07/06/2018 14:01
Se o papel das cidades enquanto instâncias de planejamento e tomada de decisão foi reconhecido pela Constituição de 1988, há um recente movimento de reconhecer que há questões que superam os limites dos municípios e demandam um esforço conjunto das prefeituras de diferentes cidades. Apesar disso, é previsto no estabelecimento de regiões metropolitanas, desde 1973, com o intuito de “integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas” dos municípios envolvidos, a fraca presença de estruturas políticas e administrativas ao nível metropolitano dificulta essa missão. Não votamos, por exemplo, em representantes metropolitanos, não há secretarias metropolitanas nem políticas públicas metropolitanas. Há somente a possibilidade de cooperação entre as diferentes prefeituras.
Com o objetivo de aprofundar a gestão metropolitana, foi aprovado em 2015 o Estatuto da Metrópole, que estabelece as diretrizes gerais para essa integração do planejamento e da execução das funções públicas dos diferentes municípios, além de instrumentos de governança interfederativa, como o Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI). Para institucionalizar a gestão integrada e coordenar a elaboração do PDUI, foi criada em 2014 no Rio de Janeiro a Câmara Metropolitana de Integração Governamental, formada pelo governador, os prefeitos e o Grupo Executivo de Gestão Metropolitana para coordenar as ações da Câmara em termos de elaboração de diagnósticos e de proposições de planejamento e desenvolvimento urbano.
A gestão integrada é especialmente necessária para os 21 municípios que compõe a região metropolitana do Rio. Isso porque, entre outros, não é possível pensar a despoluição da Baía de Guanabara, que banha sete municípios diferentes, em iniciativas isoladas; porque as chuvas e o traçado dos rios não respeitam limites territoriais no caso de enchentes; porque todo dia 2 milhões de pessoas saem de seus municípios em direção à capital para acessar trabalho, estudo e serviços, percorrendo distâncias num raio de 70km em relação ao Centro.
Plano Modelar a Metrópole
Assim, em 2015 o governo do Estado, por meio da Câmara Metropolitana e com financiamento do Banco Mundial, contratou um consórcio formado pelas empresas Quanta Consultoria e Jaime Lerner Arquitetos Associados para a elaboração do Modelar a Metrópole, ou Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O nome do Plano, com o verbo “Modelar” no infinitivo, traduz a orientação para o futuro que ele propõe no formato de possíveis cenários e instrumentos para orientar a tomada de decisão visando o desenvolvimento integrado da metrópole.
O processo de elaboração do Plano contou com a atuação de especialistas em seis eixos estruturantes (expansão econômica; patrimônio natural e cultural; mobilidade; habitação e equipamentos sociais; saneamento e meio ambiente; e reconfiguração espacial), além de incorporar insumos coletados a partir do diálogo com outros representantes do poder público e membros da sociedade civil, do setor privado, de universidades e de instâncias de classe.
Ao longo dos três anos de elaboração do Plano, foram mais de 80 encontros (dentre oficinas regionais e de segmento), 94 apresentações das prévias para órgãos setoriais e sociedade civil, 22 grupos de discussão temáticos em torno dos seis eixos, cerca de 1.800 especialistas ouvidos, 10 Pré-Conferências e uma Conferência Metropolitana e mais de 5.000 presenças nos eventos realizados. Dentre os objetivos estavam: abrir canais de participação direta, promover processos horizontais e aumentar a compreensão popular acerca dos temas tratados, de forma a reduzir desigualdades, assegurar a representatividade de todos os municípios no plano e contribuir para uma identidade metropolitana.
Essa participação está prevista no próprio texto do Estatuto da Metrópole, que prevê a “gestão democrática da cidade”, conforme definido pelo seu antecessor, o Estatuto da Cidade, que estabelece instrumentos de participação na gestão democrática da cidade, na gestão orçamentária participativa no âmbito municipal e na participação social em organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, como debates, audiências, consultas públicas e conferências sobre assuntos de interesse urbano. O artigo 12º do documento determina que o PDUI deve obedecer esses mecanismos, não só na sua elaboração, mas na sua aplicação, por meio do acompanhamento e controle de suas ações, de audiências públicas e debates com a participação de representantes da sociedade civil e da população de todos os municípios da metrópole e da comunicação dos documentos e informações produzidos.
A participação vem ocorrendo tanto na elaboração de diagnósticos, quanto na priorização de propostas para saná-los. Um exemplo dessa participação foi a adaptação da proposta contida no Plano de uso dos mananciais das sub-bacias dos rios Guapi-Macacu e Guapiaçu, que inicialmente previa a construção de uma barragem, projeto antigo do governo do Estado ao qual os moradores se opõem, pois, alagaria as propriedades de mais de 300 produtores rurais e poderia ter consequências sobre a dinâmica climática da região. A partir da mobilização da sociedade civil e de um encontro específico organizado com os movimentos sociais de Cachoeiras de Macacu, a barragem foi retirada do Plano.
