30/06/2020 12:12
Caroline Rodrigues¹
A tendência de mercantilização da água e do saneamento no Brasil já estava posta pelo 8º Fórum Mundial da Água, realizado em Brasília em 2018. Desde 1997, esse Fórum constituiu-se como espaço de encontro de corporações empresariais que, por meio de lobby, direcionam a tomadas de decisão dos governos e influenciam a opinião pública com uma visão privatista dos recursos hídricos. No caso brasileiro, as fontes de financiamento deste 8º Fórum expõem a relação promíscua entre o Estado e as corporações, típica do neoliberalismo já que 40% dos custos do evento foram subsidiados pela Agência Nacional das Águas (ANA), 40% pela Organização das nações Unidas (ONU) e 20% pelas próprias corporações empresariais (Nestlé, Coca-Cola, AmBev, GDF Suez S.A.).
À época, a FASE e inúmeros outros membros da sociedade civil se organizaram no Fórum Alternativo Mundial das Águas (FAMA) para denunciar o ataque ao direito à água e ao saneamento que o 8º Fórum representava. Cerca de 7 mil pessoas fizeram uma linda marcha cujo mote foi “Água é Direito e Não Mercadoria”.
Em geral, se aceita a ideia de que a concessão dos serviços públicos à iniciativa privada é a melhor opção, a mais eficiente e a que garantirá a universalização do acesso. No entanto, nos parece importante afirmar que se trata de uma lógica de gestão pública atravessada por muitas falsas verdades. No caso do Fórum Mundial das Água o próprio slogan era “Compartilhando Água”, o que mostra essa falsa-verdade. Slogans como esse criam uma expectativa de que toda a população estará incluída nesse compartilhamento de água e escondem as disputas político-econômicas que estão capturando as águas do país. A aprovação do Projeto de Lei 4162 no último dia 24 de junho de 2020, é um triste exemplo de como o que estava em jogo desde 2018 era a apropriação privada dos recursos hídricos e dos serviços de saneamento.
A aprovação do PL4162 e os riscos para a população mais pobre
A aprovação do PL4162, que alterou o Marco Regulatório do Saneamento, representa mais um ataque aos direitos sociais e a democracia que do governo de Jair Bolsonaro, do Ministro Paulo Guedes, e dos 65 senadores que, ao votarem a favor deste PL, mostraram-se comprometidos com a agenda ultra neoliberal do governo.
A FASE, junto com diversos outros representantes da sociedade civil como o Observatório Nacional do Saneamento (ONDAS) e a “Campanha Água Boa para Todos e Todas”, se posicionou contra porque vê nesse PL uma ameaça a universalização do abastecimento de água, que hoje só chega a 80% dos brasileiros, assim como a universalização do saneamento, que alcança apenas 50% (dados Sistema Nacional de Informações de Saneamento – SINIS).
Um dos principais problemas trazidos pela aprovação do PL4162 tem a ver com a saúde população brasileira já tão assolada pela pandemia da Covid-19. A questão é que ao ser aprovado, o PL 4162 coloca fim ao subsídio cruzado, um tipo de mecanismo de financiamento que existe nas companhias públicas que permite que áreas com alta capacidade de pagamento de uma cidade, como a zona sul do Rio de Janeiro, financiem as obras de ampliação do sistema em áreas com baixa capacidade de pagamento, como a Baixada Fluminense. É simples, dificilmente haverá melhoras nas infraestruturas de abastecimento e de saneamento porque grandes corporações do “mercado das águas e do saneamento” não farão investimentos em áreas pouco rentáveis como cidades de pequeno porte, áreas rurais e periferias e favelas das grandes cidades. Não por acaso, essas são as áreas que mais tem déficit de infraestrutura.
