26/06/2020 12:24
Diana Aguiar, Jaqueline Evangelista Dias, Lourdes Cardozo Laureano, Maria Emília Lisboa Pacheco, Naiara Andreoli Bittencourt, Rosalva Gomes e Valéria Pereira Santos¹
As quebradeiras e as raizeiras representam dois modos de vida que têm forte protagonismo das mulheres e que vincula práticas socioprodutivas para autoconsumo e geração de renda, com saberes tradicionais majoritariamente manejados por mulheres e transmitidos de geração em geração.
Ser quebradeira é ter uma “relação com a palmeira como se fosse com outra companheira”
O amplo aproveitamento da palmeira do coco-babaçu pelas quebradeiras depende de um conjunto de saberes passado entre mulheres, ao longo de muitas gerações. Quando perguntada sobre o que usam da palmeira do babaçu, Socorro Teixeira, presidenta da Rede Cerrado e coordenadora do Movimento Interestadual das Quebradeiras do Coco-Babaçu (MIQCB), responde sem hesitar: “É só tudo. Porque a gente tira a amêndoa e da amêndoa faz o óleo, faz o leite, faz a cocada, faz o sabão, um monte de coisa. E do coco, da fruta inteira, a gente tira a casca que faz o carvão e o artesanato, a gente tira o mesocarpo. Da palmeira em si, quando cai, a gente tira o adubo. A palha que cobre as nossas casas, que faz o piso de nossas casas, faz nossas paredes, o cofo, o abano, o quibano, cerca as nossas hortas, cerca nosso criatório de galinhas. Não tem na palmeira um produto que não seja aproveitado pelas quebradeiras.”
Por meio desses múltiplos usos, a “mãe-palmeira”, como dizem as quebradeiras, traz alimento e sustento para milhares de famílias do Cerrado, especialmente em toda a faixa de transição entre o Cerrado e a Amazônia. Há importantes extensões de babaçuais no Maranhão, Pará, Piauí e Tocantins e mesmo no Mato Grosso, chegando até a região do Bosque Seco Chiquitano na Bolívia, o nome que a ecorregião da extensão do domínio do Cerrado recebe do outro lado da fronteira. Muitas comunidades indígenas chiquitanas na Bolívia também coletam o coco-babaçu (que chamam de “cusi”) e trabalham com diversos produtos da palmeira para autoconsumo e geração de renda. Essa extensão geográfica dos babaçuais, e das práticas socioprodutivas associadas, em tão diversas comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais sinaliza uma história de ancestralidade dos saberes e práticas de manejo da palmeira.
Esse saber tradicional se materializa em uma relação na qual natureza e povos tradicionais se confundem, como expresso na fala de Socorro: “Pra gente que é quebradeira, a relação com a palmeira é como se fosse com outra mulher, com outra companheira. A dor da palmeira é a dor da gente, a dor da gente é a dor da palmeira.” E essa relação faz da luta em defesa de seus direitos uma luta intrinsecamente relacionada à defesa do Cerrado: “A gente correu na luta para buscar valores e essa busca de valores chegou, mas muito perseguida. Muitos fazendeiros e grandes empresas, por causa do valor, por causa do mercado, perseguem a gente e tomam da gente. Além de tomar o produto, além de derrubar nossas palmeiras, além de envenenar nossas vidas, nossas árvores, nosso Cerrado.”
“Não existe coco livre em terra presa”
Muitas vezes as quebradeiras têm que lutar contra grandes proprietários que querem derrubar as palmeiras e impedir o acesso delas aos babaçuais. “As pessoas não respeitam a luta das quebradeiras de coco em defesa de uma árvore que traz o ar puro que a gente respira, traz o alimento que nos alimenta, traz o sustento da nossa família, a renda familiar e, ainda por cima de tudo, é a única árvore que não tem despesa: ninguém plantou, ninguém aguou, ninguém adubou”, completa Socorro.
