadas.
Consulta prévia em disputa
Rodrigo Oliveira¹
O direito à Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) tem ganhado relevância dentre as estratégias de povos indígenas e comunidades tradicionais para o enfrentamento de projetos desenvolvimentistas, como a construção de usinas hidrelétricas e a exploração mineral. Se em países como a Bolívia, Colômbia e Equador este direito já faz parte do vocabulário de resistência dos movimentos étnicos, no Brasil ainda paira sobre ele grande desconfiança. A desconfiança tem origem em uma ambiguidade: a consulta prévia pode ser tanto um espaço de autonomia para os povos quanto de legitimação jurídica e política para projetos públicos e privados.
A CPLI – que tem como principal marco a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1989 – é o direito dos povos indígenas e “tribais” de serem consultados sempre que puderem ser afetados por uma medida administrativa ou legislativa. Fruto da mobilização dos povos indígenas no cenário internacional, ela surge com três objetivos principais: permitir que povos historicamente excluídos da democracia representativa participem do processo decisório; possibilitar que esses povos decidam sobre suas vidas e destinos; e viabilizar a construção de políticas públicas mais adequadas à realidade desses povos a partir de um diálogo entre as culturas.
Todavia, a consulta se mostra problemática e com dificuldade de atingir esses objetivos quando associada a projetos que envolvam interesses hegemônicos. Nesses casos, fica evidente a disputa entre duas visões distintas sobre o significado e a amplitude da CPLI: a visão dos grupos étnicos e a visão dos Estados e corporações privadas. Este embate incide na construção concreta dos processos de consulta.
Os grupos étnicos concebem a CPLI como espaço para o exercício da autonomia, no qual seja respeitada a diversidade cultural e o conhecimento tradicional. Defendem que cabe aos povos a decisão final sobre o uso dos seus territórios e recursos naturais. Os Estados e corporações privadas, por sua vez, limitam a consulta à discussão de medidas de mitigação e compensação. Partem do discurso de que seria possível conciliar percepções antagônicas a respeito do uso do território e dos recursos naturais, e elege o conhecimento “científico” como único capaz de apontar os impactos do projeto e suas respectivas soluções “técnicas”.
O predomínio de uma ou outra visão dependerá da correlação de força entre os atores sociais envolvidos. A desigualdade torna provável o predomínio da visão dos Estados e das empresas. Porém, vários grupos étnicos ao redor da América Latina já demonstraram que a CPLI pode ser útil às suas lutas. Para tanto, é preciso definir estratégias de atuação a partir das experiências vivenciadas pelo próprio grupo.
Duas estratégias merecem destaque. A primeira é a elaboração de protocolos de consulta – a exemplo do Protocolo de Consulta/Consentimento do povo indígena Wajãpi -, que possibilitam pressionar os governos a respeitarem a organização social e a forma de decisão dos povos consultados. A segunda é a oposição à regulamentação administrativa ou legislativa da CPLI. Como estuda o pesquisador Carlos Andrés Baquero (Dejusticia), a regulamentação da consulta tem sido uma estratégia dos Estados para reduzir as garantias previstas em leis internacionais.
A ambiguidade da CPLI pode ser superada. É preciso que os movimentos étnicos incorporem a consulta como parte do seu rol de instrumentos institucionais e que a utilizem como um espaço para a articulação e mobilização social, de maneira complementar à ação política direta, que deve ser priorizada. O desafio de enfrentar os projetos desenvolvimentistas é árduo e exige o proveito de todas as formas possíveis de combate e resistência.
[1] Centro de Información de la Consulta Previa.
Confira mais destaques do Jornal Aldeia
Essa nova edição, publicada em dezembro, traz conteúdos sobre momentos e temas importantes para organizações e movimentos sociais da Amazônia em 2014. Além do artigo sobre Consulta Prévia, o Jornal Aldeia conta com os seguintes conteúdos: “III ENA fortalece a luta pela agroecologia”, por Fábio Pacheco (ANA Amazônia/TIJUPÁ) e Solange Oliveira (RMERA); “O que está em jogo na COP 20”, por Fátima Mello (FASE); “Os impactos socioambientais do plantio da palma do dendê no Pará”, por Eliane Moreira (MPE); “Breve balanço do Fórum Social Pan-Amazônico”, por Guilherme Carvalho (FASE Amazônia); “Complexo Hidrelétrico do Tapajós”, por Luiz de Camões (MPF); e “Mulheres rurais da Amazônia: saberes em agroecologia”, por Solange Oliveira (RMERA).