20/07/2018 16:59
Élida Galvão¹
Com cerca de 500 pessoas, vindas de centenas de comunidades existentes no Projeto de Assentamento (PAE) Lago grande, localizado na região do Baixo Amazonas, o Ministério Público Federal (MPF) realizou Audiência Pública para escutar a população sobre os problemas que envolvem a titulação de terras e as necessidades quanto às políticas públicas. A atividade foi realizada no dia 14.06, na comunidade Muruí, localizada no próprio PAE.
A audiência partiu da necessidade de resolução da questão fundiário do PAE, legalmente criado em 2005. Com 140 comunidades e mais de cinco mil famílias, o território tem uma situação bastante complexa a ser resolvida. Isso porque o Instituto de Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) ainda não conseguiu concluir o mapeamento territorial e a identificação, em dimensões e localização, dos imóveis ali existentes.
A não conclusão disso influencia na consolidação e legitimidade da área enquanto patrimônio público. Isso porque, diante da indefinição e falta de identificação de muitas áreas, o PAE fica vulnerável às investidas da mineração, madeireiros, posseiros e até mesmo imobiliárias. Considerado patrimônio público, com terras destinadas ao uso produtivo pela população tradicional, o INCRA necessita retornar e finalizar o mapeamento. Assim, a população poderá reivindicar o Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU), que garante maior proteção ao PAE frente à tentativa de exploração de bauxita no território.
Presidida pela procuradora da República, Luisa Astarita Sangoi, a ação contou com a parceria do Ministério Público do Estadual (MPE), representado por Ione Nakamura; promotora em Santarém; da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), com a participação de Julianna Malerba; Federação das Associações de Moradores e Comunidades do Assentamento da Gleba Lago Grande (FEAGLE), com Antônio Gavião, presidente da entidade; Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras de Santarém (STTR-STM), com a representação de Manoel Edivaldo, presidente. Também estiveram presentes Guilherme Feitosa, representante do INCRA, e o jovem Ednei Arapiuns, da etnia Surara, representante do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA).
Ameaças relatadas
Durante a audiência, a maioria das manifestações se mostrou contrária ao aliciamento da mineradora Aluminum Company of America (ALCOA) no território, fazendo denúncias sobre as investidas da empresa nas comunidades. Preocupado com a situação, José Ribeiro, morador da comunidade Lago Grande, no município de Juruti, onde a mineradora está instalada, fez questão de exemplificar os problemas ocasionados. “Moro bem na porta de entrada da mineradora, onde fazem o embarque dos minérios, e lá a comunidade está sendo afetada pela enganação da mineradora. (…) Eles pediram para fazer uma topografia para adquirir o direito de locomoção até as áreas das minas e hoje eles dizem que são proprietários daquelas terras e estão avançando os limites lhes são permitidos”, diz José, que é professor em sua comunidade.
Relatando que há anos vem tentando consolidar os direitos de sua comunidade com o apoio da FEAGLE, mas sem sucesso junto ao INCRA, Irene Figueira também expôs sua indignação em relação à conclusão do mapeamento no território. “A minha preocupação é esse torce e retorce do INCRA. Há 13 anos o órgão que cuida da terra não conhece os limites desse assentamentos? E no entanto nós estamos lá quase todos os dias questionando, buscando essa regulamentação. Nós estamos aqui há anos e anos, com nossos bisavós, avós. Nós já temos filhos e netos e continuamos a ser tratados como visitantes. Somos nós os donos dessa terra e só precisamos que o INCRA coloque isso no papel.”
De acordo com Irene muitas pessoas que compram terra não são nem de comunidades do PAE e vêm de outros lugares. “A pessoa que compra às vezes não é nem de perto. Quando tá dando problema é que a liderança da comunidade vai saber. Se o INCRA tivesse interesse em regulamentar, eles já tinham mostrado um caminho certo pra nós. Ele já tinha regulamentado. A culpa toda eu coloco no INCRA”, enfatizou Figueira.
Conhecendo a realidade
Durante alguns dias, uma equipe do MPF visitou dezenas de comunidades, juntamente com representantes de diversas entidades – entre elas a FASE, Fundo Dema, CITA, Rede de Notícias da Amazônia (RNA), Pastoral da Juventude, Artigo 19, Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), Comissão de Justiça e Paz da Diocese de Santarém, Grupo Mãe Terra –, ouvindo os moradores e moradoras acerca do assunto. A ausência do poder público e a falta de acesso às políticas públicas foi um dos assuntos fortemente relatados à procuradora. Muitos relatos denunciaram, inclusive, o aliciamento da ALCOA, por meio de sua fundação, com projetos sociais para investimentos estruturais em escolas, comprando instrumentos musicais, construindo parquinhos para o lazer das crianças como forma de propagandear os serviços prestados.
Outro ponto destacado entre os comunitários foi a falta de investimento na educação voltada para o campo, fazendo com que muito jovens migrem para as áreas urbanas sem conseguir empregos e fiquem à mercê da violência. “A escola que tem aqui é uma escola urbana, onde não se cria relação com o acesso à terra na lógica do assentamento”, disse um morador* da comunidade Curuai.
