26/11/2021 13:41
Dedicada há muitos anos a pensar estratégias e ações para políticas públicas que enfrentem a fome no Brasil, Maria Emília Pacheco não esconde o desalento com o fim do Bolsa Família e com a chegada do confuso Auxílio Brasil. “Esta proposta faz parte da estratégia de desconstrução e apagamento da memória institucional de um governo autoritário em lugar de propor o aperfeiçoamento de propostas já existentes. Além de ser provisória, cuja duração é prevista até 2022, não atenderá a milhões de pessoas que recebiam o auxílio emergencial”, desabafa. Por isso, compreende que é mais do que a mudança de um programa para fins eleitoreiros. É reduzir a pó uma política de assistência social no momento em que as pessoas mais precisam. “O Auxílio Brasil não é um novo Bolsa Família. Ele extingue o Bolsa Família que se articulava com a rede de proteção social. A cesta de ‘auxílios’ e ‘bônus’ do Auxílio Brasil retoma proposta dos anos 1990”, dispara.
Na entrevista a seguir, Maria Emília ainda explica que “há menos autonomia no uso do dinheiro pelas famílias” nesse novo programa. “A execução das medidas está orientada por uma visão de vigilância das famílias e desvinculado da rede de proteção social. Deixou de existir a busca ativa do Programa Bolsa Família, desde o golpe de 2016, que procurava identificar o público de titulares de direitos, antecipando-se à formação das filas com milhares de famílias que hoje não sabem se serão atendidas”, detalha.
E, segundo ela, essa extinção do Bolsa Família traz consigo uma série de outras ações que impactam mecanismos de proteções sociais que vinham sendo desenvolvidos. No entanto, Maria Emília ainda vê como reagir e pensar uma série de ações para isso, especialmente tendo em vista as eleições do ano que vem. “O sistema de proteção social precisa articular-se com políticas que coloquem um freio na financeirização da terra e privatização da natureza. Por isso precisamos enfrentar mudanças estruturais”, exemplifica.
Essa relação entre combate à fome e repensar os usos da terra, para ela, significa, entre outras ações, “defender a Reforma Agrária e Direitos Territoriais”, pois “é uma exigência de hoje para o futuro”. “A transformação do sistema alimentar dominante requer a promoção da Agroecologia em combinação com as propostas antipatriarcais e antirracistas e a reconstrução do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e a Política Nacional de SAN. É urgente também frear a destruição ambiental, a contaminação do solo, da água e dos alimentos que a liberação de agrotóxicos e transgênicos tem produzido”, sintetiza.
Maria Emília Lisboa Pacheco é assessora da FASE, integrante dos Núcleos Executivos da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FNSSAN).
IHU – O que significa a criação da MP 1061, que institui o Auxílio Brasil e o Alimenta Brasil?
Maria Emília Lisboa Pacheco – Depois de idas e vindas com muitos anúncios especialmente sobre o Programa Auxílio Brasil, inclusive com programação de seu lançamento, posteriormente cancelado, e ainda sem a aprovação da MP 1.061 [Medida Provisória 1.061 de 9 de Agosto de 2012 – Institui o Programa Auxílio Brasil e o Programa Alimenta Brasil, e dá outras providências], teve início sua execução em novembro.
Em outubro, o presidente do Senado prorrogou por 60 dias o prazo de validade dessa Medida Provisória, que deverá ser aprovada até 7 de dezembro [estão sendo feitas propostas de mudanças pelo Relator na Câmara dos Deputados]. Neste ínterim, Bolsonaro sancionou a lei [Lei 14.236/2021 de 11 de novembro oriunda do PLN 26/2021] que abre ao Orçamento da Seguridade Social da União, em favor do Ministério da Cidadania, crédito especial no valor de R$ 9.363.481.257,00 para atender a 14.695.025 de famílias. E, também, a lei que altera o Plano Plurianual (PPA 2020-2023) para incluir o Programa 5035 – Promoção de Cidadania por meio do Auxílio Brasil e da articulação de Políticas Pública [Lei 14.235/2021 de 11 d novembro oriunda do PLN 23/2021]. Ainda nesse período foi editado o Decreto [Decreto nº 10.852/2021 de 8 de novembro] que regulamenta apenas o Programa Auxílio Brasil sem incluir o Alimenta Brasil.
