26/09/2017 17:35

A série “FASE Entrevista”¹, uma iniciativa do programa da FASE na Amazônia, com o apoio da Fundação Heinrich Böll (HBS)², conversou com Tarcísio Feitosa Silva, mestre em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal do Pará (UFPA), sobre o Cadastro Ambiental Rural (CAR), uma ferramenta destinada a apoiar a gestão com o monitoramento de imóveis rurais, mas que no Brasil se converte, na prática, como uma forma para legalizar a grilagem de terras. O CAR vem sendo usado como mecanismo para garantir os interesses dos que expropriam as populações tradicionais da Amazônia de suas terras. 

(Foto: Hebert Rondon/ Ibama)

FASE Entrevista – O que vem a ser o CAR?

Tarcísio Feitosa da Silva – O CAR é uma das ferramentas na gestão e monitoramento de territórios e unidades de produção rural (imóveis rurais), e pode contribuir com a proteção das Terras Indígenas, Unidades de Conservação, Territórios Quilombolas e florestas públicas não destinadas.

Não colocamos em xeque a importância da ferramenta, mas ela deve servir ao seu propósito máximo que é garantir o planejamento territorial com as retaguardas ambientais de proteção aos ecossistemas e sua biodiversidade, de uso racional da terra e a recuperação de áreas degradadas quando for o caso.

A base jurídica do CAR tem um foco principal no controle do desmatamento, mas também como subsídio de informações ao Sistema Nacional de Informação sobre Meio Ambiente (Sinima). A lei tornou obrigatória a criação de um registro público eletrônico de âmbito nacional, no qual deverão ser inseridas informações georreferenciadas dos imóveis rurais, e promovida a integração de informações ambientais das propriedades e posses rurais.

FASE – O CAR garante a posse da terra?

Tarcísio – Não. O CAR não foi criado com este objetivo. Este foi o grande problema que contaminou negativamente o CAR, principalmente na Amazônia. O discurso do reconhecimento da posse e regularização da propriedade rural foi feito como uma forma de convencer principalmente grandes e médios detentores de terras (os produtores rurais) a aderirem ao CAR.

Tal discurso de convencimento nasce no que chamamos hoje de “República de Paragominas”, onde a suposta política do desenvolvimento verde teve sua raiz no Pará, seguiu principalmente à região da Ilha do Marajó, onde ganhou aceitação com essa possibilidade de regularização de grandes latifúndios por três motivos. O primeiro pelo desespero de regularizar áreas acima do limite constitucional. O segundo, pelo surgimento de territórios coletivos (principalmente Territórios Quilombolas). E o terceiro pela aproximação do poder presente na Capital das Mangueiras (Belém).

As resistências ao CAR estão localizadas exatamente onde o poder da capital paraense é mais distante e tem pouca presença e há intermitentemente operações de controle e fiscalização por parte do órgão federal de proteção ambiental. Por outro lado, essa ferramenta se tornou um câncer maligno na Amazônia, induzindo à violência pela disputa da terra. E, o que é pior, o CAR foi o grande indutor do desmatamento nos últimos anos.

A frase “Faz o CAR que o governo vai garantir a tua terra” foi e é usada em vários lugares. Um exemplo claro é o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Liberdade no município de Portel. Lá há uma área de manejo florestal sob contrato de transição junto ao Serviço Florestal Brasileiro (SFB) que hoje se tornou basicamente um grande pasto em cima de um CAR. Nem o Serviço Florestal, nem o Incra (Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária) e nem a antiga empresa que explorou os recursos florestais nessa área impediram o avanço do desmatamento em floresta que pela legislação brasileira deveria guardar o pousio³ por um ciclo de 30 anos.

Pôr-do-sol no rio Tapajós, em Santarém. (Foto: Carlos Sodré / Arquivo Ag. Pará)

FASE – De quem é a responsabilidade pela elaboração do CAR de Projeto de Assentamento (PA), PDS, Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) e Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), áreas quilombolas e tradicionais? As populações precisam pagar por esse serviço?

