07/07/2017 12:22
Aercio de Oliveira¹
A partir da experiência com a produção de cartografias sociais no trabalho de educação popular do programa da FASE no Rio de Janeiro, assumo a perspectiva de que essa metodologia é mais uma das inúmeras evidências de que estamos dentro de uma radical transformação sociopolítica que nos desafia pedagogicamente e, ao mesmo tempo, traz consequências para a agenda urbana e as estruturas de funcionamento e estratégias de determinados espaços de mobilização. Essa ideia, no entanto, não deve ser compreendida como uma excessiva valorização dos resultados obtidos com as cartografias e, tampouco, como o desconhecimento dos seus limites.
Inúmeras são as iniciativas sobre as motivações que têm levado pessoas a se unirem para produzir cartografias – nas mídias sociais e na internet, a partir de aplicativos para telefones celulares pletoram diferentes tipos de cartografias. Algumas dessas análises encontram na pressão efetuada por agentes públicos e privados sobre os territórios a justificativa para se produzir esses estudos. A pressão ocorre, por exemplo, na construção da usina de Belo Monte, no norte do país, que viola os direitos dos indígenas, das populações ribeirinhas e das florestas; na construção do porto de Suape, em Pernambuco, que altera o modo de vida das mulheres pescadoras; quando a polícia militar e o exército invadem as favelas da cidade do Rio de Janeiro e tiram a vida de jovens, deixando mães em um desassossego sem fim, traumatizadas com a perda de seus rebentos. Outra abordagem é a de que a cartografia, em certas condições, é um eficiente subsídio para incidir na política pública e mostrar a realidade ou o conflito da perspectiva de quem está envolvido diretamente (ainda denomino por cartografia social as produções que não se limitam a abordar conflitos ou violações de direitos).
Existe a análise que vê essa profusão da prática cartográfica entre os grupos que sofrem diferentes violações ou desejam apresentar uma dimensão da vida social como o resultado do empenho de docentes, alunos e alunas, pesquisadores e pesquisadoras das universidades, do avanço da geografia crítica, etc, para a troca de saberes e para possibilitar que uma técnica, que originariamente serviu para ampliar a força e o poder, sirva às lutas populares. Considero todos esses argumentos pertinentes e complementares.
Mas, adiciono a esse conjunto de justificativas e análises a perspectiva de que a cartografia social também é a manifestação de um tempo em que os interstícios das relações sociais, os fatos sutis, a afirmação de identidades, de valores e modos de vida alternativos, as dimensões subjetivas das pessoas, os conflitos atomizados, aqueles fenômenos relativamente considerados “menores”, que também estão sob as injunções de um Estado entrançado aos interesses privados de grupos que buscam precificar a vida e tornar o mal uma banalidade, exigem visibilidade.
Essas pessoas, predominantemente negras, que vivem em favelas, em precárias condições de moradia nos espaços urbanos, com baixa capacidade de incidir no sistema político formal ou no sistema de justiça, que a vida está sempre por um fio, desejam ocupar a cena pública, mexer nas estruturas políticas e nas agendas tradicionais. Já os governos conservadores querem ter as demandas atendidas e seus direitos reconhecidos. Enquanto que da esquerda, que resultou das transformações da estrutura e do ideário do final do século XIX, espera-se que seja sensibilizada e incorpore as diferentes questões vocalizadas por esses setores da sociedade para avançar nas lutas.
A cartografia social, além dos seus propósitos, que podem ser o de colocar um fato ou questão em debate numa escala mais ampla, de evidenciar a positividade de um território, é um processo que coloca os envolvidos diante de outra temporalidade, de outra linguagem, para rever os fios que teceram suas biografias, seus traumas e alegrias, aspectos simbólicos e materiais do local onde se vive ou viveu. A interação entre a fala e a escuta tende a seguir uma lógica alternativa. As narrativas são estruturadas, muitas vezes sincronicamente, num construir e desconstruir. Dependendo do tema, poderá se ter um resultado sempre inacabado que, ao se tratar de coisas da vida humana, por meio de uma linguagem, está sujeito a retificações e complementações. Afinal, sempre podemos dizer mais sobre o mundo, o cotidiano e as interações que acontecem em diferentes escalas. Os meios disponíveis para a construção da cartografia são adequados aos interessados em construir. Ninguém perde a oportunidade de se envolver, de confiar ou de desconfiar. É a possibilidade de procurar compreender o que esteve sempre óbvio, mas aparentava obscuridade. E o inverso, ao buscar compreender o que nunca esteve óbvio e deliberadamente oculto.
