04/01/2018 14:50

Natália Almeida¹

O ato de comer é comum a todos os seres humanos. Seja qual for o povo, a cor e a crença, a comida é uma demanda comum e não é à toa que ela é um direito humano. Em um mundo em que 2,1 bilhões de pessoas estão obesas ou com sobrepeso (quase 30% da população mundial) e, em um país onde a prevalência pela obesidade aumentou em 60% nos últimos 10 anos, estão entre os mais atingidos, justamente, os mais pobres. A industrialização que transforma alimentos em produtos alimentícios a baixo preços, repletos de químicos e muitas embalagens, atingiu justamente a classe trabalhadora. A alimentação como um direito envolve, portanto, não apenas o direito de estar livre da fome, mas o direito constitucional à alimentação adequada. E, na luta da agroecologia e da reforma agrária, não basta estar livre de venenos, transgênicos e agroquímicos. É preciso que este alimento seja acessível a toda a população, do campo e da cidade.

(Foto: Banquetaço SP/Reprod.)

O IV Encontro Nacional de Agroecologia acontece sob essa marcha: se comer é um ato político, é preciso construir e fortalecer resistências contra as ameaças que impedem que a alimentação saudável – justa e agroecológica – floresça e ocupe as mesas das casas em todos os lugares. Recuperando também o lema dos importantes encontros animados pelo Conselho Nacional de Segurança e Soberania Alimentar (Consea), o IV ENA¹ traz como uma de suas bandeiras “Comida de Verdade, no campo e na cidade”. Outra marca importante é que, pela primeira vez, o evento será realizado de forma enraizada desde sua preparação em uma grande cidade: Belo Horizonte (MG), a terceira maior metrópole do Brasil, acolherá os mais de 2 mil participantes que seguirão, de todos os cantos do país, à capital mineira.

Uma das principais propostas do IV ENA é ocupar as cidades com comida de verdade, realizando – como processos preparatórios e descentralizados – grandes banquetes públicos nas ruas, praças e demais espaços públicos. Mesa da partilha, discoxepas, sopão, piquenique ou banquete público. Seja qual for o nome dado às iniciativas, a proposta é realizar atos públicos por todo o Brasil oferecendo solidariamente comida a quem participa, passa e mora pelas ruas das cidades. Essa prática não nasce com as recentes iniciativas ligadas à alimentação saudável, ela é um ato político e solidário construído há décadas por importantes organizações e movimentos sociais do Brasil e do mundo. 

Luta contra a fome e solidariedades nas ruas

“A cultura apareceu para construir no campo arrasado, para levantar do chão tudo que foi deitado. O que importa é alimentar gente, educar gente, empregar gente. E descobrir e reinventar gente é a grande obra da cultura. Uma obra que será nossa. Será porque a cultura continua a pensar, discutir, reunir, transformar. A arte sabe e quer dizer mais, muito mais. A arte tem o poder de transformar, nem que seja primeiro na ficção, na imaginação”. Herbert de Souza (Betinho)

(Foto: Ação e Cidadania/Reprod.)

Será que Betinho já sabia da confusão que a gente iria aprontar levando comida agroecológica para o meio da rua misturada à cultura popular, à arte e à educação popular? Talvez sim! Betinho foi um dos precursores na luta organizada contra a fome no Brasil. Sua luta simbólica construiu a Campanha “Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria”, que existe desde 1993 e resiste até hoje. Segundo informações da organização, entre 1993 e 2005 foram arrecadadas 30.351 toneladas de alimentos em todo o Brasil, beneficiando 3.035.127 famílias. Seu principal eixo de atuação é uma extensa rede de mobilização formada por comitês locais da sociedade civil organizada, em sua maioria compostos por lideranças comunitárias, mas com participação de todos os setores sociais.

A história de dialogar com a sociedade sobre a comida começou há mais de 20 anos, quando a Campanha realizou, pelo Brasil todo, diversas atividades. Entre elas, a ação que mais se parece com o que hoje muitos movimentos jovens realizam, chamando de Banquetaço, foi a “Mesa de 1 km”. Uma mesa de 1 quilômetro de comprimento é disposta em alguma via pública e pratos vazios são distribuídos sobre ela. Aos poucos, os pratos vazios dão lugar à alimentos doados, e articulados pela Campanha, que são servidos a quem passa. Emociona pensar que essas ocupações da rua com comida têm origens históricas, fruto de articulações políticas muito importantes por todo o Brasil e que, infelizmente, essas fotos são de 2017, quando, depois de dez anos de sua última edição, a Campanha volta a ocupar as ruas com as mesas e com uma extensa mobilização.

Discoxepas e a luta contra o desperdício

“Centenas de pessoas, munidas com descascadores de legumes, facas e tábuas de corte, se reuniram no interior de um dos maiores mercados da cidade ao som de DJs. Elas higienizaram, cortaram e prepararam toneladas de vegetais frescos e saudáveis que iriam para o lixo por não se encaixarem nos padrões de venda. Os alimentos viraram gigantes panelas de sopa que foram servidos gratuitamente ao público no dia seguinte, em uma praça da cidade”, conta o site do Slow Food sobre a Disco Xepa, nome abrasileirado da “Schnippel Disco”, ou Disco Sopa, concebida na Alemanha.

(Foto: Sindicato dos Bancários/Reprod.)

Tendo como ponto de partida a ideia de que as relações entre prato e planeta são mais importantes do que as propagandas fazem parecer, o movimento Slow Food foi criado na Itália em 1989. O Festival Disco Xepa é uma das ações desenhadas para inspirar, reunir e formar pessoas que possam contribuir com a luta contra o desperdício de comida, contra a má alimentação e a favor da ação cidadã. O movimento “tem objetivo de reunir os ativistas, os cozinheiros, estudantes, as famílias e compartilhar informações e inspirar todos para agir na solução do problema”.

Além de articular as sobras ou promoções das feiras e mercados, as Disco Xepas têm avançado na articulação da mobilização da luta contra o desperdício à cultura popular. Em Santa Catarina, em 2014, animado pelo Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (Cepagro) em parceria com o Consea, a Disco Xepa – por exemplo – misturou cuscuz ao RAP e mobilizou cerca de mil jovens. A iniciativa de Santa Catarina integra um festival animado pelo Slow Food, no mesmo ano, em todo o Brasil.

Das iniciativas recentes, cabe destacar o Banquete, que aconteceu no primeiro Encontro Preparatório rumo ao IV ENA, o ERÊ Sudeste, realizado em outubro de 2017 em Belo Horizonte. Vale conhecer também a iniciativa dos grupos e movimentos em São Paulo, o “Banquetaço”, articulação que venceu parte da luta contra as farinatas do prefeito do João Doria (PSDB).

Cidade e Campo unidas, ocupando as ruas

Danúbia Gardênia, da Rede de Intercâmbio e da secretaria executiva do IV ENA, fala da vivência realizada embaixo do Viaduto Santa Teresa, em Belo Horizonte, no último dia do ERÊ Sudeste. Ela diz que “a experiência de compartilhar alimentos com as agricultoras, agricultores, moradores, jovens, na cidade é maravilhosa”. “Essa ação faz parte da preparação dos territórios para o IV ENA, que busca estreitar as lutas e resistências entre o campo e a cidade”, comenta. Danúbia ainda fala da Bicicoletada de Quintal, que percorreu a cidade colhendo sementes e frutos pelas ruas de Belo Horizonte. Esses foram usados na preparação da comida do Banquete.

(Foto: ABA/Reprod.)

Maria Fernanda, cozinheira/chef do restaurante Marcelina Belmiro e uma das organizadoras do Banquete na capital mineira, fala da “honra de cozinhar com os produtos agroecológicos. “Tivemos uma mesa cheia de variedade de alimentos. É um passeio pela agroecologia, pelos quintais produtivos de Belo Horizonte e de Minas Gerais. Teve limão cravo, banana marmelo, óleo de macaúba, azeite de ervas dos quintais, mandioca, palha do milho e a folha da bananeira servindo de guardanapo. Farofa de milho e mandioca, uma verdadeira reunião de alimentos do Brasil inteiro”, explica. Fernanda lembra que “esse passeio”, como ela chamou, foi uma partilha construída coletivamente.

A experiência do Banquete do Erê e do Banquetaço em São Paulo mostram que, com trabalho em parceria, é possível organizar essa ação coletiva em qualquer cidade e que a ocupação das ruas com solidariedade e comida é um caminho potente para dialogar com a sociedade sobre a agroecologia. Assim como esses, muitos Banquetes, Mesas da Partilha e Mesas de luta contra a fome podem ocupar as ruas das grandes e pequenas cidades, os espaços das feiras agroecológicas, das universidades e escolas públicas, dos parques municipais – como será realizado em Belo Horizonte em 2018 – e muitos outros. Até lá, há muito a ser feito em parceria com as pessoas, movimentos sociais populares e organizações que atuam nos vários territórios do país.

Sobre os encontros preparatórios rumo ao IV ENA, o próximo já está marcado: será na Amazônia. Qualquer pessoa, grupo ou movimento pode se conectar a este processo e, inspirados em tantas iniciativas de resistência, colorir as ruas e sorrisos com alimentos saudáveis, justos e populares.

[1] Integra o Coletivo de Comunicação e Cultura do IV ENA, evento organizado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), da qual a FASE é parte. O Encontro ocorrerá de 31 de maio a 3 de junho de 2018. Edição de texto orginalmente publicado no site da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA).