30/05/2018 16:04

Marcelo Calazans¹

Tem algo de profundamente errado em uma sociedade que depende de combustíveis como o diesel e a gasolina para realizar suas ocupações mais cotidianas: construir, locomover, alimentar, vestir, estudar, trabalhar.

Manchetes de jornais reescritas durante Semana Sem Petróleo no Espírito Santo. (Foto: Rosilene Miliotti/FASE)

A petrodependência é tão profunda quanto despercebida. Fundada no lucro de grandes corporações econômicas, no automatismo de subjetividades narcísicas e na aceleração maquínica da vida, a civilização petroleira impera sobre os territórios mentais. Deixa ainda um rastro de destruição nos territórios naturais, além de criar um megapassivo social, ambiental e climático para as gerações futuras. Desde a segunda fase da Revolução Industrial inglesa, a petrodependência não para de se expandir em um desenvolvimento contínuo e progressivo, rumo a um destino suicida.

Nas cidades, o desenvolvimento opera como que por milagres. O milagre do interruptor que, acionado, acende a lâmpada. O milagre da torneira que, girada, nos dispõe a água. O milagre do lixo no saco plástico que, levado pra longe, nos permite salubridade. O milagre do alimento, em oferta nas prateleiras. Claro, também os milagres parecem injustos, com muitas gradações entre o sobreconsumo dos ricos e o subconsumo dos mais pobres.

A crise do diesel desvela alguns desses milagres, deixando explícito os frágeis mecanismos que os sustentavam. E quando isso ocorre, quando os milagres se transformam em engodos engenhosos, algo em nós se torna mais ateu, cético e crítico ao deus desenvolvimento? Então, como assim? Tudo aquilo era falso e frágil? Todo aquele equilíbrio e solidez estavam apenas por um triz?

À esquerda, posto vazio. À direita, fila para abastecer após a chegada do combustível no RJ. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Durante uma semana, estarrecida e neurotizada, a sociedade se depara com sua total dependência do óleo diesel. E ainda com a subordinação do Estado, dos partidos e das principais lideranças políticas aos investidores no setor de transporte rodoviário. De Boulos a Bolsonaro, todos deram apoio e transformaram o lockout² dos empresários/caminhoneiros autônomos em “greve de caminhoneiros”, quando já se noticiava que 60% das grandes cargas rodoviárias estavam sob monopólio de meia dúzia de grandes empresas. No país desenhado desde Jucelino Kubitschek pelas indústrias da construção civil e automobilística, a petrodependência opera como vício: fragiliza as possibilidades alternativas e inviabiliza os demais meios e caminhos.

Alimentos, vestimentas, instrumentos, ferramentas e oxigênio para os hospitais não chegavam. Automóveis, rodoviárias, aeroportos, ônibus, todos parados. Em poucos dias os mercados já estavam esvaziados, os postos sem combustíveis, as escolas sem professores e alunos, os hospitais sem movimento, as feiras sem barracas. Mais alguns dias e não haveria água limpa em várias cidades, pois também os produtos químicos usados na purificação estavam presos em longos engarrafamentos nas rodovias. A neurose ecoada pela mídia corporativa e as redes sociais beirava a histeria coletiva: quem tinha condições comprava 30 kg de arroz, enchia o tanque do automóvel, logo nos primeiros dias da paralisação, mesmo que sem necessidade, simplesmente na lógica do “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Na cidade caótica, submissa e extorquida, os milagres se revelaram profanos.

E como é frágil o milagre do desenvolvimento. Nunca foi para todos; e não responde às perguntas fundamentais do “para quê?” e do “para onde?”. É um deus frenético, mas niilista, sem causas e sem destino. Não se sustenta fora de uma teologia do progresso das forças produtivas e de uma catequese da ciência como âmbito de sapientização do homo.

Movido a diesel, o desenvolvimento solta fumaça tóxica pelas descargas. Ninguém mais poderá confiar em suas promessas de emprego e modernidade, e ainda menos em seu caminho civilizatório. O deus desenvolvimento está morto! É preciso recriar outras formas, meios e desejos. Retraçar os percursos.

[1] Coordenador do programa da FASE no Espírito Santo e da Campanha Nem Um Poço a Mais, da qual a FASE é parte.

[2]  Meio de autodefesa do empregador, quando este se recursa a oferecer aos trabalhadores as ferramentas para o exercício das suas atividades, “fechando as portas” da empresa, impedindo que os trabalhadores possam entrar, independentemente da classe, função ou hierarquia. (Site: https://jus.com.br/)