I Conferência Metropolitana
Além de influenciar a elaboração do Plano, a sociedade civil poderá acompanhar a sua execução. Ao longo das dez pré-conferências metropolitanas, organizadas por todo o território da metrópole, foram priorizadas 36 das 131 ações previstas no plano e foram eleitos 150 delegados e 30 suplentes para participarem da I Conferência Metropolitana, no último sábado, dia 26, no Teatro Popular em Niterói. Desses delegados, 119 foram representantes da sociedade civil. Na Conferência, cada segmento votou nos seus representantes para integrar o Fórum de Acompanhamento do Plano, que espelha o Conselho Consultivo da Agência Metropolitana, instância de execução das políticas e da governança metropolitana, prevista no Projeto de Lei Complementar 10/2015, mas ainda não votado na Alerj (devido a conflitos de interesse, como a percepção de que limitará a autonomia dos municípios).
O Fórum visa monitorar o governo, para que implemente as políticas públicas de acordo com o plano. Da sociedade civil foram eleitos na Conferência três representantes de organizações não governamentais – Casa Fluminense, ISER e FASE -, três de órgão de classe – OAB, SINTSAMA, e STI/PDAENIT-, três da academia – Programa de Pós graduação em Sociologia e Direito da UFF, Programa de Pós-Graduação Em Urbanismo da UFRJ e Grupo de Pesquisa Natureza e Cidade da UFRRJ – e nove representantes de movimentos sociais (incluindo do projeto ReciclAção, do Morro dos Prazeres, do Movimento Pró-Saneamento na Baixada, da Federação de Associações de Moradores de Maricá, Guapimirim e Japeri, da Confederação Nacional das Associações de Moradores, e do Fórum de Transparência e Controle Social de Niterói, do Pró-São Gonçalo, do Gomeia Galpão Criativo da Baixada). Também serão indicados nove representantes do poder executivo do estado e dos municípios, do poder legislativo e do setor empresarial.
Cris dos Prazeres, uma das fundadoras do ReciclAção e integrante eleita do Fórum, colocou: “Fiquei surpresa com a Conferência. Além da situação política grave do país e do nosso estado, estamos num momento de descrença, desânimo. [Daí] ver toda aquela gente reunida, com diferentes segmentos da sociedade! Achei incrível o quanto essa ação agregou diferentes saberes, olhares. No dia da Conferência, ainda teve a paralisação dos ônibus por conta da greve dos caminhoneiros, [então] ter quase 80% das pessoas inscritas presentes foi maravilhoso”. E completou: “Acho espaços como esse extremamente construtivos para a elaboração de políticas públicas. São espaços de questionamento, sinergia, produção de saber. As pessoas precisam despertar uma consciência coletiva. No momento em que eu produzo conhecimento que melhora a vida do coletivo, melhora a minha também”.
Foram ainda priorizadas na Conferência, 12 das 36 propostas de ação anteriores, que incluem a regularização urbanística e fundiária associada a investimentos sociais em favelas e periferias, o desenvolvimento agroecológico sustentável do território periurbano da região, o estabelecimento de redes de tempo seco para suprir necessidades de esgotamento sanitário, a conservação e o controle da poluição das bacias dos mananciais, a implantação da coleta seletiva e a destinação dos resíduos sólidos para cooperativas de reciclagem, o fortalecimento de outras centralidades urbanas na metrópole, a implementação da Linha 3 do metrô entre São Gonçalo, Niterói e Itaboraí, a utilização da estrutura ferroviária e do transporte aquaviário na Baía de Guanabara para transporte em massa de passageiros e o fortalecimento da Agência Metropolitana e do planejamento integrado.
Cris rebate a crítica que alguns fizeram de que por se tratar de um plano metropolitano, não há muitas ações voltadas especificamente para favelas: “O cidadão da favela é o cidadão da cidade, do estado. Se a gente mantém a cidade partida, olhando sempre para duas cidades dentro de uma, a gente atropela o próprio discurso de participação. A gente quer ver a política pública acontecendo na casa desse sujeito e também no resto da cidade por onde ele passa”. Em relação ao investimento especificamente nas favelas, ela destaca: “O que a gente tem de serviço aqui não alcança a população mais pobre porque os dados, as informações que estão sendo produzidas, o censo, deixam mais da metade da população de favela invisível”.
A versão final do Plano será entregue, após a incorporação da priorização feita pela sociedade civil, em junho desse ano.
[1] Artigo publicado originalmente em Rio On Watch.