04/03/2020 11:15
Julianna Malerba¹
Embora os meios de comunicação insistam em difundir a ideia de que a crise ambiental é global, generalizada e que submete todos igualmente aos seus efeitos nocivos, basta um simples cruzamento de dados entre a localização de atividades poluentes e o perfil socioeconômico da população do seu entorno para percebermos que determinados grupos sociais estão mais expostos aos impactos ambientais que outros.
Dados do último censo do IBGE, sistematizados por membros da Rede brasileira de justiça ambiental, revelam que 84.5% das vítimas imediatas do rompimento barragem de Fundão, em 2015, que viviam no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, não eram brancas. No Córrego do Feijão e em Parque da Cachoeira, localidades mais atingidas pelo rompimento da barragem em Brumadinho, em 2019, 58,8 % e 70,3% da população, respectivamente, se declara como preta ou parda.
Para discutir e dar visibilidade a isso, a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA)², reuniu cerca de 50 pessoas no Armazém do Campo (Rio de Janeiro), no último dia 14/02. Na atividade, os/as participantes discutiram os impactos da atual conjuntura em diferentes corpos, o papel do racismo ambiental na reprodução do capitalismo e do desenvolvimento seletivo.
Cinco mulheres foram convidadas a iniciar e provocar o debate: a economista Rita Passos, as ativistas Helô Nunes (Coletiva de Mulheres da Zona Oeste do Rio de Janeiro) e Saney Souza (Coletiva As Caboclas), a advogada e pesquisadora Daniela dos Santos e a médica Kota Mulangi, presidente do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Matriz Africana.
O acesso desigual ao saneamento e à água potável, realidade vivenciada em vários municípios da Baixada Fluminense, foi o primeiro dos temas abordados. Em um momento em que a região metropolitana do Rio de Janeiro vive uma de suas maiores crises hídricas – não apenas em relação ao acesso quanto à qualidade da água – as debatedoras lembraram que quem não pode comprar água mineral tem de se submeter não apenas ao acesso já precário – em muitos municípios o abastecimento da agua já é intermitente – mas a beber água com níveis de contaminação elevados.
Outros índices desiguais de acesso a políticas públicas que garantem, direta ou indiretamente, o direito ao meio ambiente também foram discutidos. A falta de acesso à informação e à moradia foi mencionada e conectada à imposição cotidiana de contaminação e riscos aos moradores que vivem cerca das pedreiras, das siderúrgicas, aterros sanitários e polos industriais localizados nas áreas periféricas da metrópole carioca. As restrições impostas à mobilidade urbana – seja pela escassez de transportes públicos ou pelos preços de passagens inacessíveis a uma população que, cada vez mais, depende de trabalhos informais e precários para sobreviver – também foram relacionados à realidade de insegurança alimentar e hídrica.
Os debates apontaram ainda que essa transferência de riscos e custos ambientais sobre as populações de baixa renda e vulnerabilizadas pela estrutural discriminação racial e étnica maximizam a lucratividade de determinados setores e classes sociais em detrimento da qualidade e vida de uma enorme parcela da sociedade, composta por pessoas pobres e negras. O perfil socioeconômico das vítimas diretas dos rompimentos das barragens da mineração em Mariana e Brumadinho expressa tragicamente essa realidade.
Racismo ambiental ou racismo estrutural?
As debatedoras provocaram os/as participantes a pensar sobre qual o sentido de caracterizar essas situações de desigualdade como racismo ambiental. Afinal, seria politicamente estratégico qualificar como racismo ambiental os efeitos do racismo estrutural que historicamente organiza as relações sociais no país e impõe aos grupos historicamente vulnerabilizados – negros, pobres, índios, populações tradicionais, sem terra/teto – uma carga sempre desigual da degradação ambiental?
“A causa ambientalista, em geral, é desenhada a partir dos brancos sem uma discussão estrutural. E mesmo dentro do movimento ambientalista mais crítico há quem afirme que as desigualdades ambientais são definidas pela classe e não pela raça. Mas, afinal, como é que são divididas as classes sociais no Brasil? Quem são os pobres nesse país?”, provocou Cristiane Faustino, do Instituto Terramar.
O termo racismo ambiental foi cunhado, em 1981, pelo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr., a partir de pesquisas que demonstraram que os depósitos de resíduos tóxicos concentravam-se nas áreas habitadas pela população afro-americana. A enunciação desse conceito pelo movimento negro nos EUA contribuiu para evidenciar a existência de uma lógica política, determinada pelo racismo estrutural, que transfere sobre os mais destituídos os custos do desenvolvimento.
As discussões apontaram algumas pistas sobre o sentido político do uso desse conceito no Brasil. O primeiro deles seria justamente visibilizar a enorme concentração de poder na apropriação dos recursos ambientais que caracteriza a história do país, determinada por um sistema social e político estruturalmente racista. E, assim, provocar o próprio movimento ambientalista a refletir sobre a relação entre transferência seletiva de riscos e degradação ambiental e perceber que ela não cessará enquanto suas consequências atingirem seletivamente grupos historicamente vulnerabilizados. Impedir essa seletividade, isto é garantir que nenhum grupo social independente de sua cor, etnia, origem ou renda, receba uma carga desproporcional dos impactos ambientais, criará as condições para que sejam, de fato, revistos os padrões de produção e consumo e as estratégias de lucratividade que atualmente se viabilizam porque seus impactos negativos não atingem realmente toda a sociedade. O conceito de racismo ambiental, concluiu-se ao final dos debates, nos convoca a compreender que a luta contra a injustiça e o racismo é central para que as demandas por sustentabilidade sejam, de fato, alcançadas e que, portanto a luta ambientalista tem que ser também antirracista.
[1] Assessora da FASE com a colaboração de Michel Silva.
[2] A FASE é membro da RBJA.