07/11/2019 12:32

Fernanda Couzemenco¹

No dia 29 de outubro, a mancha de óleo cru que há mais de dois meses se espalha pelo litoral brasileiro, já chegou a Ilhéus, no sul da Bahia, e se aproxima cada vez mais perigosamente do Parque Nacional Marinho de Abrolhos, o maior santuário marinho de todo o Atlântico Sul. No Espírito Santo, comitês estadual e locais de crise estão instalados, à espera do pior. 

Em Degredo, comunidade reconhecida em 2016 como quilombola, localizada em Linhares, ouvimos, há um ano, relatos de duas famílias que ilustram uma metáfora bem apropriada da bilionária indústria do petróleo: uma chaga aberta nos territórios onde se instala, uma ferida exposta que nunca se cura e se põe a purgar a qualquer momento. 

Foto: Foto: Leonardo Sá

“De bom, nada”. A resposta é bem objetiva quando perguntamos à agente comunitária de Saúde Mônica Silva de Jesus o que a exploração de petróleo gerou de positivo para a comunidade onde ela nasceu e se criou, com toda a família. E olha que lá se vão 40 anos. 

A verdade é que, não bastasse o risco constante e o acúmulo de contaminações que agravam a cada ano o passivo socioambiental do setor, há ainda o passivo econômico. 

Quando Mônica nasceu, a Petrobras já havia chegado ao norte do Espírito Santo. Abriu valas para passar com os dutos, aterrou rio, desmatou, poluiu, inviabilizou a pesca e a agricultura. Extraiu muita riqueza da região, mas, seguindo seu plano – assim como de todas as grandes e predatórias empresas de mineração – de extermínio de pessoas nas áreas de produção, não transformou nenhuma gota da riqueza extraída em bem-estar social para as comunidades localizadas tradicionalmente nos territórios onde a gigante se instala. 

Foto: Leonardo Sá

Empregos? Nada. Nem equipamentos públicos chegam nesses locais. Saúde, educação, estradas, comunicação, segurança, lazer. Nada. “Se você procurar quem tem o segundo grau aqui no Degredo, é porque saiu pra estudar”, afirma, como uma dessas poucas exceções, já que passou sete anos na sede do município, onde ela e a irmã Simony de Jesus conseguiram uma formação técnica e superior. 

“Até 2005 nem estrada aqui existia, nem energia elétrica. Lembra do ‘Luz Para Todos’, do Lula? Foi isso que trouxe energia pra cá”. Já a torre de celular ainda é uma promessa. E o transporte público não existe. Apenas um ônibus aos sábados. Escola só fora da comunidade, mas o transporte é precário. “Se chover muito, o ônibus escolar não passa”. 

Em suma, os territórios onde as unidades produtivas funcionam são cenário de abandono e pobreza, de identidade sequestrada, de história interrompida. 

Restrições seletivas

“Em cima dos tubos da Petrobras, não pode plantar nada que tenha raiz profunda”, adverte Monica, que também é membro da Comissão Quilombola do Degredo. O desmatamento e a irrigação também são vedados aos quilombolas dali. A proibição, no entanto, não se aplica aos grandes fazendeiros. 

“Quem não pode é o pequeno agricultor, o quilombola. Fazendeiro derruba uma mata inteira, planta coco, planta eucalipto, e não dá nada. Tem poço aberto dentro de vereda, esses alagamentos naturais que vêm de Povoação e desembocam em Pontal do Ipiranga. Um fazendeiro abriu praticamente uma lagoa em cima da vereda pra irrigar coqueiral. Se eu abrir uma poça pra criar uma piaba, o Iema [Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos] vem em cima, Ibama [Instituto Brasileiro dos Recursos Naturais Renováveis] vem em cima. Tem umas aspas nesse não pode. Não pode quem não tem dinheiro. Se tiver dinheiro, pode”, denuncia. 

“Seria mais que extraordinário se eles [os gestores da Petrobras] reconhecessem que aqui tem pessoas com capacidade de trabalhar pra eles. Mas infelizmente isso não acontece de forma alguma. A Petrobras pra vir aqui, só se alguém denunciar que tem alguém invadindo a terra deles. O dinheiro do petróleo não é investido aqui”, indigna-se. 

A instalação mais próxima da comunidade hoje é a Unidade de Tratamento de Gás Cacimbas (UTGC), onde não há nenhum dos 500 moradores de Degredo empregado, tampouco das demais comunidades próximas, como Cacimbas, Pontal do Ipiranga. Apenas de Povoação, a 40 km de Degredo, “tem dois ou três”, diz Mônica. “Pessoas de fora vêm trabalhar dentro da comunidade e os daqui tem que sair pra conseguir emprego. E são profissões que têm vaga no UTGC, mas eles não dão oportunidade pra quem é daqui”, reclama. 

Prostituição e drogas

Para as mulheres, nem isso. O que se prometeu foi a capacitação em cursos dos Centros de Integração Comunitária (CICs). Condicionante socioambiental do licenciamento da Petrobras, os CICs deveriam atuar durante vinte anos, mas o trabalho foi encerrado com menos de cinco anos, sem gerar a renda prometida para as mulheres. “Não deu tempo. Encerraram sem nenhuma explicação pra gente”. 

Foto: Leonardo Sá

Outro projeto não realizado foi a Casa do Mel, há quase dez anos, apenas uma promessa. Já a fábrica de biscoitos, passada quase também uma década de espera, finalmente começou a produção neste ano. Um grão de esperança em meio a um mar de vidas ofendidas (veja na próxima reportagem da série)

O “emprego” gerado para mulheres, com a chegada do petróleo, foi a prostituição, conta Monica. Na época, as filas de ônibus com os milhares de peões engarrafavam o trânsito de Linhares até Pontal do Ipiranga, nas proximidades de Degredo.

“Essas grandes empresas geram esse tipo de situação. UTGC na época virou o quê? Campo de prostituição. Cinco mil homens dentro de uma vila rural!”, relembra, citando situações semelhante ocorridas na vizinha Povoação e em Barra do Riacho, Aracruz, em tempos mais antigos, quando os peões chegavam a pular cercas e janelas para sequestrar as meninas de suas famílias. Lá houve muitos estupros e filhos bastardos. “Outra herança que a UTGC deixou pras comunidade: droga. Até hoje tem gente viciada. Não tinha isso antes da Petrobras”, lamenta.

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[1] Jornalista do Século Diário.