Tudo isso as levou a se organizar no MIQCB para conseguir “libertar o coco!” e se fortalecer na produção e comercialização. “O modo de vida das quebradeiras do Bico do Papagaio [região norte do Tocantins, na divisa com Pará e Maranhão] foi uma luta muito grande por incentivo do Padre Josimo em vida que dizia ‘olha, as quebradeiras de coco têm que se unir, têm que se organizar, eu quero ver vocês na rua gritando e dizendo que o babaçu é uma fruta de valor’. Aí a gente começou com Dona Raimunda a fazer as reuniões debaixo dos pés de manga e começou a se organizar para hoje a gente ter esse babaçu quase que livre, porque não está livre. Foi uma luta muito grande, teve companheiras que foi massacrada, teve delas que foi até morta.”
As Leis do Babaçu Livre são instrumentos legais que formalizam as práticas ancestrais existentes, garantem o livre acesso e o uso comum das palmeiras, e são uma importante conquista das quebradeiras de coco babaçu através do MIQCB. O primeiro Projeto de Lei n. 1.428 de 1996, foi apresentado ao legislativo nacional como Lei de Babaçu Livre, mas foi arquivado três vezes. Sem sucesso no âmbito nacional, o movimento passou a incidir no âmbito municipal e estadual. E foi no estado do Maranhão onde conseguiram aprovar o maior número de leis municipais que garantem o acesso das quebradeiras aos babaçuais. O município de Lago do Junco é pioneiro (Com as Leis n. 05/1997 e n. 01/2002) e na sequência outras Leis do Babaçu Livre foram aprovadas: em Lago dos Rodrigues (Lei n. 32/1999); Esperantinópolis ( Lei n. 255/1999); São Luiz Gonzaga ( Lei n. 319/2001); Imperatriz (Lei n. 1.084/2003); Limas Campos (Lei n. 466/2003); São José dos Basílio ( Lei n. 52/2005); Cidelândia (Lei n. 01/2005); Pedreiras ( Lei n. 1.137/2005); Amarante (Lei n. 227/2006); São Pedro do Água Branca (Lei n. 0168/2012); Vila dos Martírios (Lei n. 106/2007).
No Tocantins, foram aprovadas leis municipais em Praia Norte do Tocantins ( Lei n. 49/2003), Buriti do Tocantins (Lei n. 058/2003), Axixá do Tocantins (Lei n. 306/2003) e São Miguel do Tocantins (Lei n. 05/2005) e uma lei estadual (Lei n. 1.959/2008). No estado do Pará, foi aprovada apenas uma lei, em São Domingos do Araguaia ( Lei n. 934/2004). Vale ressaltar que, enquanto algumas leis garantem maior acesso das mulheres aos babaçuais, outras o condicionam à autorização dos fazendeiros. Outras leis importantes são as leis estaduais que criaram o dia das quebradeiras de coco babaçu nos estados do Maranhão, dia 2 de agosto, Tocantins, 7 de novembro, e Piauí, 24 de setembro.
Para conquistarem a leis do babaçu livre e seu reconhecimento político, as mulheres investiram na formação e incidência política, e, ao mesmo tempo que influenciaram o poder legislativo dos municípios a aprovarem as leis, se fortaleceram enquanto categoria coletiva, com mais força na exigência do cumprimento dessas leis e na qualificação das denúncias de violações dos seus direitos. Maria Alaídes de Sousa, quebradeira do Maranhão e Coordenadora geral do MIQCB, ressalta a diversidade entre as quebradeiras nessa caminhada de luta: “Muitas de nós somos cooperadas, muitas não somos. Muitas somos assentadas, muitas ainda estão na beira da estrada, somos quilombolas, somos indígenas, somos pequenas pescadoras, somos da agricultura familiar”.
Como muitas quebradeiras são mulheres agricultoras sem-terra, a luta pelo babaçu livre está intimamente ligada à luta pelo acesso à terra e território. “Não existe coco livre em terra presa”, dizem as quebradeiras, então ter o acesso à terra e território, para a quebradeiras de coco babaçu, significa a continuidade, a reprodução da vida das quebradeiras e das palmeiras.
