09/01/2017 09:00
Élida Galvão¹
Localizado às margens da Rodovia Transamazônica, o município de Placas, no Pará, tem aproximadamente 29.500 habitantes². A formação da cidade teve início na década de 1970, em tempos de ocupação da Amazônia para a exploração econômica a partir do Plano de Integração Nacional (PIN). Sua denominação foi devido ao grande número de placas existentes em trecho da rodovia para orientar a divisão entre Altamira e Itaituba, outros municípios paraenses. Com a expansão populacional, em 1993 a cidade conquistou sua emancipação de Santarém. A instalação da sede só ocorreu em 1997. De lá para cá, Placas foi crescendo com grande desestruturação de políticas públicas e programas sociais voltados às necessidades da população. Com uma situação social bastante fragilizada, a ação de agentes populares de saúde, que atuam no tratamento preventivo e curativo de doenças, passou a fazer parte do cotidiano.
Maria da Conceição integra as estatísticas dos milhares de brasileiros que migraram para a Amazônia atraídos pela promessa de melhoria de vida. Junto com seu companheiro, a senhora de 62 anos saiu do Piauí com a esperança de ampliar as possibilidades de uma vida promissora na região, que alardeava o desenvolvimento nacional e a distribuição de terras. Porém, ao chegar em Placas, a realidade a convocou para a atuação voluntária. “Quando cheguei, Placas era somente uma comunidade. Na época, o presidente da comunidade procurava uma pessoa que entendesse de saúde pública e não havia ninguém””, relembra Maria, que na época, enquanto auxiliar de enfermagem, era a única pessoa com noções de saúde pública no local. Ela fazia o papel de médica, enfermeira, cirurgiã, anestesista, tudo de forma muito corajosa.
Em 24 de setembro de 2016, Maria foi lembrada carinhosamente durante a inauguração do posto de saúde alternativa na cidade, o que ocorreu com a reestruturação do espaço de acolhimento solidário de saúde, onde fora implantada a ‘Farmácia Viva’ da população. Com o objetivo de fazer uso de forma sustentável de espécies nativas da Amazônia, possibilitando um conhecimento maior da comunidade sobre as plantas e seus usos adequados, a iniciativa integra o projeto “Cuidando da Vida no Bioma Amazônico”, desenvolvido pela Associação de Defesa dos Direitos Humanos e Meio Ambiente na Amazônia (ADHMA), com o apoio do Fundo Dema em parceria com o Fundo Amazônia.
Luta pela democratização da saúde
Com o crescimento da cidade de Placas, a única casa da Superintendência de Campanhas de Saúde Pública, antiga SUCAM, não dava conta de prestar atendimento ao contingente de pessoas adoentadas, enfaticamente com malária. A necessidade de construir outro espaço de saúde era grande. Em 1888, a comunidade se juntou e deu início à construção do primeiro posto de saúde, que começou a funcionar ainda de forma inacabada. Entre usos e abandonos do espaço, em 2010, com uma reforma muito básica conquistada por meio de um projeto comunitário, o posto deu lugar a atendimentos com bioenergéticos e massagens. Porém, com instalações ainda precárias, não foi possível dar continuidade às ações. Em 2013, a assembleia das comunidades da paróquia local decidiu que o imóvel passaria definitivamente para o grupo da Pastoral da Saúde e da Criança, bem como a responsabilidade de sua reforma.
Diante de tamanho desafio, uma indagação: “E agora? Com qual recurso que nós vamos reformar? ”, questionava Irmã Marialva Oliveira, agente de pastoral, cuja preocupação não durou muito tempo. Pouco tempo depois, a oportunidade foi alcançada com a aprovação de projeto submetido ao Fundo Dema. “Através do clube de mães ficamos sabendo da 3ª Chamada do Fundo Dema e apresentamos o nosso projeto. Fomos contempladas e ficamos muito felizes. Alugamos outro espaço e mudamos enquanto esperávamos a liberação deste recurso. Demorou, mas chegou”, comemora ela, que também está à frente da coordenação da iniciativa.
Dentre as importantes contribuições dadas durante a inauguração do posto de saúde alternativa, Padre José Boeing, mestre em direito ambiental e desenvolvimento socioambiental pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirmou que o desenvolvimento de ações que garantam os direitos das comunidades e o conhecimento tradicional está relacionado à resistência aos impactos de um modelo colonialista de dominação e exclusão social. “A discussão desse projeto do Fundo Dema tem toda uma razão de ser. Começa por uma razão simples, participação comunitária versus modelo desenvolvimentista do governo federal ao longo da BR 163. Em 1966, houve o projeto de colonização da Sudam, em 1970 começaram a abrir as estradas. O projeto de colonização da Amazônia trouxe grandes consequências, como a violação de direitos, assassinatos, grilagem, desmatamento, mineradoras, hidrelétricas, pecuária, agronegócio, monocultivo da soja, tudo isso foi consequência deste modelo”, analisou Boeing.
Medicina popular é conhecimento tradicional
Diferentemente dos objetivos da indústria farmacêutica, o conhecimento tradicional faz uso do aproveitamento de plantas nativas, bem como de sementes, essências, raízes e frutos existentes nos quintais e jardins caseiros, sem a finalidade lucrativa. O compromisso da medicina popular é, sobretudo, o de resguardo da vida. É para isso que as sete mulheres da pastoral da saúde estão voltadas. A serviço da saúde coletiva, estas mulheres, que ainda contam com a parceria de um massagista, têm se dedicado ao trabalho no “postinho” de saúde, como é carinhosamente chamado pela comunidade. O atendimento se caracteriza pelas práticas integrativas e complementares, institucionalizadas no Sistema Único de Saúde (SUS) por meio da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde.
Assim, os pacientes contam com uma acolhida humanizada desde o primeiro atendimento, que considera o indivíduo em sua singularidade e suas vivências comunitárias com o meio ambiente e em sociedade. “Cada pessoa recebe um atendimento de acordo com aquilo que ela precisa. As terapias que oferecemos são: floral, Reik³, homeopatia, fitoterapia e massagem. Oferecemos também a escuta, porque às vezes a pessoa está precisando conversar. E se a gente percebe que aquele atendimento não é para nós, nós encorajamos a pessoa a procurar o médico. A gente nunca segura um caso que não é para nós. E também jamais interferimos nas indicações médicas. Estimulamos as mulheres a fazer o preventivo, o pré-natal. Tudo isso faz parte do tratamento”, explica Irmã Marialva.
O projeto ‘Cuidando da Vida no Bioma Amazônico’ garante benefício direto a 11 famílias, umas localizadas no centro urbano, outras em agrovilas. Entre estas famílias, seis possuem lote rural onde buscam cultivar a terra com consciência ambiental. Considerando a importância da biodiversidade e da prática da agroecologia, estas famílias possibilitam a extensão das ações ao partilharem a matéria prima de seus cultivos para a produção de medicamentos. Toda a cadeia de ação da saúde alternativa é pautada na experiência da reciprocidade e do respeito aos recursos da natureza enquanto bem comum.
[1] Edição de reportagem elaborada pela jornalista do Fundo Dema.
[2] Dados do IBGE (2016).
[3] Terapia reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), caracterizada pela ação da imposição de mãos.