Durante os meses de debate, manifestaram-se muitos protestos. Apresenta-se como um programa de governo e não como política de Estado, reforçando uma possível natureza clientelista e eleitoreira de um programa de transferência de renda, diz o Conselho Federal de Serviço Social. Reforçaram a crítica dizendo: “o texto do Auxílio Brasil propõe uma espécie de ‘bônus’ para a pessoa beneficiária que conseguir emprego, reforçando uma visão conservadora e preconceituosa de que programas de transferência de renda estimulam o ócio, e, também, de que é responsabilidade individual do sujeito a condição de pobreza ou de buscar postos de trabalho, isentando o Estado de criar políticas de proteção social e de geração de trabalho, emprego e renda”.
Caráter autoritário
A proposta expressa o caráter autoritário, pois não foi submetida a consultas como denuncia o Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social – Congemas. Assim também se manifesta o Fórum Nacional de Secretários de Assistência Social em Nota Pública dizendo, depois de insistirem no diálogo sobre o aprimoramento e aumento do acesso ao Bolsa Família, que “no entanto, o governo federal segue anunciando modificações estruturais e de gestão sem discussão quanto aos possíveis impactos das alterações, desconsiderando o grave cenário de crise social.”. Questionam a criação de auxílios que reforçam uma lógica de desempenho e “esforço” individual.
A Coalizão Direitos Valem Mais também protestou afirmando que “é mais um programa do Governo Federal que no seu desenho rompe com o pacto federativo cooperativo, com a descentralização político administrativa; com integralidade das políticas sociais; o fortalecimento dos sistemas públicos, especialmente as políticas territorializadas, essenciais no sistema de condicionalidade e na execução das ações que visam atenção e proteção social, demandadas principalmente no sistema de garantia de direitos ou seja a saúde, educação e assistência social”.
Não ao Auxílio Brasil
Em Carta Aberta proposta por nós do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), juntamente com a Comissão de Presidentes de Conselhos Estaduais de Segurança Alimentar e Nutricional (CPCE), e assinada por cerca de 200 movimentos e organizações sociais, posicionamo-nos pela rejeição da MP 1.061.
No documento, dizemos não ao Auxílio Brasil que representa a extinção do Programa Bolsa Família (PBF), ignorando-se o acúmulo de experiência e aprendizagem ao longo de 18 anos de existência desse programa que alcançou reconhecimento internacional e teve efeitos positivos, junto com outras medidas para que o país saísse do Mapa da Fome. Esta proposta faz parte da estratégia de desconstrução e apagamento da memória institucional de um governo autoritário em lugar de propor o aperfeiçoamento de propostas já existentes. Além de ser provisória, cuja duração é prevista até 2022, não atenderá a milhões de pessoas que recebiam o auxílio emergencial. Em nosso posicionamento, consideramos também que a proposta da “cesta” de auxílios e bônus impacta os que já se encontram em situação de extrema vulnerabilidade social. Vejamos alguns exemplos.
O Auxílio de Inclusão Produtiva Urbana, pago em parcelas mensais no valor de R$ 200,00 (duzentos reais) (art.79 do Decreto), será concedido às famílias que comprovarem vínculo de emprego formal de um dos seus integrantes. Um descalabro no cenário de desemprego que alcança mais de 14 milhões de pessoas.
Criança Cidadã
O auxílio Criança Cidadã, voltado para o pagamento de mensalidades em creches privadas, não necessariamente conveniadas com o poder público, mascara o impacto da política de austeridade que reduz o investimento público em educação. Ao condicionar o acesso à “ampliação de renda identificada mediante atividade remunerada ou comprovação de vínculo em emprego formal” (art. 62 do Decreto), incide novamente na negação da realidade na qual sabidamente as mulheres são as mais afetadas, fato que se agrava no caso de mulheres negras e pardas.