Socorro lembra que a luta se intensifica com a chegada do Matopiba: “O Matopiba vem acabar com o meio ambiente, nosso meio de vida, a nossa mãe-palmeira que nos dá o sustento, que criou nossos filhos. Aí se torna o campo limpo… Para nós, esse Matopiba é uma grande desgraça.” Cada vez mais, as quebradeiras reivindicam que a luta pelo babaçu livre depende da luta pelo território livre: livre de cercas, de motosserra, de veneno.
Luta pelo acesso a políticas públicas
Dentre as conquistas da luta das quebradeiras, está o acesso a algumas políticas públicas de incentivo à agricultura familiar e camponesa. Esta luta levou à inserção da amêndoa do babaçu entre os produtos da sociobiodiversidade que são contemplados pela Política de Garantia de Preços Mínimos para Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio); e de produtos do babaçu entre aqueles a serem ofertados no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
No entanto, são conquistas que mal foram alcançadas e já estão sendo desconstruídas e ameaçadas, seja pela dificuldade de acessá-las (por exemplo, a obtenção da Declaração de Aptidão ao Pronaf – DAP) ou a redução drástica do orçamento das políticas nos últimos anos, como no caso do PAA. Além disso, no momento atual da pandemia, no qual a fome cresce em toda parte, a dificuldade que as quebradeiras têm tido para comercializar seus produtos de alto valor nutritivo é prova da falência do Estado em assegurar a segurança alimentar e nutricional e do preço alto que a sociedade paga pela desconstrução de políticas tão importantes.
Ser raizeira é ter “uma sabedoria que não tem donos, somente herdeiros”
Outro saber tradicional dos povos do Cerrado é o saber do uso das plantas medicinais. As raizeiras e raizeiros são reconhecidos em suas comunidades pela prática de diferentes ofícios de cura a partir da aplicação de variedades de plantas, raízes, frutos, argilas e seus preparados. Aparecida Ana de Arruda Vieira, conhecida como Tantinha, raizeira de Minas Gerais, nos conta um pouco desse ofício: “Entrei nesse trabalho para cuidar da saúde de um filho que estava muito doente. Então resgatei esse conhecimento, porque a gente já nasce com ele: a minha vó era parteira, benzedeira e raizeira; a minha mãe cuidou de mim a vida toda com as plantas. E até então, no entanto, eu não valorizava tanto. Eu sabia que era importante, mas não fazia um trabalho avançado nessa área. Até ver que meu filho estava muito doente, tentei de várias formas cuidar dele da forma convencional, mas vi que não estava resolvendo. Resolvi fazer um curso de plantas medicinais, fui aprendendo algumas técnicas (fazer um xarope, uma tintura, uma pomada) e, a partir daí, aquilo foi despertando, fui entrando nos grupos. Minha primeira intenção era cuidar da saúde da família, mas aquilo não conseguiu mais ficar dentro de casa e começou a abrir espaços. Hoje tenho uma farmacinha caseira, que chama Ervanário São Francisco.”
Tantinha nos conta como, ao longo do tempo, essa caminhada foi consolidando uma identidade: “Ser raizeira pra mim é um resgate da minha identidade, tenho muito orgulho de ter essa identidade. E trabalhar como raizeira é resgatar conhecimentos tradicionais, resgatar histórias da minha vó, dos meus antepassados, das mulheres guerreiras que estão aí tentando trabalhar com as plantas medicinais, enfrentando dificuldades. Ser raizeira é a minha forma de vida, é cuidar da terra, é ver as plantas crescerem, é proteger o Cerrado em pé. É uma sabedoria que não tem donos, somente herdeiros”.
Quem nos conta também dessa herança é Lucely, raizeira e quilombola de Goiás: “Ser raizeira para mim é um termo muito forte, porque é uma herança que eu trouxe de 1830 do meu tataravô Chico Moleque, que hoje eu sou a sexta geração dele. E a gente carrega esse ofício das plantas medicinais, esse ofício de preservar o Cerrado, esse ofício de cuidar do Cerrado e também esse respeito da energia que o Cerrado traz pra gente. Porque nós quilombolas, a gente não usa só a planta como remédio, a gente usa a planta também como energia. E a gente tem cura pela energia, pelo cheiro, por ficar perto de uma planta. A gente fala de ficar perto da nossa planta companheira, da nossa planta amiga, que ela nos oferece energia, que traz a cura do nosso corpo. Além da gente trabalhar com a casca, com a raiz, com a flor, com a folha, a gente também trabalha com a energia da planta, sem ter que extrair aquela planta do ambiente dela”.
