31/10/2016 13:03
Caroline Rodrigues¹
Entre os dias 17 e 20 de outubro ocorreu a Conferência das Organizações das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável, conhecida como Habitat III, em Quito, no Equador. Cidade com mais de 2 milhões de habitantes, localizada entre vulcões a 2800 metros de altitude, a capital equatoriana foi modificada para receber as 45 mil pessoas que participaram do evento. O centro histórico foi pintado e iluminado, ruas foram fechadas, novos trechos de ciclovia foram criados, praças e monumentos históricos receberam show de luzes durante as noites e se intensificou o controle urbano por meio de policiais, exército e bombeiros. O que pode parecer apenas um detalhe da preparação da cidade para o evento simboliza quão longe o Habitat III esteve do Habitat II (1996), que já estabelecia o Direito à Cidade como eixo central da produção de cidades mais democráticas.
Desde as primeiras conferências ocorridas em Vancouver (1976) e Istambul (1996), a ONU- Habitat delibera agendas verticalizadas para o desenvolvimento urbano dos países chamados emergentes. Em Quito, não foi diferente.
A Conferência foi organizada em mesas temáticas cuja interação do público era reduzidíssima ou inexistente. Apesar da organização do evento defender que o Habitat III teve mais participação social do que as conferências anteriores, entendemos que “participação social” não se resume ao número de pessoas presentes, mas ao conteúdo dos debates e às condições concretas para que moradores e moradoras das cidades possam incidir nas decisões da gestão urbana. Assim, o Habitat III reproduziu a lógica hierarquizada e excludente de pensar o “desenvolvimento urbano”, sem considerar o acúmulo do Habitat II e sem se comprometer com os direitos humanos.
O evento teve por objetivo definir uma Nova Agenda Urbana, documento com novos parâmetros relacionados à questão urbana no mundo. O documento, no entanto, segue pensando as cidades com princípios neoliberais. O uso de Parcerias Público Privadas (PPPs), o fortalecimento das leis e dos instrumentos de planejamento, a adoção de inovação tecnológica na gestão do espaço urbano e o estímulo à avaliação e ao monitoramento de políticas públicas foram apontadas como soluções para as questões urbanas. A Nova Agenda Urbana trata o mercado financeiro como um parceiro do Desenvolvimento Urbano Sustentável, como se a financeirização da moradia e dos serviços e infraestruturas urbanas fosse garantir qualidade e ampliação dos mesmos. Mas cabe salientar que essas propostas apostam em lógicas inversas, deixando espaço para o mercado financeiro se apropriar dos ativos urbanos. A Nova Agenda Urbana demonstra claramente que não está comprometida com o combate à desigualdade social, aos crimes ambientais, às injustiças sociais e a todos os tipos de violações de direitos que têm atingido os moradores das cidades, em especial os mais pobres.
Entretanto, instituições da sociedade civil organizada da América Latina e de outras regiões se posicionaram criticamente frente à Nova Agenda Urbana. No Brasil, foram levadas avaliações críticas sistematizadas em documentos como: a “Carta da Sociedade Civil Brasileira Sobre a Nova Agenda Urbana”, elaborada em maio de 2016; a “Carta de Caxias”, formulada em parceria com o poder público em novembro de 2015; e a “Carta Rio Frente ao Habitat III. Em Quito, alguns espaços de articulação e mobilização popular foram criados em paralelo ao evento oficial. Além da participação no Fórum da ONU, movimentos sociais e organizações, inclusive a FASE,a participaram do do Foro Social e Popular Frente ao Habitat III, que ocorreu na Universidade Central do Equador, e do Habitat III Alternativo, que ocorreu na sede da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO).
No Foro Social e Popular Frente ao Habitat III, participamos da roda de conversa “Lutas urbanas no Rio de Janeiro Olímpico: trocando experiências e tecendo perspectivas”. Junto com organizações parceiras², debatemos sobre a lógica de mercantilização da cidade do Rio de Janeiro, de privatização de serviços urbanos e de realização de megaeventos esportivos, buscando evidenciar as violações de direitos humanos na cidade e a criminalização dos movimentos sociais. Destacamos a intervenção de Lurdinha Antonioli, da Rede de Desenvolvimento Humano e Coordenadora do Projeto “Pra lá e Pra Cá”, que uniu mulheres e ativistas da América Latina para construção do documento “Declaração Rio – Contribuições Feministas para a Nova Agenda Urbana”. Segundo ela, a Nova Agenda Urbana não é inclusiva, pois não reconhece que as formas de exclusão e discriminação vivenciadas pelas mulheres, não garante transporte acessível e seguro para mobilidade delas, tampouco promove a igualdade de acesso e a participação de mulheres nas decisões sobre políticas públicas.
No Fórum da ONU, a FASE representou o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas junto com a Associação de Moradores da Vila Autódromo na roda de conversa “Regulação Social do Mercado e Alternativas ao Mercado”. Organizado pelo Grupo Internacional pela Promoção da Regulação do Mercado e Alternativas ao Mercado em parceria com a Plataforma Global pelo Direito à Cidade, este debate contou com representantes de organizações de defesa de direitos e movimentos sociais que atuam na Espanha, Índia, Alemanha e Londres. A partir de suas experiências de luta e resistência, cada participante apresentou uma visão crítica ao Habitat III.
Tendo em vista a crise mundial de 2008 e suas raízes nos mercados imobiliários e o total descompromisso da Nova Agenda Urbana para com a regulação do mercado de terras e ativos imobiliários, a mesa de debates buscou problematizar quais foram às consequências do processo de financeirização da terra, da cidade e dos espaços comuns vividos por diversos países nos últimos anos e como essa tendência se contrapôs aos compromissos conquistados nas Conferências da ONU do Rio (1992) e de Istambul (1996).
A partir da experiência de resistência ao modelo de cidade mercadoria no Rio de Janeiro, denunciamos ainda as violações de direitos humanos que foram realizadas em nome dos megaeventos esportivos, como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, por meio da Carta do Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, que ressalta que o Rio se tornou uma cidade ainda mais desigual, antidemocrática e excludente. “O ‘Espirito Olímpico’, que deveria simbolizar a união dos povos e a difusão dos valores éticos mais elevados da humanidade, foi capturado pela lógica de mercado e utilizado como instrumento de marketing para vender, desde produtos licenciados até a própria cidade-sede. Esse não é um caso único, mas está relacionado à lógica com que os megaeventos vêm sendo impostos às cidades, aliando interesses das grandes corporações e do capital financeiro internacional aos interesses privados locais”, constata o documento.
[1] Educadora do programa da FASE no Rio de Janeiro.
[2] A atividade foi organizada em parceria com a Associação de Moradores da Vila Autódramo, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur), o Sindicato dos Arquitetos do Rio de Janeiro (SARJ) , o Sindicato dos Engenheiros do Rio de Janeiro (Senge), a Federação Nacional dos Arquitetos (FNA), a Rede de Desenvolvimento Humano (Redh) e a Central de Movimentos Populares (CMP).