Inclusão Produtiva Rural
O Auxílio de Inclusão Produtiva Rural concedido para incentivo à produção, doação e consumo de alimentos estabelece que no primeiro ano, após um período de carência de três meses (MP art.14, parágrafo 1º), a manutenção do pagamento do auxílio em parcelas mensais de R$ 200,00 terá como condição a doação de alimentos estimada em 10% para famílias em situação de vulnerabilidade social atendidas pela rede educacional e socioassistencial (Decreto art.76 parágrafo 4º). Esta exigência desconsidera tanto as especificidades regionais quanto a produção para a subsistência e questões que interferem nas condições de produção – acesso a água, estiagem, além de não ter cobertura de seguro, afetando sobretudo as famílias mais vulneráveis à fome. É uma proposta que vai na contramão da iniciativa incluída no Programa Brasil Sem Miséria, no ano 2011, com 4 parcelas de R$ 600,00, não reembolsáveis e com a produção destinada à compra pública pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
IHU – Que mensagem essa onda liberal na economia e ultraconservadora na política e nos costumes tem passado no que diz respeito ao financiamento de proteção e assistência social?
Maria Emília Lisboa Pacheco – Na sociedade neoliberal e autoritária que vivemos, assistimos a um questionamento prático dos direitos ligados à cidadania, incluindo o direito à proteção social constitutivo da democracia. Como nos dizem Dardot e Laval, “a referência da ação pública não é mais o sujeito de direitos, mas um ator autoempreendedor”. E esta “reforma gerencial atenta diretamente contra a lógica democrática da cidadania social, aumenta as desigualdades, a exclusão que gera um número crescente de subcidadãos e não cidadãos”.
Essa é a proposta contida no Auxílio Brasil. A cesta de “auxílios” e “bônus”, é vinculada ao mérito e ao esforço individual apresentada com perspectiva emancipatória. Uma inversão completa do sentido do conceito de emancipação que nos remete à afirmação da cidadania e ao papel do Estado de garantir direitos.
Há uma seção sobre inserção financeira das famílias beneficiárias com propostas de educação financeira, consignação e microcréditos: “os beneficiários de programas federais de assistência social ou de transferência de renda poderão autorizar a União a proceder aos descontos em seu benefício, de forma irrevogável e irretratável, em favor de instituição financeira que opere modalidade de microcrédito, para fins de amortização de valores referentes ao pagamento mensal de empréstimos e financiamentos, até o limite de trinta por cento do valor do benefício”. Falar de consignação e incentivo ao microcrédito num contexto de desemprego recorde no país, precarização das condições de trabalho e destituição dos direitos trabalhistas, é desresponsabilizar o estado na criação de empregos formais para a população, além de produzir riscos de endividamento da classe trabalhadora.
Esta medida favorece as instituições financeiras e incentiva o endividamento. Em Nota Pública, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor faz severo alerta sobre os abusos reiterados de instituições financeiras com práticas nas quais os consumidores brasileiros em estado de extrema pobreza são assediados pelo sistema financeiro, por meio de estratégias antiéticas, potencializadas pelo fácil acesso dos correspondentes bancários aos dados pessoais dos beneficiários.
IHU – De que forma, no atual contexto, é possível barrar o desmonte de política de proteção e assistência social?
Maria Emília Lisboa Pacheco – É preciso restaurar a democracia contra o autoritarismo; restabelecer os mecanismos de participação e controle social com liberdade de manifestação das organizações sociais nos espaços de concertação, a exemplo da atuação, em anos passados, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, extinto pelo atual governo. É necessário denunciar o processo de desconstitucionalização e violação de direitos; reverter as medidas de ajuste estrutural, e manter a mobilização social pela Revogação EC 95/2016 do Novo Regime Fiscal, conhecida como “teto dos gastos”, considerada inclusive pelas Nações Unidas como uma medida das mais perversas.
Acrescento ainda que é fundamental refazer a trajetória interrompida da relação entre o Sistema Nacional de Segurança Alimentar Nutricional (SISAN) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e o Sistema Único de Saúde (SUS) e suas políticas e programas.
IHU – Como a senhora avalia esses primeiros dias de operação do Auxílio Brasil?