“O Cerrado é parte de nós”
Sobre essa convivência das raizeiras com o Cerrado, Tantinha completa que é uma “relação de respeito, de sabedoria e de muito cuidado, porque o Cerrado é parte de nós, é a vida que nos permite trabalhar com as plantas medicinais, que nos dão os princípios ativos pra gente trabalhar e cuidar do outro.” Mas esse ofício tão importante e ancestral das raizeiras enfrenta muitos desafios, como nos conta Lucely: “É um desafio muito grande de exercer esse ofício de raizeira, porque a gente não tem um respaldo das autoridades e da lei. A gente não tem uma normativa que nos favoreça para que a gente possa exercer o nosso ofício, como as outras áreas da saúde.”
Para enfrentar esses desafios, elas se organizam na Articulação Pacari, como nos conta Lucely: “A Pacari é uma rede que nos fortalece, que nos ajuda a nos organizar. A gente está resgatando toda essa cultura que está sendo perdida, que está sendo tampada, que está sendo sufocada pelos que não aceitam o nosso ofício.” E Tantinha completa: “A gente começou a buscar meios de melhorar a qualidade daquilo que estávamos fazendo, buscar ações políticas de defesa do nosso trabalho. Chegou um momento da nossa caminhada que a gente pensou que não adiantava somente fazer remédio, que a gente precisava trazer políticas públicas para defender o nosso direito de fazer remédios. A Articulação Pacari nasce junto dessa caminhada.”
Assim, a criminalização e depreciação da importância biocultural dessas práticas levou as raizeiras a se organizarem na Articulação Pacari e a lançarem o Protocolo Comunitário Biocultural das Raizeiras do Cerrado – uma construção que envolveu representantes de 43 grupos comunitários de dez regiões dos estados de Minas Gerais, Goiás, Tocantins e Maranhão -, buscando defender seu direito de praticar a medicina tradicional. Tantinha enfatiza como esse “é um direito consuetudinário: é o direito de fazer o que a minha vó fazia, o que a minha mãe fazia”. Nessa caminhada de luta, as raizeiras estão lutando pelo reconhecimento do ofício das raizeiras e raizeiros do Cerrado como patrimônio cultural imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Saberes que são bens comuns
Não bastasse a falta de reconhecimento da importância de suas práticas para a diversidade cultural e biológica do Cerrado, as quebradeiras e as raizeiras ainda têm enfrentado a ameaça de um novo tipo de roubo e cercamento: a apropriação por empresas do patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais dos quais são guardiãs.
Esses saberes, que não têm donos e sim herdeiros, não são mercadorias e por isso não tem preço, mas sim valor. Por isso precisam ser reconhecidos porque não há uma única forma de conhecimento, ao contrário do que diz a ciência hegemônica e cartesiana, que se pretende ser parâmetro de saber, ou mesmo totalizante. Essas formas de fazer, tecer, preparar, cuidar, semear são fruto de décadas de experimentação, observação e criação coletiva de comunidades, transmitidas prioritariamente pela oralidade e pelo desenvolvimento comum de cada povo ou comunidade.
E talvez seja justamente a comunalidade desses conhecimentos que os tornou tão cobiçados, apropriados e espoliados por empresas, pesquisadores ou sujeitos que visam o lucro individual acima da vida em comunidade. Não são poucos os relatos de patenteamento e exploração econômica privada de produtos, cosméticos, sementes e medicamentos que se originam do aprendizado com os povos e comunidades tradicionais, os quais não veem a repartição dos benefícios oriundos dessa comercialização ou mesmo são impedidos ao livre acesso da biodiversidade que justamente contribuem para diversificar.