“Eles entrando aí, vidas vão ser extintas, principalmente de animais e a nossa. Por que nós vamos pra onde? Eu vou fazer o que na cidade? Tenho ensino médio. Eles vão me aceitar dentro da empresa com trabalho de quê? Somente um dos meus filhos concluiu o terceiro ano. Vamos viver de quê em uma cidade? Vamos ter emprego e moradia como? Isso é um grito de socorro por todas as famílias que moram aqui”, disse outro agricultor* da comunidade Bom Jardim.
Na luta pela titulação coletiva
Segundo Julianna Malerba, da FASE, com a missão de apoiar a agricultura familiar, há grande preocupação por parte da entidade a respeito da reforma agrária que o INCRA vem desenvolvendo nos últimos dois anos. Isso porque, segundo ela, a ideia de um lote individual não condiz sempre com a realidade do uso da terra na Amazônia. Pois, no caso dos assentamentos coletivos, como é o caso do PAE Lago Grande, tem um sentido ainda mais forte do título coletivo da terra, que foi uma demanda dos próprios movimentos socais da Amazônia.
“Aqui na área de várzea, as pessoas usam a terra, se movem na terra, muitas pessoas reservam parte de suas terras para poder garantir que as próximas gerações possam fazer o uso da terra. Existe uma demanda da forma de titulação para poder garantir que as demandas, existem os acordos comunitários que precisam ser fortalecidos”, considera.
Além disso, segundo Jualianna, a titulação coletiva garante maior proteção aos ocupantes históricos pelo fato de que as terras coletivas não podem ser vendidas para fora, somente entre as comunidades. De acordo com ela, os Contratos de Concessão de Uso (CCUs) são títulos provisórios e quando o INCRA começa a entregar em vários assentamentos coletivos, a lógica da reforma agrária acaba sendo desconstruída, se contar que que quando as famílias detêm o título individual, as chances de venderem sob a pressão de multinacionais, grileiros e madeireiras, por exemplo, é muito maior, possibilitando, inclusive, a desagregação delas.
“É legítimo que essas políticas cheguem até as famílias, mas não por meio deste instrumento, porque isso vai criando uma lógica de titulação individual que não corresponde à realidade das populações que vivem nesses assentamentos coletivos, onde a demanda de titulação coletiva foram delas mesmas”, argumenta.
Pedro Martins, assessor jurídico da Terra de Direitos destacou a existência do Decreto 60/40 de 2007, que assegura a política de desenvolvimento sustentável de povos e comunidades tradicionais. De acordo com ele, os povos do Lago Grande são reconhecidos como comunidades tradicionais e por isso deve ser garantido a eles direitos especiais, como o acesso à terra. “Vocês têm um direito especial e não podem abrir mão desse território. O reconhecimento da terra é coletivo. A entrada de uma mineradora ou madeireira não pode acontecer de qualquer forma, tem que passar por um processo de consulta das comunidades. Tem que ter o consentimento das comunidades para que ele aconteça”.
Conflitos históricos
Conforme estudos de Malerba, os problemas fundiários no PAE Lago Grande já vêm de longa data. Registrada em nome da União, após ação discriminatória encerrada na década de 1980, o território do PAE foi apurado com uma área de aproximadamente 231.000 hectares. Nesse processo 105 imóveis foram excluídos porque eram considerados como sendo de domínio privado.
Para iniciar a regularização fundiária, o INCRA primeiramente discrimina as terras devolutas e as que tenham sido incorporadas ao domínio privada, separando de outras terras públicas, registradas em nome da união. Ocorre que, quando o assentamento foi criado, em 2005, identificou-se uma área maior do que a arrecada pelo INCRA na década de 1980, com 250.344 hectares. Com as indefinições sobre a área, muitas áreas excluídas passaram a se enquadrar dentro do território do PAE, outras tiveram a legitimidade de terra questionada, ou seja, diversos problemas surgiram durante este processo.
Com isso, a luta dos movimentos sociais é para que haja a assinatura do CCDRU. Sem este instrumento o INCRA não consegue implementar políticas de reforma agrária. Dessa forma, o INCRA necessita concluir a demarcação territorial, avaliando atenciosamente os limites geográficos para a legitimar a política de reforma agrária no PAE.
Plano de Uso
Fortalecendo a coletividade dentro do território, a FEAGLE, juntamente com diversas entidades parceiras, produziu o Plano de Utilização das Comunidades do PAE Lago Grande. O Documento foi distribuído ao final da Assembleia para que a informação pudesse chegar ao maior número de famílias. O Plano de Utilização das Comunidades é um regulamento que onde estão descritas as regras sobre o uso dos recursos naturais, assim como os direitos e deveres de todo/as os/as moradores/as da comunidade.
[1] Comunicadora do Fundo Dema, do qual a FASE é parte. Baixe o Plano de Uso do PAE Lago Grande.
[2] Moradores não identificados para a preservação de suas integridades.