14/06/2018 14:39

Rosilene Miliotti¹

A roda de conversa “Lutas urbanas e crise democrática: tecendo resistências em defesas dos bens comuns e do Bem Viver”, realizada pelo programa da FASE no Rio de Janeiro, em parceria com Laboratório de Subjetividade e Política (LASP) e Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina (NETSAL), e com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, teve como objetivo possibilitar o encontro e o diálogo de diferentes sujeitos políticos do campo urbano do Rio de Janeiro (RJ) e apresentar uma proposta de levantamento participativo com movimentos sociais.

Aercio durante o trabalho de grupo. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Durante dois dias, estiveram reunidas aproximadamente 40 pessoas de diferentes organizações da sociedade civil, movimentos sociais, articulações, redes, organizações e instituições para debater temas como: bens comuns e Bem Viver, institucionalidade e autonomismo e democracia representativa e radicalização democrática. 

“Podemos afirmar que desde a eleição do Lula, em 2003, o tecido associativo brasileiro adquiriu um grau de pluralismo sem precedentes. E, com as mobilizações de junho de 2013, esse pluralismo se acentuou com impacto no sistema político formal, na relação dos movimentos sociais com o Estado, por exemplo”, explica Aercio Barbosa de Oliveira, coordenador do programa da FASE no Rio de Janeiro. Ainda, segundo ele, esse processo mexeu com as agendas dos movimentos, coletivos e ativistas, com as práticas e estratégias de pressão para defender direitos ou criar novos direitos. “No meio dessa transformação, também há movimentos com uma forte crítica ao sistema capitalista e que se orientam por valores como os bens comuns e o bem-viver, que estão nesse diálogo”, destacou.

Os programas da FASE na Amazônia e em Pernambuco também farão rodas de conversas como essa e, em novembro, será realizado um encontro nacional. “Ao longo do ano nos reuniremos em rodas de conversas para que juntos possamos entender ao menos parte dessas mudanças em curso e identificar conexões entre lutas nas cidades, nos espaços urbanos que estão cada vez mais dinâmicos e exigem a atualização da agenda do direto à cidade”, conclui Aercio.

Carolina Peterli, da Marcha Mundial das Mulheres. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Caroline Rodrigues, educadora do programa da FASE no Rio de Janeiro, diz que as narrativas e práticas dos movimentos sociais urbanos são diversas, cada um possui uma forma de ação política, um tipo de organização e uma identidade social. “Essa heterogeneidade característica das lutas urbanas é pouco conhecida e, por vezes, vista apenas como um problema que gera fragmentação social, por isso foi proposto a realização de um levantamento participativo com os movimentos, coletivos e grupos do Rio de Janeiro, Recife (PE), Belém e Santarém (PA), para compreendermos como as diferenças podem, ou não, convergir em objetivos comuns capazes de fortalecer o enfrentamento dessa crise democrática”. 

Luiz Otávio Ribas, pesquisador do NETSAL, comemorou a importância da provocação de um intenso diálogo entre os que atuam e pensam as lutas urbanas e a crise democrática. “Reunimos uma diversidade de orientações políticas, que passaram pela social-democracia, autonomismo, anarquismo, comunismo, entre outros. Além disso, a escolha pelo tema neste momento se mostrou certeira, uma vez que o Brasil passa por uma das mais graves crises do ciclo político desde o final da Ditadura”. Luiz destacou ainda o fato de que as dificuldades próprias de uma crise são sentidas mais gravemente por quem mora em favelas e pela população negra. “O tema ‘dos bens comuns e do bem-viver’ provocou debates sobre a necessidade de nos apropriarmos dos conhecimentos produzidos em nosso continente, com diferenças sensíveis em relação à ideia de Estado de bem-estar-social europeia”. 

 

Crise democrática X favela

(Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Fransergio Goulart, do grupo de pesquisa “Pra que e para quem servem as pesquisas acadêmicas”, iniciou sua fala sobre a radicalização democrática dizendo que concorda que o voto seja um processo da democracia, mas que ao se colocar força na democracia representativa, não se dá espaço para outros modelos de representações. “O que é o Estado? Precisamos voltar a discutir isso”. Para Fransergio, a democracia nas favelas nunca aconteceu. “O Estado de exceção está sendo discutido agora por quem teve seus privilégios retirados. A favela não se mobiliza porque já não tem direito, por exemplo os direitos trabalhistas. Como mobilizar quem já não tem esse direito?”, questiona.