Mas se se reconhece o direito de propriedade intelectual daqueles que modificam a biodiversidade, com apropriações, restrições de uso comum e mercantilização, por que ainda pouco avançamos na proteção dos saberes tradicionais? Ante aos tratados da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) que garantiram a privatização do conhecimento, os camponeses, povos indígenas e comunidades tradicionais fizeram frente na batalha internacional pelo reconhecimento de seus direitos e encamparam a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1989, que garante o direito ao consentimento livre, prévio e informado aos povos tradicionais sobre todas as medidas que afetem seus modos de viver e a Convenção Sobre a Diversidade Biológica, em 1992, que reconhece a importância dos conhecimentos tradicionais dos povos para a conservação da biodiversidade.
No entanto, no Brasil, o “Marco Legal da Biodiversidade” (Lei n. 13.123/2015), contestado por movimentos sociais e comunidades tradicionais, acaba facilitando o acesso das empresas e pesquisadores aos conhecimentos tradicionais e dificultando a repartição de benefícios, uma vez que cria uma série de exceções e categorias questionáveis, como é o caso dos conhecimentos tradicionais de “origem não identificável”.
Armadilhas do Marco Legal da Biodiversidade
Essa ideia de “conhecimentos tradicionais de origem não identificável” impacta as raizeiras diretamente. Para as raizeiras, todo conhecimento tradicional é de origem identificável, uma vez que as detentoras do conhecimento sempre irão saber de onde este veio. A transmissão de conhecimentos tradicionais se processa de maneira natural, sendo esta a maneira de proteger o que sabem e ensinam. E é por isso que até hoje o saber das raizeiras se mantém vivo: elas conhecem a história de cada remédio caseiro que preparam e de quem herdaram aquele saber. As raizeiras avaliam que a instituição da ideia de um conhecimento sem origem foi uma manobra da lei, para dificultar a repartição de benefícios.
Muitos destes saberes das raizeiras estão na “Farmacopeia Popular do Cerrado”, um sistema de registro dos conhecimentos tradicionais sobre identificação, uso e manejo das plantas medicinais nativas do Cerrado e foi construído por 262 raizeiras e raizeiros dos estados de Goiás, Tocantins, Maranhão e Minas Gerais. A farmacopeia popular contém a origem desses conhecimentos e foi depositada no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SISGEN) para fins de proteção dos conhecimentos tradicionais e repartição de benefícios, em caso de acesso por parte dos usuários que desenvolverem produtos com esses conhecimentos para fins econômicos.
Já Maria Alaídes põe em evidência as armadilhas para a garantia da consulta prévia e informada ao acesso aos conhecimentos tradicionais das quebradeiras: “Quando a gente foi crescendo, já aprendeu a quebrar o coco com a avó, já aprendeu a fazer carvão, já aprendeu a tirar o azeite, já aprendeu fazer sabão, já aprendeu a plantar as medicinas, fazer os medicamentos caseiros.” E, mesmo com esse conhecimento tradicional tão evidente, enfrentam muitos desafios: “O babaçu, muitas empresas se apropriam para fazer experiências de produção usando o óleo de babaçu sem fazer a consulta prévia, fazendo a bioprospecção sem consulta das quebradeiras e isso é uma perda no nosso meio”.
Como herdeiras do conhecimento tradicional associado ao babaçu, as quebradeiras têm direito à repartição de benefícios. No entanto, a realidade é outra, como nos conta Maria Alaídes: “Em muitos lugares que tem mulheres que já estão se destacando em fazer seus sabonetes, a gente tem recebido propostas de empresas de cosméticos pra gente vender a base sem o cheiro, sem a essência, pra eles fazer o melhoramento, mas que a base não leva a luta das quebradeiras, não leva a cara das quebradeiras. A gente entende que, mesmo que isso não é patentear, mas que eles querem pegar parte do conhecimento tradicional associado ali naquele produto e tentar enriquecer, concentrar os lucros só pra uma empresa, deixando a gente desamparada desse bem distribuído de uma forma social e coletiva”.
E completa com uma crítica ao Marco Legal da Biodiversidade (Lei n. 13.123/2015): “A lei da biopirataria assegura que, dependendo da quantidade da nossa matéria-prima que o produto leva, eles passariam 0,05% de toda a venda, mas quem é que sabe a quantidade de venda que é feita por essas grandes empresas? Qual a prestação de contas que acontece para dar uma certa transparência para a gente poder entrar na negociação?”
