05/02/2022 20:11
Pedro Cláudio Cunca Bocayuva
A pandemia acentuou práticas de cooperação em rede como forma de enfrentamento à crise e ações de destruição dos sistemas e das políticas de assistência, proteção e garantia das políticas sociais. O quadro de catástrofe, agravado pela necropolítica negacionista por força do desmonte intencional dessas políticas, aprofundou dramaticamente essa situação. Um sinal de esperança em defesa da vida veio do acúmulo de ações sociais de relações horizontais de solidariedade que aproximaram as ações de atenção básica e emergencial, via o SUS com a força da sua base profissional, e as redes do associativismo popular, com seu modo de articulação de estratégias de resistência e de mobilização democrática nos territórios, em especial nas favelas.
A experimentação da resistência e a luta contra o colapso do sistema de saúde acabou gerando inúmeras tentativas de salvar vidas. Isto, em contextos de desigualdade e segregação de populações afetadas pela impossibilidade relativa de gerar práticas de isolamento social, impulsionou uma explosão de ações locais sobre o tripé “renda de emergência, redes de proteção social e montagem de dispositivos de interação” com diferentes esferas de atendimento.
A consciência do desafio sanitário levou a uma qualificação de ações de vigilância e educação sanitária, montagem de sistemas de informação e comunicação e distribuição de cestas básicas com “EPIs” (equipamento de proteção individual), considerando as dificuldades e a necessidade de prevenção, testagem, diagnóstico, acompanhamento clínico, além dos obstáculos para quarentena, atendimento , internação e tratamento. Tudo isso apoiando os profissionais das unidades de atendimento próximos.
A cartografia das ações dos grupos e redes sociais, desde múltiplas identidades e formas de ação presentes nos territórios mais afetados pelo impacto do binômio desigualdade-pandemia, projetou sobre a sociedade um conjunto de práticas com grande potencial de garantir direitos e salvar vidas. Em contraste/conflito com o desastre das ações de governo, nasceram formas de solidariedade e cooperação.
Existe um elo entre a ação local e o recorte de escalas maiores dos territórios que podem gerar protagonismo na relação com as tecnologias sociais, entendidas como a resultante da dimensão tripartite de um bloco social que une atores e forças sociais em forma de redes: dos grupos autônomos das favelas e periferias (em especial, mulheres e jovens negros); junto a segmentos da Universidade e dos centros de pesquisa e os quadros do Estado que assumiram as tarefas de ampliar o controle e a participação direta em projetos, programas e políticas públicas sociais.
O bloco social e tecnológico que nasce desta aliança se mostrou potencialmente capaz de fazer a diferença em algumas favelas do Rio de Janeiro, o que parece ser um fenômeno de caráter molecular nacional. As práticas em rede são fatores estratégicos na definição de como podemos avançar em matéria de proteção da vida e de vigilância sanitária.
Caminhos da resistência
Podemos indicar a hipótese de construir um caminho de resistência que dispute com o repertório negacionista a partir do associativismo, circuitos horizontais, organização em rede, tecnologias sociais e articulações de alianças? A articulação das Universidades e centros de pesquisa, com movimentos sociais e a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) abriu um importante meio para o enfrentamento da Covid-19 a partir do fortalecimento das práticas espaciais desenvolvidas por grupos, redes e movimentos das favelas. Neste quadro é importante destacar a orientação e a observação técnica derivada do diálogo com o sistema Fiocruz nas suas interfaces e interações com os territórios periféricos, favelas e populações mais marcadas pelas segregações sociais, de classe, étnicas e de gênero.
O plano proposto para a ação através de projetos financiados por um fundo público gerido desde a Fiocruz, tem um forte componente pedagógico para fortalecer as potencialidades da inteligência coletiva nos territórios. Mas como traduzir em práticas possíveis os desafios para o distanciamento social e o pacto pela vida nas favelas e periferias em um quadro tão adverso como o que descrevemos?
A hipótese é que precisamos avançar e reforçar os novos horizontes da vigilância sanitária e da necessidade de um diálogo dos e nos territórios desde a inversão de prioridades, a partir da centralidade do social. O desafio de pensar o sujeito corporificado, desde uma visão ampliada dos novos direitos reprodutivos, orientando a reflexão de uma demografia crítica que articule os esquemas de leitura transversal considerando os três “Ss” da sustentabilidade (segurança alimentar, saúde e saneamento) e os três “Cs”da solidariedade (conhecimento, cidadania e cooperação).
Pedro Cláudio Cunca Bocayuva é professor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NEPP-DH/UFRJ) e ex-diretor da FASE.