Fransergio Goulart. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Rosineide Freitas, do Instituto de Formação Humana e Educação Popular (IFHEP), diz que a esquerda tem que fazer uma autocrítica sobre a necessidade de dirigir as “massas” e sobre o “lugar de fala”. “O racismo é marcado por um estereótipo que é claro para a professora, para o policial, para o segurança, para o conceito de beleza, para as violências que as crianças sofrem. A luta antirracista tem uma centralidade e o ano de 2013 foi importante para uma juventude da classe média branca. Que foi importante sim, mas só”, critica.

Uma das facilitadoras durante o encontro, Carolina Peterli, da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), foi emblemática ao afirmar que “a democracia não se encerra no voto” e que é preciso repensar a forma de fazer política. “Devolver o poder de escolha aos territórios. Aqui no Rio, por exemplo, vimos a Vila Autódromo como símbolo de luta pelo território. Eles foram capazes de pensar alternativas que acolhessem tanto a população como os interesses políticos”.

Atuante na cena de consumo de crack da Maré, Daiana Gusmão, assistente social e cria da Maré, diz que na favela as pessoas não sabem o sentido da palavra democracia. “A gente não sabe se esse tal processo democrático é de comer ou de passar. É muito difícil falar sobre democracia na Maré para crianças que já viram pessoas sendo executadas”, afirmou.

Jorge Magno (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

O universitário e também cria da Maré Jorge Magno engrossou o coro e afirmou que “chegar na favela e falar de democracia é um esculacho”. “A educação pra gente não é dada de berço. A gente tem que lutar muito para entrar em uma universidade sacana. Tem muitos grupos de pesquisa que só querem nossa entrada para pegar nossas ideias. Eles se apropriam da nossa vivência, da nossa dor. Então, de que democracia a gente está falando? É uma questão de resistência que a nossa fala não seja uma fala acadêmica”, afirma.

Jorge finalizou sua fala e emocionou os participantes do encontro ao declamar uma de suas poesias, que começava assim: “Sai da frente meus pretos. Que vem logo ali o caveirão. Pa-pum, pa. Eu avisei meus irmãos. Temos mais um no chão”.

Bens comuns no meio urbano

Nas cidades, o debate sobre os bens comuns urbanos ainda é recente. Existem experiências de usos coletivos de espaços públicos, de ocupação de ruas, praças e parques. Há ainda iniciativas de farmácias e bancos comunitários, espaços de artes que vão contra a lógica capitalista de criação do espaço urbano. “Os comuns não são uma prática isolada, eles trazem um desafio de ressignificação das relações sociais, das práticas de apropriação da natureza, das formas como lidamos uns com os outros”, comenta Kátia Aguiar, do LASP.

Para Eliene Maria Vieira, do Fórum de Manguinhos e do grupo Mães de Manguinhos, a prática do bem comum nas favelas sempre existiu porque sempre houve precarização dos serviços públicos. “Pense agora na greve nos caminhoneiros. Eu nem fiquei preocupada porque em Manguinhos tem horta comunitária”, comemorou. Entretanto, Eliene diz que a questão dos bens comuns é difícil porque “as pessoas têm dificuldade de sair da bolha, dos seus privilégios”.

Os participantes se dividiram em grupos de trabalho. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Uma outra questão levantada por uma das participantes em relação aos bens comuns é o uso da linguagem como um bem. A partir do debate, ficou evidente que a linguagem precisa ser considerada um bem comum, porque as pessoas são iludidas por meio das palavras. Além disso, muitos questionamentos ficaram para a reflexão: Será que toda forma de união é válida? Unir? Como? Com quem? Separar? Separar de quem? Conversar como e com quem?

Institucionalidade?

Faz sentido participar dessa institucionalidade? A pergunta não gerou consenso entre os participantes, mas houve a sugestão de construir o controle social através de processo de autogestão. Fransergio lembrou que foi durante os protesto de Junho de 2013  que a passagem de ônibus teve uma redução de R$ 0,20 e que esse recuo não aconteceu com conversa de gabinete ou em uma conferência, sendo uma “conquistado na rua”.

Para os participantes do encontro, as pautas “institucionalidade e autonomismo” – como foram sugeridas pela equipe de metodologia da roda de conversa – não deveriam ser debatidas juntas porque são palavras antônimas. Mas houve consenso em afirmar que “não há autonomia na institucionalidade e que é preciso ocupar para transformar”.

[1] Jornalista da FASE.