Direitos conquistados na luta
Apesar dos graves problemas contidos, há brechas importantes conquistadas com a luta desses movimentos na tramitação da lei enquanto ainda era projeto e em sua regulamentação, com o Decreto n. 8772/2016. Este decreto reconhece o direito da população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional de negar o consentimento ao acesso a seu conhecimento tradicional associado de origem identificável. Isto é, reconhece o direito ao veto, ao poder de dizer “não” ao acesso aos saberes ancestrais.
Do mesmo modo, na Lei 13.123/2015, há a validação jurídica de instrumentos comunitários que têm se mostrado importantíssimos para os povos e comunidades, como é caso dos Protocolos Bioculturais Comunitários, como construiu a Articulação Pacari, que indicam quais são os conhecimentos tradicionais e o patrimônio genético protegido e desenvolvido pelas comunidades e como esses povos querem ser consultados sobre o acesso e repartição de benefícios sobre esses saberes.
Ainda temos muito que avançar na apropriação popular desses instrumentos, por isso o GT Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia tentou “traduzir” um pouco desses tratados e leis numa linguagem mais acessível na cartilha “Nossos conhecimentos sobre a sociobiodiversidade: salvaguardando uma herança ancestral”.
As raizeiras, na voz de Tantinha, ressaltam a importância do diálogo de saberes entre a ciência e os saberes tradicionais: “Nós dependemos da ciência para nosso trabalho desenvolver, enquanto a ciência também depende do nosso conhecimento tradicional para se desenvolver. Deve ser uma relação de parceria. A ciência deve ter uma relação de respeito com nossos conhecimentos, porque a ciência se desenvolveu a partir dos conhecimentos tradicionais, através das pessoas que já vinham desenvolvendo o cuidado com as plantas, como os indígenas.” Um exemplo dessa relação de respeito é o reconhecimento como mestras em Saberes Tradicionais, atribuído pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pela Universidade de Brasília (UnB) a Tantinha e Lucely, respectivamente.
Nesta mesma toada, Tantinha completa: “A ciência para conseguir desenvolver qualquer tipo de remédio, ela depende do conhecimento dos raizeiros. É inconcebível pros grandes laboratórios fazer remédio numa cozinha de casa, mas nós raizeiras defendemos esse direito, porque eu coleto a planta no meu quintal e preparo o remédio na minha cozinha. Eu cuido da planta para, a partir dela, cuidar da pessoa.”
Luta por direitos e para defender seus corpos e territórios
Ao ouvir os relatos das mulheres guerreiras do Cerrado, temos exemplos claros do que é a sociobiodiversidade, expressa na diversidade de paisagens, de modos de vida, de alimentação, porque elas vivem em sistemas agrícolas extremamente complexos e numa relação com a natureza mediada pelos valores do respeito, do cuidado e do pertencimento. Elas trazem sentidos profundos, ao borrar as fronteiras entre povos e natureza, sintetizadas na fala de Socorro: “Nós, seres humanos que vive nas matas, nós somos biodiversidade”.
Na carta final do I Encontro das Mulheres do Cerrado, realizado em junho de 2019, essa relação entre os modos de vida dos povos do Cerrado e a biodiversidade já ecoava com força: “A manutenção dos nossos modos de vida nos nossos territórios está conectada com nossa capacidade de convivência e manejo das áreas do Cerrado. A sociobiodiversidade cerradeira é base da garantia da soberania e segurança alimentar e nutricional das nossas comunidade e sociedade. Nossas práticas ancestrais de armazenamento, troca e cultivo de sementes conservam a biodiversidade. Acreditamos na agroecologia como prática de convivência com o campo e de produção de alimentos que se contrapõe ao agronegócio”.
Uma relação com a natureza que é de adaptação e convivência; e não de controle e dominação como é o caso dos monocultivos. São exemplos que se contrapõem a esse modelo dominante que destrói e viola direitos. E isso é muito significativo neste momento em que somos confrontados com uma pandemia, cujas causas estruturais é justamente esse modelo agrícola industrial que padroniza a vida e as paisagens.