Outro problema trazido pela aprovação deste PL é que a conta de água poderá ficar mais cara! Isso já aconteceu em cidades onde os serviços já foram privatizados. Ao permitir que grandes corporações assumam a dianteira da prestação de serviços de saneamento, o poder público acaba por colocar a população mais pobre refém de um tipo de serviço privado, que não terá concorrente e que se valerá dessa prerrogativa para postergar ou não realizar qualquer tipo de melhoria nos sistemas usando argumentos como: “não está no nosso plano de metas investir nessa área agora”, “esse tipo de investimento é arriscado para o nosso equilíbrio econômico financeiro”, “esse tipo de investimento não nos dará retorno econômico”, enfim, uma infinidade de argumentos que, ao fim, tem o lucro como horizonte e não a garantia do direito a água e ao saneamento.
A perspectivas dos bens comuns
Se a lógica neoliberal vem há anos sequestrando o Estado, a perspectiva dos bens comuns pode nos ajudar a construir outros horizontes políticos, outros paradigmas de gestão pública, principalmente de gestão das águas, perspectivas que sejam essencialmente anticapitalistas.
Mas o que é um bem comum? A resposta dessa questão depende do tempo histórico em que se coloca e da perspectiva teórica adotada. Mas os bens comuns são uma coisa material? Imaterial? Onde eu encontro? Entendemos que essa tentativa de categorizar a água, a terra, o ar, as sementes crioulas, os softwares livres como bens comuns materiais e o conhecimento, as línguas, da cultura como bens comuns imateriais empobrece o debate. Muito além da substância, da essência, do que será comunizado², o que o debate dos bens comuns nos propõe é repensarmos as relações sociais que se estabelecem para produzir um comum, ou seja, nos abre a possibilidade de nos questionarmos qual a relação que estabelecemos com a água, ela é um serviço a ser consumido ou um bem essencial a vida?
Para a maioria dos moradores da cidade a água é vista como uma entre tantas mercadorias. Como para maioria das pessoas o acesso à água está condicionado ao pagamento por esse serviço, ou seja, passa pela mediação do dinheiro. Isso faz com que não haja relação de pertencimento entre a população e a água que lhe abastece. Poucos são os que sabem em qual bioma se localiza sua cidade, qual bacia hidrográfica que abastece sua casa, quais os principais rios que cortam a região, para onde vai o esgoto da sua casa ou como é tratado – se é que é tratado – etc.
Acreditamos que a perspectiva dos bens comuns nos ajuda a desnaturalizar a mercantilização da água na medida em que coloca no centro as práticas coletivas que os grupos estabelecem entre si e com a natureza e, caso o grupo não estabeleça relação alguma, como o caso de muitos moradores das cidades, o paradigma dos bens comuns propõe uma aproximação entre o ser humano e a natureza que, independe de profissionalização, de competência ou poder aquisitivo.
Uma alternativa que a perspectiva dos comuns nos traz para a luta das águas é que propõe a defesa dos serviços públicos como instituições públicas. Num país como o Brasil, só a defesa do público não basta porque o Estado é marcado pelo personalismo, pelo clientelismo, coronelismo, e atualmente todos esses traços históricos ainda se misturam com a lógica da militarização da política e dos territórios. A perspectiva dos comuns pode nos ajudar a enfrentar a burocracia do Estado, o corporativismo dos funcionários públicos, o centralismo das informações de interesse coletivo, os poderes que não conversam para viabilizar a gestão, as portas que não se abrem a população etc.
Portanto, a defesa dos serviços públicos como instituições públicas reconhece que os serviços públicos não são apenas instrumentos de dominação do poder público, mas instituições da própria sociedade que se destinam a garantir as necessidades da população. Isso significa que esses serviços são lugares de tensão e luta, e que não podem ser vistos unilateralmente nem como “aparelhos de estado” a serviço da dominação burguesa nem como órgão plenamente a serviço da sociedade. A questão, portanto, é saber como transformar os serviços públicos para que eles passem a ser instituições do comum orientadas para os direitos de uso
comum e governadas de forma democrática.
[1] Educadora do programa da FASE no Rio de Janeiro.
[2] Gerido de forma comum.