Tarcísio – Os territórios quilombolas são áreas protegidas, de uso coletivo por populações humanas. Mesmo sendo matriculadas como propriedade em nome de uma associação, tais áreas deveriam ser inseridas automaticamente no sistema do CAR, no Cadastro Nacional de Floresta, em qualquer base oficial de dados geográficos, da mesma forma que são inseridas as Terras Indígenas e Unidades de Conservação, por um único motivo: terras quilombolas são consideradas áreas protegidas similares às unidades de conservação de uso sustentável.

O problema é que a base de informações cartográficas consolidadas dos Territórios Quilombolas é inexistente hoje no Brasil. E quando há alguma informação, elas não estão disponíveis para acesso rápido. Quando estão disponíveis, há erros cartográficos absurdos e existe uma série de sobreposições de CAR sobre tais territórios. Um exemplo disso é ocorre no Território Quilombola de Gurupá, em Cachoeira do Arari, na Ilha do Marajó. Pelo menos 80% do território onde há florestas nativas de açaí são dominadas por fazendeiros de famílias ricas da capital.

FASE – Que aspectos positivos e negativos você identifica na implantação do CAR?

Tarcísio – O aspecto positivo é que se o CAR for levado a sério e tiver uma base de informações importante para o planejamento do território, é possível preservar a biodiversidade, garantir a recuperação de áreas degradadas e diminuir os impactos de abertura de estradas vicinais. Há uma série de atividades que podem ser desenvolvidas com a base CAR. O negativo é que o CAR foi contaminado na Amazônia, passou a ser uma ferramenta de grilagem das terras públicas e indutora de conflitos agrário e fundiário.

Erroneamente, o CAR vem se tornando este instrumento de legalização da grilagem na Amazônia. Há processos judiciais em que a prova material de ocupação da terra por um fazendeiro é a apresentação do CAR. Está aí a diferença. O CAR é um cadastro, não é um registro ou um documento emitido pelo órgão ambiental. O órgão ambiental apenas recepciona as informações e as coloca em uma base de dados.

FASE – Muitas organizações da sociedade civil da Amazônia estão engajadas em processos de elaboração de CAR. Quais os riscos e possibilidades a partir desse engajamento?

Tarcísio – Temos um problema sério. Recentemente ouvi uma frase que pode explicar: “A ambientalização do movimento agrário é interessante, mas a agrarização do movimento ambiental pode ser complicada”. É exatamente isso que estamos assistindo na Amazônia. O movimento ambiental, que não tem aprofundamento nas complexidades das questões agrárias, tornou o CAR o único instrumento de trabalho e vai mais além: passa a propor ao órgão de gestão de terras utilizar este cadastro como base para se iniciar a regularização fundiária de um imóvel rural. Isso é um risco grande, pois embaixo deste CAR em que só podemos ver de imagens de satélite, há ribeirinhos, quilombolas, indígenas, castanheiros, seringueiros e muitos outros povos que não aparecem nas imagens. A Amazônia não é um vazio. Muito pelo contrário. Em cada palmo dessa terra há alguém utilizando a floresta.

FASE – O CAR pode se tornar um instrumento para fortalecer as lutas em defesa dos territórios?

Tarcísio – Este é o papel fundamental do CAR. Ser um instrumento de gestão e de fortalecimento do território, observando, é claro, a conservação da biodiversidade e a produção de alimentos saudáveis, mas também identificar os territórios invisíveis que estão na Amazônia. O CAR deve se comunicar com outras bases, por exemplo: a Cartografia Social, com a qual pesquisadores se lançam com as comunidades para identificar seus territórios.

[1] A série FASE Entrevista tem como objetivo divulgar ideias, posicionamentos e/ou avaliações de lideranças de movimentos, pesquisadores e pesquisadoras e organizações sociais acerca de temas relevantes para o conhecimento das dinâmicas socioterritoriais em andamento na Amazônia. Acesse o documento e leia a entrevista completa.

[2] Os pontos de vista dos entrevistados não refletem necessariamente o posicionamento institucional da FASE e dos seus apoiadores.

[3] Período em que as terras são deixadas sem semeadura, para repousarem.