Uma história de conflito permanente
A história das quebradeiras, das raizeiras e de tantas mulheres dos povos do Cerrado é uma história de conflito permanente. Conflito com quem nega seus direitos e saberes. Conflito com quem representa essa outra visão da natureza, baseada na exploração. A luta dessas mulheres, no bojo desses conflitos, nos traz muitos ensinamentos. Quando as mulheres quebradeiras de coco chamam atenção para o valor de uma árvore, elas estão se colocando frontalmente contra a propriedade privada e estão enaltecendo aquilo que está sobre a terra. E historicamente, nas nossas legislações, a árvore é considerada como algo acessório, então quando lutam pelo babaçu livre, elas estão invertendo o que historicamente estava nas leis. Também das árvores vem um outro ensinamento da luta dessas mulheres: Pacari, que dá nome à articulação das raizeiras, é uma árvore que espalha as suas sementes pelo vento e que não existe isolada no Cerrado, está sempre agrupada. Então, a árvore que é o símbolo da luta dessas mulheres também nos ensina o valor do trabalho em grupo, das articulações em rede, tão fundamentais para a defesa de direitos e territórios.
Ao mesmo tempo, as quebradeiras enfatizam como a “mãe-palmeira”, companheira que alimenta seus filhos, é continuamente aprisionada pelas cercas, contaminada pelos venenos, derrubada pelas motosserras. A luta pela libertação da palmeira caminha junto com a luta pela libertação dos corpos das mulheres do Cerrado, que enfrentam a violência entranhada na sociedade, tantas vezes em suas próprias casas e comunidades. No I Encontro das Mulheres do Cerrado, elas afirmaram: “Não existem territórios livres com corpos presos!”. E enfatizaram que o “ódio às mulheres perpetrado pelos atuais representantes das instituições brasileiras tem se refletido também no aumento do feminicídio nas nossas comunidades. Entendemos a flexibilização da posse das armas como uma ameaça direta às nossas vidas.”
As mulheres do Cerrado semeiam futuros alternativos
As lutas das quebradeiras e raizeiras encerram um sentido precioso e profundo de inovação das tradições. Elas nos mostram que os modos de vida dos povos indígenas, comunidades quilombolas e povos e comunidades tradicionais do Cerrado não estão presos ao passado. São modos de vida que nos projetam para futuros alternativos e as mulheres desses povos são as “parteiras” desse outro mundo possível. Um devir semeado, cuidado e nutrido por essas mulheres com base na diversidade e no respeito à natureza e à ancestralidade, tais como afirmaram as mulheres no I Encontro:
“Nós somos as guardiãs do Cerrado e dos saberes populares que herdamos de nossos e nossas ancestrais. Por toda nossa história, lutamos para que nossa cultura e modos de vida resistissem. Unidas na nossa diversidade, afirmamos aqui que o Cerrado brasileiro tem cara de mulher! Essa mulher é resistente, resiliente, negra, indígena, quilombola, feminista, camponesa, assentada e acampada, sem-terra, atingida por mineração e barragens, quebradeira de coco babaçu, sertaneja, pescadora, vazanteira, LGBTQ+, assalariada rural, fundo e fecho de pasto, raizeira, benzedeira, parteira, agricultora familiar, geraizeira, ribeirinha. O Cerrado é um mosaico de vidas e biodiversidades. É berço das águas do país e seus campos e florestas são os lugares que nos alimentam. Por isso, participamos da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado por compreender a profunda relação desse bioma com nossos modos de vida.”
[1] Diana Aguiar, assessora da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado; Jaqueline Evangelista Dias, coordenadora executiva da Articulação Pacari Raizeiras do Cerrado; Lourdes Cardozo Laureano, coordenadora técnica da Articulação Pacari Raizeiras do Cerrado; Maria Emília Lisboa Pacheco, assessora da FASE; Naiara Andreoli Bittencourt, advogada popular da Terra de Direitos; Rosalva Gomes, assessora técnica do MIQCB e; Valéria Pereira Santos, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil.