31/01/2022 15:56
Fátima Mello
No início dos anos 1990, um amplo conjunto de organizações e movimentos sociais brasileiros se preparava para receber parceiros do mundo todo no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, para Fórum Global paralelo à Rio-92, a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento. Fazia pouco tempo que estas mesmas organizações e movimentos sociais haviam sobrevivido à ditadura civil-militar – ou, em outros casos, emergido com o seu fim – e fizeram uma demonstração contundente de sua vitalidade durante a mobilização para a Constituinte de 1988.
Naquele momento, lutas históricas por terra, direitos de mulheres, questões raciais, pelos povos indígenas, direitos trabalhistas, crianças, saúde e educação, se traduziam em uma riquíssima multiplicação de pautas que cresciam e se articulavam em fóruns, redes e coletivos. O Fórum Global na entrada dos anos 1990 foi o palco onde toda essa mobilização desembocou, revelando ao mundo que aqui haviam atores sociais potentes e dispostos a enfrentar a tsunami do Consenso de Washington que vigoraria ao longo de toda aquela década.
No Aterro do Flamengo, essa luta se dava na disputa em torno da agenda denominada, naquela época, de desenvolvimento sustentável. Para o mercado, mais uma oportunidade de lucros. Para as organizações e movimentos sociais, um projeto de sociedade que combinava os acúmulos de uma diversidade de pautas e propostas, e que se materializavam em dezenas de tendas de debates organizados por um amplo conjunto de atores sociais aos quais a FASE se somou. A sociedade civil brasileira falava para o mundo que a sustentabilidade teria que ser popular, indígena, preta, das mulheres, da justiça econômica e social, do direito à terra e ao trabalho decente, ou não seria.
Embora já conhecesse a FASE, foi ao longo da preparação para aquele grande momento de convocação que passei a compreender a dimensão e a importância da organização. E aqui aproveito para render uma homenagem àquele com quem tanto aprendi até o último momento em que esteve entre nós, Jean Pierre Leroy. Tendo se comprometido de corpo e alma, desde a sua fundação em 1961, com lutas coletivas e com processos organizativos por meio da educação popular em diversos territórios e regiões espalhados pelo país, a FASE deu as mãos a seus parceiros para conseguirem, juntos, realizar o inesquecível Fórum Global.
Rio-92: o marco internacional da FASE
Na época, lembro que parceiros internacionais perguntavam quais eram os temas e agendas da FASE, já que ainda não era conhecida por ser uma organização ambientalista, nem tampouco com intervenção relevante nos debates globais. Pois é precisamente aí que ocorre o encantamento da FASE. Sem ser oficialmente uma organização ambientalista, por décadas a FASE já vinha realizando experiências em diversos territórios espalhados pelo país com o que hoje chamamos de justiça ambiental.
Como então responder sobre quais seriam os temas da FASE, em uma era em que o ideário neoliberal – que então já produzia efeitos também na cooperação não-governamental – pressionava por especialização, segmentação, resultados e impactos mensuráveis e no menor prazo possível? Como classificar e mensurar a atuação de uma organização que construiu sua metodologia inspirada em Paulo Freire, em Milton Santos, no que aprende a cada dia com os povos e comunidades em seus territórios, que se reinventam no cotidiano com seus parceiros de luta e aprendizados no Cerrado, Amazônia, Bahia, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, sem falar dos programas regionais que encerrou em inúmeros outros estados e territórios ao longo de décadas?
Localizo no Fórum Global durante a Rio-92 o marco onde a FASE passa a entender e a traduzir sua missão para si mesma e para o mundo como uma entidade que, embora não se definisse como ambientalista, lutava por justiça ambiental e climática desde o seu nascedouro, e que sua metodologia onde todas as agendas e temas andam “juntas e misturadas”, recusando a fragmentação, tinha uma mensagem relevante a ser disputada no debate global sobre desenvolvimento e meio ambiente, como definia a agenda oficial das Nações Unidas: a resposta para a sustentabilidade do desenvolvimento não estava no receituário do Consenso de Washington de privatização dos bens comuns e de redução da esfera pública.
A resposta estava, como sempre esteve e sempre estará, nos povos e comunidades que lutam pelos bens comuns e que nunca separaram mudanças climáticas da luta por terra; geração de renda de agroecologia e agroflorestal; lutas por direitos humanos básicos de projetos abrangentes de um país com justiça social, econômica, ambiental e; racial e de gênero.
A cada dia, a cada nova luta, a cada novo encontro, a FASE aprende e atualiza sua metodologia. E assim foi aprendendo a traduzir sua atuação nos territórios para o debate global. Junto com seus parceiros foi compreendendo que os debates travados nas COPs da Convenção do Clima, no Banco Mundial, nos BRICSs, na Organização Mundial do Comércio (OMC), nos acordos regionais e bilaterais de “livre” comércio incidem diretamente sobre as condições de vida nos territórios, e que, portanto, estes territórios e seus povos devem ter um papel central na disputa de rumos dessas negociações. É nesses territórios que o global se materializa, e é neles que estão as respostas, propostas e esperanças de um outro mundo urgente e necessário.
Vida longa à FASE e à sua rica atuação territorial-nacional-global, construída solidamente ao longo de seis décadas!
Fátima Mello é historiadora e doutoranda em Relações Internacionais (IRI/PUC-RJ). Integrou a FASE entre 1993 e 2015. Conselheira da FASE e oficial de programas no escritório do Brasil da Fundação Ford.