Maria Emília Lisboa Pacheco – O Programa Bolsa Família estava atendendo 14,6 milhões de famílias, sendo que cerca de 2 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza encontravam-se na fila de espera para acessar o programa. São famílias que, mesmo cumprindo os critérios do CadÚnico, ainda não haviam conseguido acessar esse programa agora extinto, em razão da escolha do atual governo em não aumentar a cobertura de atendimento. A meta estabelecida na lei a que me referi retoma este público. Mas estima-se que ao menos 25 milhões de trabalhadores que recebiam o auxílio emergencial ficarão sem renda e não serão incorporadas ao Auxílio Brasil.
O Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social – Congemas, já havia se manifestado sobre a fila de espera do Programa Bolsa Família. São aproximadamente 2.164.557 milhões de famílias aguardando o benefício. E defende que “ampliar a proteção da população mais vulnerável é implementar políticas de trabalho decente”. No entanto, outras medidas preocupantes estão sendo anunciadas ou decididas, dentre elas o Serviço Social Voluntário, que preconiza a contratação de jovens de 16 a 29 anos ou trabalhadores com mais de 50 anos, sem a proteção ao trabalho e de forma precarizada, como a Medida Provisória nº 1045/21, que, ao instituir o Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, estabelece uma modalidade de trabalho altamente precarizada.
A origem dos recursos com a proposta da mudança de lei sobre os precatórios também suscita protestos. A tentativa de desmontar a sistemática constitucional de pagamento revela contornos antidemocráticos e representa, em última análise, a tentativa de institucionalização do calote para fins eleitoreiros, como diz a nota da Ordem dos Advogados (OAB).
IHU – Quais são as diferenças cruciais entre Bolsa Família e a Auxílio Brasil? Em que medida essas diferenças podem repercutir no agravamento da questão da fome?
Maria Emília Lisboa Pacheco – O Auxílio Brasil não é um novo Bolsa Família. Ele extingue o Bolsa Família que se articulava com a rede de proteção social. A cesta de “auxílios” e “bônus” do Auxílio Brasil retoma proposta dos anos 1990. Há menos autonomia no uso do dinheiro pelas famílias. A execução das medidas está orientada por uma visão de vigilância das famílias e desvinculado da rede de proteção social. Deixou de existir a busca ativa do Programa Bolsa Família, desde o golpe de 2016, que procurava identificar o público de titulares de direitos, antecipando-se à formação das filas com milhares de famílias que hoje não sabem se serão atendidas.
A valorização dos mecanismos do Sistema de Assistência Social, por exemplo, com a ação humanizada nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), no acompanhamento familiar importante para a gestão social, não é mencionada. Foi interrompida uma trajetória de construção de gestão integrada do SUAS, CadÚnico e Programa Bolsa Família com a perspectiva de consolidação de um modelo brasileiro de proteção social a partir das conquistas da Constituição. É preciso dizer também que o Auxílio Brasil se dá em contexto de desconstrução da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
Legados do Bolsa Família
As principais propostas para superar os limites do Bolsa Família eram no sentido de aumentar o valor das transferências para as famílias e do orçamento destinado ao programa.
E, ainda assim, na avaliação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) sobre o Bolsa Família5, em 2017, mais de 3,4 milhões de pessoas deixaram de viver em pobreza extrema. Vários estudos também mostraram a menor ocorrência de baixo peso ao nascer entre crianças de famílias beneficiadas e redução da mortalidade infantil. As mulheres, mesmo se queixando do baixo valor do benefício e explicitando seu desejo pelo trabalho regular, registraram mudança em suas vidas, iniciando a construção de caminhos para sua autonomia na sociedade patriarcal.
IHU – No que consiste o Alimenta Brasil e como se distingue do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar?
Maria Emília Lisboa Pacheco – Nem se trata de buscar distinguir pois é a extinção de um Programa que vinha produzindo bons resultados e a substituição por outro que não se sabe o que será. O Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar – PAA foi instituído pelo art. 19 da Lei 10.696 de julho de 2003 no âmbito do Programa Fome Zero. Foi alterada pela Lei 12. 512 de outubro de 2011. Ambas as leis foram revogadas pela MP 1.061. Mas, nos termos dessa MP, estranhamente o Capítulo II, que versa sobre o Alimenta Brasil, copia os objetivos do PAA. Mas uma vez extinto, é desmontada toda a regulamentação existente.