Para além dos dados
Com este retrato, identifico na cartografia social também um alerta que se dirige a temas e a organizações. De maneira sutil, nos desafia e sugere que ousemos em nossos métodos para além da própria cartografia. Provoca-nos a encontrar maneiras de abarcar o que está na escala menor, que se encontra em becos e ruelas, fora dos mapas oficiais, das estatísticas dos “cadastros únicos”, das bem elaboradas monografias, dissertações e teses. Também ajuda os movimentos sociais, os partidos e tantas outras instituições que lutam contra tantas injustiças a atualizarem as agendas, as táticas e estratégias de ação.
A cartografia está imersa em uma era em que o tecido associativo e a sociedade acentuam a fragmentação; os valores que surgiram dos movimentos humanistas e iluministas perdem o sentido ou se ressignificam; as pessoas, de maneira geral, passam a assumir os mesmos princípios da economia como uma forma de se orientar e se relacionar no mundo – “O que conta é aquilo que pode ser contado!!!”. Ideias que já foram vigorosas e caras à esquerda mundial, como “socializar os meios de produção”, “eliminar a mais-valia”, “a classe proletária é o sujeito universal”, entre tantas outras, perderam a sua capacidade orientadora e mobilizadora.
A ideia de se construir um sujeito político que produza programas e elabore um projeto societário utópico abrangente e unificador, por ora, está bem distante de se efetivar. Em vez de grandes projetos de luta, temos causas que emergem, mobilizam e se desmobilizam fugazmente. É o tempo da economia da narrativa, do simulacro e do efêmero. Capacidade de simplificação e rapidez é um imperativo quase absoluto. A mediação parece perder sentido, os “iluminados” são destronados, as estruturas hierarquizadas das organizações parecem não dar conta. O sistema político formal se desconectou de quem os legitima – é um sistema que ignora a vontade popular. A democracia representativa acentuou o seu formalismo e o Estado de Direito é ficção. São grandes engodos da modernidade. A atomização no campo da esquerda social também atormenta e angustia.
As estruturas e instituições produtoras de conhecimento, como as universidades, são questionadas. As justificativas e fundamentações teóricas dos novos “intelectuais orgânicos”², que pesquisam e moram nas favelas e bairros das periferias, procuram se distanciar do eurocentrismo, esses que tem na base das suas ideias o pensamento produzido na Europa, são acusados de terem elitizado as universidades e de colonizarem nossas ideias. As fontes que alimentam debates, a “práxis”³, estão nos continentes africano, asiático e em nossa América Latina.
Diante desse quadro, vejo a cartografia no meio de tantas outras iniciativas humanas que, para além da sua função pragmática, de mudar as “condições objetivas” dos envolvidos em sua construção, sinaliza o quanto a micropolítica passou a ser uma dimensão da vida substantiva. A cartografia social, com diferentes temas, desenvolvidas por mulheres, jovens, grupos que lutam por moradia digna, expressa a combinação entre aspectos subjetivos, identitários e outros temas que normalmente são invisibilizados ou recebem pouca atenção do Estado e da sociedade.
Não alimento expectativas de que a cartografia possa cumprir a mesma função em todos os lugares. Em alguns, ela contribuirá na incidência política direta; em outros, irá fortalecer identidades coletivas; em tantos outros, irá colocar em uma parte da cena pública temas ou fenômenos vividos por certos grupos e coletivos sociais. E pode acontecer, em situações excepcionais, de todos esses efeitos ocorrerem simultaneamente provocados por uma cartografia produzida por um grupo que partilha as mesmas questões e vive no mesmo território. Também não espero que a cartografia tenha a força e a capacidade de contribuir para a unificação das lutas, de enfrentar o lado perverso da fragmentação. Ela é mais uma forma de aglutinar pessoas para estruturar narrativas de pedaços da vida que se desenrola nos territórios.
Entretanto, é na cartografia que está a oportunidade de refletirmos sobre a agenda e as lutas urbanas, nas metrópoles onde atuamos, que não se limitam ao saneamento ambiental, à moradia, à mobilidade urbana e à regularização fundiária. Nas lutas urbanas estão essas questões que surgem e urgem por soluções e precisam ser fortalecidas, assumidas e incorporadas pelos movimentos urbanos, sobretudo os que nasceram no período da redemocratização brasileira. Por fim, acredito que este instrumento seja como uma lente que nos auxilia a enxergar as tramas e as urdiduras desse imenso tecido associativo que passa por profundas transformações.
[1] Coordenador do programa da FASE no Rio de Janeiro.
[2] Que provém de sua classe social de origem e se mantém vinculado a ela ao atuar como porta-voz da ideologia e interesse de classe.
[3] Atividade prática em oposição à teoria.