12/09/2017 10:38
Rosilene Miliotti¹
Em audiência pública realizada no dia 11 de setembro, Dia nacional do Cerrado, no município de Bom Jesus, no Piauí (PI), organizações e movimentos sociais nacionais e internacionais, além de trabalhadores e trabalhadoras rurais, deram visibilidade às denúncias constatadas durante a Caravana Matopiba, que percorreu seis comunidades diretamente impactadas por conflitos agrários e por outras violações de direitos.
Durante quatro dias, as comunidades de Sete Lagoas, Melancias, Brejo das Meninas, Santa Fé, Santa Filomena e Baixão Fechado receberam a visitada da Caravana, mas os moradores de povoados vizinhos também participaram das reuniões levando suas dúvidas e denúncias. Isolete Wichinieski, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Campanha em Defesa do Cerrado², abriu o debate chamando atenção para as comunidades do Cerrado, que têm um olhar de cuidado com o espaço de vivência. “O Cerrado é olhado por muitos como um espaço vazio onde avança o capital. Esses povos existem porque os bens comuns também existem. Cerrado é diverso em biodiversidade e povos, e se não for assim veremos a morte do Cerrado em breve”, alertou.
Depois de 2012, empresas têm avançado na região de forma cada vez mais feroz, principalmente na disputa de terras. “Quando dizemos que a comunidade entra em conflito é porque ela está resistindo ao avanço do capital. Os impactos são desde a questão ambiental até a violência contra as pessoas que moram nesses espaços”, diz Isolete.
Para Flavio Valente, assessor da FIAN Internacional, todas as informações levantadas durante a Caravana necessitam ser investigadas e aprofundadas. “Há 11 anos moro na Alemanha e hoje sinto um misto de honra e tristeza. Tristeza de ver o aprofundamento que o Estado tem feito com o povo brasileiro. Onde está o Legislativo e o Executivo? Duvido que apareçam na audiência pública em Teresina, porque eles não têm coragem de aparecer para prestar contas à população. É um acinte à soberania popular”, criticou.
“Todos os direitos possíveis estão sendo violados nas áreas que visitamos. Nas comunidades, temos a sensação de que eles não têm o direito de se chamar de cidadãos, porque nem isso eles têm direito de ser”, lamenta Flavio. Quando iniciou o trabalho na região, o procurador agrário, Dr. Francisco Santiago, imaginava ser um desafio grande, mas nem tanto. “Aqui é mais fácil chegar o poder econômico tirando as pessoas das suas casas do que o poder público garantindo os direitos. Aqui temos a ‘BR da morte’, faltam políticas públicas, estrutura, energia. Tudo é mais difícil pra cá. Falta vontade política”, afirmou. Sobre a grilagem de terras, Dr. Francisco diz que possivelmente mais de 100 mil hectares foram para os fundos internacionais. “Existem títulos e títulos feitos por um mesmo cartório que cometia fraudes”, alerta.
“A resistência dessas comunidades é para que elas continuem existindo. O Cerrado não é o celeiro do mundo. É área de produção de vida. Nós somos o povo do Cerrado, não o agronegócio nem a produção de grãos. Precisamos garantir a biodiversidade e o espaço de vida dessas comunidades”, afirmou Isolete.
Um pedido de socorro
“Os grandes projetos conseguem fazer mais estragos em quatro minutos do que eu consigo relatar aqui nesse tempo”, disse a piauiense Maria Kasé, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Ela destacou ainda que o estado do Piauí roubou o direito de naturalidade piauiense do povo quando abriu as terras para os estrangeiros e permitiu a invasão de outras pessoas. “O culpado é o estado do Piauí e ele deve ser levado à Corte Internacional de Direitos Humanos”, defendeu.
“Bom Jesus não está crescendo, está inchando”. Esse foi o alerta de Claudia Regina, do assentamento Taboca, no município de Currais. Claudia falou sobre a expulsão dos camponeses de suas terras e sobre o estado do Piauí parecer ter duas formas de governar. “São dois estados que existem no mesmo estado. No norte, há acesso às políticas públicas. Aqui no sul não temos. Além dos conflitos por terra e por água, as escolas do campo estão sendo fechadas. Parece que é tudo pactuado para que as pessoas saiam das suas terras”.
Marquezan Cavalcante, da comunidade Sete Lagoas e membro do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santa Filomena, falou das ameaças que presencia e sofre. “Sofremos desde ameaças de mortes até a derrubada de nossas casas. Na comunidade, há uma escolta armada circulando 24h a mando da empresa Dahma, e os moradores têm que plantar escondido. Nos massacram, mas resistimos e clamamos por justiça”, relatou.
David Kanne, da organização Mari Knoll nos Estados Unidos, alertou sobre a questão da água. “Todas as comunidades apontaram a diminuição de acesso à água. Se não tomarmos uma medida agora, em aproximadamente 5 anos não terão mais água. As comunidades já estão sentindo. A pouca água que tem está envenenada por agrotóxicos”, pontuou.
Terra sem lei
Uma das presenças mais esperadas durante a Caravana foi a participação do juiz agrário Dr. Heliomar Rios. Ele ouviu as denúncias durante a audiência pública, mas explicou que já conhecia todas: “Venho sentindo esse avanço das empresas não é de agora, os fundos internacionais entraram, e entraram forte no sul do Piauí”.
O juiz afirmou ainda que se a Vara Agrária tivesse competência criminal, as cadeias do estado não teriam mais espaço. “Assim que cheguei, em 2012, bloqueei três milhões de hectares que o estado entregava para os grandes. Não só o estado, mas representantes de sindicatos. Só um fundo internacional possui US$ 969 bilhões para investir aqui. Há ainda algo em torno de quase US$ 7 trilhões de dólares para investir no Brasil, Austrália, Patagônia e Sul da África. Infelizmente, não há vontade política e a Vara Agrária só não consegue fazer mais porque não tem estrutura. Conseguimos trazer R$ 200 milhões. Onde está esse dinheiro? Eu não sei”, declara.
Maria Kasé, do MPA, finalizou sua fala lembrando que ser um juiz comprometido em terra sem lei não deve ser fácil e que os camponeses dessa região deveriam ser considerados heróis e heroínas. “O que vimos ali é desumano”, constatou.
A Caravana³, que é organizada pela FIAN Internacional, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, FIAN Brasil e CPT Piauí, segue para Teresina onde, no dia 13, acontecerá uma audiência pública na Assembleia Legislativa e uma reunião com o governador do estado. No dia 14, uma audiência ocorrerá em Brasília.
[1] Jornalista da FASE.
[2] A FASE é parte da Campanha.
[3] A Caravana conta com o apoio de diversas organizações: Cloc – La Via Campesina, Via Campesina Brasil, Grain, ActionAid USA, Friends of the Earth International, WhyHunger, InterPares, Development and Peace, FIAN Suécia, FIAN Alemanha, FIAN Holanda, Solidaridad Suecia – América Latina, Grassroots International, National Family Farm Coalition, Family Farm Defenders, Student/Farmworker Alliance, Maryknoll Office for Global Concerns, Presbyterian Hunger Program, SumOfUs, Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, FASE, FioCruz, HEKS/EPER, ActionAid Brasil, Cáritas Regional do Piauí, Federação dos Agricultores Familiares (FAF), Federação dos Trabalhadores Rurais na Agricultura (Fetag-PI), Escola de Formação Paulo de Tarso (EFPT – PI), Vara e Procuradoria Agrária – PI, Progeia (Santa Filomena), Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santa Filomena, Paróquia de Santa Filomena, Instituto Comradio do Brasil e Obra Kolping do Piauí.