Previsto um “Grupo Gestor do Alimenta Brasil”, não se sabe sobre sua composição e condições de funcionamento. Os riscos que pairam sobre a existência e papel da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), órgão fundamental nos anos passados na execução do PAA, preocupa mais ainda neste limbo de regulamentação. Uma desconstrução brutal depois de anos de resultados positivos desse programa para geração de renda para o campesinato, agricultura familiar e povos e comunidades tradicionais, movimentação de economias locais, valorização de nossas culturas alimentares, promoção da agroecologia e incentivo à participação de organizações das mulheres.
No início da pandemia de Covid-19, em abril de 2020, com a mobilização iniciada pela Articulação Nacional de Agroecologia, que incluiu centenas de organizações e movimentos sociais, conseguimos a liberação de verba complementar da ordem de R$ 500 milhões sem atingir nem de longe o montante reivindicado de 1 bilhão conforme foi a execução em 2012. Em 2021 a verba destinada ao programa caiu para cerca de R$ 100 milhões, contribuindo para o agravamento da insegurança alimentar das populações do campo.
Utilizando o valor executado em 2021, corrigido pela inflação do período (2012-2021), o piso mínimo para um programa com as características do PAA significaria destinar R$ 1,41 bilhão em 2022. Mas não há qualquer indicação de recurso para o próximo ano.
IHU – A fome já é uma realidade no Brasil urbano, e tem sido reproduzido diariamente pelos jornais, mas qual é a situação da fome no Brasil rural?
Maria Emília Lisboa Pacheco – É grave. Os piores índices, de acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil, estão no campo. Falei um pouco sobre este contexto na entrevista em abril deste ano para IHU. A decisão do governo de vetar a lei com origem nos PLs 735 e 883 com proposta de auxílio emergencial para a agricultura familiar em plena pandemia aprovados no Congresso Nacional revelam a política de produção da fome e negação de direitos.
IHU – A volta do Brasil ao mapa da fome representa um dos mais dramáticos retrocessos que temos vivido. Quais as consequências desse retrocesso no médio e longos prazos? Como e em quanto tempo a senhora imagina que será possível uma reversão desse quadro de empobrecimento, aumento da miséria e da fome no país?
Maria Emília Lisboa Pacheco – A indignidade do flagelo da fome tem índices alarmantes, nesses 75 anos do célebre e importante livro sobre a Geografia da Fome, de Josué de Castro. A fome precisa ser amplamente debatida e envolver a sociedade em grandes mobilizações. Mas estimar este tempo histórico é complexo. Temos muitas urgências e emergências. Precisamos reconstruir os caminhos da democracia com a responsabilização do Estado com as determinações constitucionais em defesa da vida. Frear o processo de destruição das políticas públicas.
O sistema de proteção social precisa articular-se com políticas que coloquem um freio na financeirização da terra e privatização da natureza. Por isso precisamos enfrentar mudanças estruturais. A garantia da terra e dos direitos territoriais deve ser entendida como um imperativo para barrar o processo de expropriação e destruição dos modos de vida das populações do campo, da floresta e das águas. A arrecadação de milhares e milhares de hectares de terras públicas para o mercado baseia-se hoje em normativas que favorecem a grilagem de terras. É preciso um basta.
Defender a Reforma Agrária e Direitos Territoriais é uma exigência de hoje para o futuro. A transformação do sistema alimentar dominante requer a promoção da Agroecologia em combinação com as propostas antipatriarcais e antirracistas e a reconstrução do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e a Política Nacional de SAN. É urgente também frear a destruição ambiental, a contaminação do solo, da água e dos alimentos que a liberação de agrotóxicos e transgênicos tem produzido.
Precisamos, ainda, de ampla adesão da sociedade para dizer não às substâncias químicas que já foram abolidas em seus países de origem, assim como para defender os direitos do campesinato, dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Nas cidades, os Planos Diretores devem assegurar mecanismos democráticos de gestão controlando a especulação imobiliária.
IHU – 2022 é ano eleitoral. Como a pauta de assistência social e combate à fome devem ser tratadas?
