Maureen Santos
26/02/2025 12:19

Esse artigo foi publicado originalmente em inglês no site do IATP – Institute for Agriculture & Trade Policy.

Maureen Santos[1]

O comércio internacional voltou a receber atenção significativa, recentemente, na mídia global e nos debates na sociedade civil, após uma série de eventos que ainda que caminhem em direções opostas, apontam potenciais resultados numa mesma direção: impactos negativos nos sistemas alimentares e na proteção socioambiental, adiando o caminho para uma transição justa e inclusiva.

A guerra comercial travada pelo governo dos EUA sob o comando do presidente Donald Trump, logo após sua posse, levantou preocupações sobre o aumento dos preços dos alimentos e lançou dúvidas sobre a já enfraquecida Organização Mundial do Comércio (OMC). Ao mesmo tempo, a conclusão das negociações do Acordo União Europeia-Mercosul, apesar das longas e fortes campanhas contrárias por parte de organizações da sociedade civil no Brasil e em outros países do Mercosul, bem como de grupos europeus, acionou o alarme sobre os retrocessos significativos para as políticas públicas que protegem a soberania alimentar e nutricional, bem como os direitos e a proteção das florestas e de seus povos.

O artigo se concentrará brevemente em algumas das implicações no texto final do Acordo EU-Mercosul negociado entre 2023 e 2024, chamado de Pacote de Brasília[2] , indicando certos aspectos geopolíticos e como posicionamentos da sociedade civil brasileira influenciaram algumas mudanças, especialmente relacionadas a compras governamentais e acesso a mercados, embora tenham se mantido fortemente críticas ao acordo.

Apesar de representantes governamentais de países do Mercosul reconhecerem a natureza “neocolonial” do acordo, que envolve a troca de commodities por produtos industrializados de alto valor agregado e com ganhos limitados para os países sul-americanos, fatores geopolíticos e econômicos acabaram levando à sua aprovação. O acordo consiste em 20 capítulos, embora sua versão final completa, numerada e intitulada, ainda não esteja disponível.[3] Além do capítulo sobre comércio de bens, ele inclui capítulos sobre compras governamentais, serviços, desenvolvimento sustentável, propriedade intelectual, medidas sanitárias e fitossanitárias, regras de origem, entre outros. A última rodada de negociações acrescentou regras para a solução de controvérsias, incluindo um mecanismo de reequilíbrio; colaboração para apoiar regras multilaterais sobre trabalho e desenvolvimento sustentável[4]; e um compromisso vinculante para se manter como Parte do Acordo de Paris e da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), identificando essa permanência como um elemento essencial[5] do Acordo UE-Mercosul.

Durante esse período, os esforços diplomáticos brasileiros se concentraram em evitar que o Acordo prejudicasse a industrialização brasileira, bem como bloquear novas tecnologias, como as relacionadas à Inteligência Artificial, que o país possa querer desenvolver. Além disso, o argumento central do Brasil, especialmente como país do Mercosul mais interessado em concluir as negociações nesse período, foi de que as crises econômicas e políticas desencadeadas pelas guerras na Europa e no Oriente Médio, juntamente com a nova Guerra Fria entre os Estados Unidos e a China, deixaram o Brasil em uma situação altamente desequilibrada devido à sua dependência à importação chinesa. Atualmente, a China é o maior parceiro de exportação do Brasil, respondendo por cerca de um terço de suas exportações, seguida pelos Estados Unidos. E esse tem sido o caso desde 2018.

Vale a pena mencionar várias mudanças importantes no texto final. Por exemplo, um dos focos da pressão da sociedade civil é relacionado aos programas de compras governamentais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que supostamente ficaram excluídos do Acordo. Conforme indicado pelas exceções descritas em um parágrafo das ofertas brasileiras: “Compras públicas de bens e serviços adquiridos no âmbito de programas de segurança alimentar e nutricional e de alimentação escolar que apoiem agricultores familiares ou cooperativas de agricultores familiares com registro específico, de acordo com a legislação nacional.”

No entanto, a declaração publicada pela Frente Brasileira contra o Acordo União Europeia-Mercosul ), uma coalizão nacional criada em 2020 para pressionar contra a assinatura do acordo, indica que, apesar de algumas demandas terem sido incorporadas aos anexos da versão final, o Acordo ainda contém problemas significativos. Há preocupações relacionadas a insuficiência de  garantias ambientais e aos sistemas alimentares, como a falta de controle sobre os agrotóxicos e a expansão da fronteira comercial do agronegócio, já que o Acordo prevê a liberalização total ou parcial de 99% das exportações agrícolas brasileiras para o mercado europeu. Isso intensificará as disparidades com a produção da agricultura familiar e camponesa e aumentará a produção de soja e milho para atender à nova demanda de exportações, refletindo que o conteúdo assimétrico e desigual, denunciado pelas organizações da sociedade civil, permanece inalterado. A mais antiga rede nacional dedicada ao monitoramento e à defesa contra os acordos de livre comércio, a Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), argumenta que o Acordo não pode ser corrigido, pois sua origem remonta a mais de duas décadas e sua estrutura atual permanece praticamente inalterada em relação à estrutura original. Para a Rebrip, “o agronegócio e a mineração se tornarão ainda mais fortes, justamente os setores mais nocivos ao meio ambiente e mais associados à violência rural”.