Maria Emília Lisboa Pacheco – Na Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, definimos uma Agenda Prioritária por um país livre da fome, por direitos, soberania e segurança alimentar e nutricional que pode favorecer este debate. Esta agenda inclui, dentre outras, as seguintes propostas:
a) formar uma frente nacional em defesa dos programas de compras públicas (PAA e PNAE) da agricultura familiar e camponesa, de povos indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais;
b) fortalecer as articulações dos povos em defesa do Direito à Terra, Territórios e suas Territorialidades e da agrobiodiversidade;
c) assegurar as políticas de acesso à água potável e de qualidade, e o saneamento básico;
d) fortalecer os movimentos da cultura alimentar, como forma de luta e preservação do patrimônio alimentar;
e) priorizar a agroecologia para a efetiva construção de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis. Uma Política Nacional de Abastecimento Alimentar deve ser incluída também nessa pauta com a garantia de estoque reguladores de alimentos, compras públicas da agricultura familiar e camponesa, equipamentos de alimentação públicos nas cidades, como restaurantes populares e cozinhas comunitárias, e apoio às iniciativas das organizações sociais de agricultura urbana.
Orçamento
A Coalizão Direitos Valem Mais nos oferece também boa proposta para debate, chamando atenção para a questão orçamentária. Estima um piso emergencial para o combate à fome, abastecimento alimentar com o montante de R$ 12,5 bilhões, que combina os recursos de quatro políticas públicas de caráter nacional:
a) Programa de Aquisição de Alimentos (Programa Alimenta Brasil), com R$ 1,4 bilhão;
b) a ampliação do acesso à água para abastecimento humano e produção de alimentos com cisternas, com R$ 2,8 bilhões;
c) Programa Nacional de Alimentação Escolar, com R$ 7,9 bilhões;
d) Programa Restaurantes Populares, com R$ 481,53 milhões.
Alimentação escolar
Um dos programas estratégicos para o combate a fome é o Programa Nacional de Alimentação Escolar. Entre 2020 e 2021, porém, a execução financeira dos recursos diminuiu em 17,7% em termos reais, e a proposta é, para 2022, uma nova redução de 8,5% nos recursos para o programa. Além disso, os valores per capita do PNAE são baixos para contribuir mais efetivamente com suas finalidades. De modo geral, não foram atualizados para recompor as perdas da inflação entre 2010 e 2020.
O Observatório desse programa tem defendido a proposta de atualização do valor per capita: na creche, de R$ 1,07 para R$ 1,89; na pré-escola, de R$ 0,53 para R$ 0,94; e no ensino fundamental e médio, de R$ 0,36 para R$ 0,74.
Renda Básica
Precisamos avançar no debate sobre a proposta de impostos progressivos sobre a riqueza (inclusive financeira), sobre a herança e sobre a renda e sobre a Renda Básica de Cidadania – incondicional, universal, regular e permanente.
IHU – O que podemos aprender com nossa própria história de combate à miséria e à fome? A redução das desigualdades no Brasil de hoje passa, essencialmente, pelo quê?
Maria Emília Lisboa Pacheco – É fundamental recolocar no centro da agenda o Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequada (DHANA). Reconstruir políticas públicas e programas desconstruídos. Mas precisamos também de uma inserção no plano internacional. Tornar conhecida, por exemplo, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e outras pessoas que trabalham nas áreas rurais, adotada pela Assembleia Geral em 17 de dezembro de 2018, com a abstenção do Brasil. Manter nossa articulação com organizações na América Latina que se posicionam contra a captura corporativa dos sistemas alimentares.
É urgente, no plano nacional, questionar o programa orçamentário de Segurança Alimentar e Nutricional, que abrange uma série de políticas públicas para a área, que sofreu uma redução em seus gastos de 86% entre 2014 e 2021, passando de R$ 3,9 bilhões para R$ 547,2 milhões de reais – valores constantes corrigidos pelo IPCA de setembro de 2021. Este é um triste exemplo de nossa história recente: redução drástica de orçamentos; violação de direitos, desconstrução de políticas.
[1] Entrevista publicada originalmente no site do Instituto Humanitas Unisinos.