Apesar das preocupações levantadas por povos indígenas, ambientalistas, agricultores familiares e outras redes que defendem a Amazônia e o Cerrado – regiões ecológicas mais amplas e que são lar de povos indígenas e comunidades tradicionais -, a última rodada de negociações não fez nada para limitar as medidas comerciais que incentivam uma expansão drástica das exportações. A expansão das cotas para carne bovina, aves, etanol e outros produtos, cuja produção é um dos principais fatores de desmatamento, bem como a que mais contribui para as emissões de gases de efeito estufa (GEE) do Brasil, continua. O modelo de produção desigual, baseado na pecuária em larga escala e no monocultivo da soja, por exemplo, está no centro dos conflitos fundiários, ameaçando os direitos dos povos indígenas, das comunidades tradicionais e camponesas.

Nos últimos anos, sob pressão da sociedade civil, do setor privado e de parlamentares, a União Europeia implementou políticas mais rígidas para tratar de questões ambientais em seu comércio internacional e introduziu uma série de regulamentações. Entre elas estão a Diretiva de Due Diligence de Sustentabilidade Corporativa (CS3D ou CSDDD), o Mecanismo de Ajuste de Fronteira de Carbono (CBAM) e a Regulação sobre Produtos livres de Desmatamento da UE (EUDR). Essas regulações exigem maior transparência e responsabilidade nas operações e cadeias de suprimentos, com implicações significativas para mercados exportadores, como os dos países do Mercosul. Por exemplo, no CSDDD, as empresas com mais de mil funcionários e receitas globais superiores a 450 milhões de euros precisarão auditar sua cadeia de suprimentos relacionada a práticas como desmatamento ilegal e implicações para a perda de biodiversidade, bem como crimes como trabalho infantil e forçado.

Nesse contexto, e considerando que estas regulamentações são vistas como protecionistas pelos países do Mercosul, o texto final do Acordo foi aprovado após três compromissos fundamentais terem sido assumidos. O primeiro é um pacote de flexibilidades, que inclui um compromisso formal da UE com os países do Mercosul de fornecer financiamento, como empréstimos, subsídios e cooperação técnica, para apoiar a adaptação de agentes econômicos e o acesso completo à Agenda de Investimentos do Portal Global UE-ALC no âmbito do Protocolo de Cooperação. A segunda é o adiamento da implementação EUDR, que dará mais tempo para que as empresas do agronegócio desenvolvam mecanismos de monitoramento adequados. Por fim, um mecanismo de reequilíbrio juridicamente vinculante dentro do capítulo de Solução de Controvérsias, que poderia ser “ativado quando as medidas unilaterais de uma parte afetarem o uso de concessões comerciais acordadas entre os dois blocos. Isso significa que a outra parte pode iniciar a mediação, recorrer a um painel de arbitragem e tomar medidas corretivas“.

O novo Mecanismo de Reequilíbrio poderia minar os efeitos das regulamentações da UE, pois permite a ativação de um mecanismo de solução de controvérsias sobre medidas que alterem o equilíbrio das concessões feitas no momento da assinatura do acordo. Isso inclui mediação, painéis e retaliações, que forneceriam compensação se ações unilaterais de uma das partes afetassem o que já havia sido acordado entre os blocos. As autoridades da UE argumentam que o escopo se baseia nas regras da OMC e não se aplica a regulamentações que já foram adotadas.  Entretanto, um novo anexo intitulado Definição de medidas faz referência a leis que ainda não foram implementadas no momento da conclusão das negociações (como a EUDR). Isso poderia criar novas pressões para impedir futuras leis ambientais e outras leis de interesse público em ambos os lados do Atlântico.

Nesse sentido, é difícil acreditar que os acordos de livre comércio possam oferecer benefícios para as políticas climáticas ou socioambientais, pois eles promovem a primazia do acesso a mercados a qualquer custo. O Acordo UE-Mercosul exemplifica isso, pois apesar de continuar com a narrativa de que garante cláusulas ambientais e compromissos climáticos, na prática implementa medidas que podem desviar meios e recursos que poderiam ser usados para uma transição genuína, justa, ecológica e inclusiva.

[1] A autora é ecologista e cientista política, coordenadora do Núcleo de Políticas e Alternativas da FASE – Solidariedade e Educação.

[2] Em 2019, ambos os blocos anunciaram a aprovação da “associação do acordo político”, embora alguns capítulos ainda estivessem em aberto. A versão final de 2023-34 incluiu todos os textos e novos anexos, por exemplo, o Anexo XX que inclui compromissos sobre regimes multilaterais, mudanças climáticas e obrigações sobre o Acordo de Paris da UNFCCC como “elemento essencial”. Veja no Pacote de Brasília.

[3] Os textos disponíveis vêm com um aviso sobre isso.

[4] No novo anexo do capítulo sobre Comércio e Desenvolvimento Sustentável, foi incluído um item denominado A.2 sobre Regimes Multilaterais. Esse tópico é particularmente relevante, pois agora faz referência a todos os compromissos multilaterais relacionados à Organização Internacional do Trabalho (OIT), como a Convenção 169 (sobre consulta livre, prévia e informada) e acordos ambientais.

[5] “Nesse contexto, reconhecendo o papel do comércio na contribuição para a resposta à ameaça urgente da mudança climática, cada Parte deverá permanecer como parte, de boa fé, da UNFCCC e de seu Acordo de Paris.” Essa frase é considerada um elemento essencial do Acordo.

*Coordenadora do Núcleo de Políticas e Alternativas da FASE