28/10/2020 15:02
Pesquisa inédita da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)¹ identificou mais de 700 políticas públicas municipais que promovem a agroecologia, a produção sustentável de alimentos pela agricultura familiar e a segurança alimentar e nutricional no Brasil.
Distribuídas em 520 municípios de todos os estados e biomas, políticas públicas, programas e legislações mostram que futuros gestores e legisladores municipais podem realizar diversas ações concretas para promover a segurança alimentar de seus eleitores, reduzindo o impacto da alta dos preços dos alimentos e combatendo a escalada da fome, em nível local.
Elaborado por 34 pesquisadores de todo o Brasil, entre agosto e outubro, o levantamento ‘Municípios agroecológicos e políticas de futuro’ não deixa dúvidas quanto à diversidade e importância de políticas públicas inovadoras para a produção rural e o abastecimento alimentar no campo e na cidade.
“Este é o momento das candidaturas priorizarem e se comprometerem com o direito básico ao alimento saudável que todos nós como cidadãos e eleitores temos garantido”, diz Flavia Londres, engenheira agrônoma e membro da Secretaria Executiva da ANA, que participou da coordenação da pesquisa.
Dados gerais
No ranking estadual de políticas agroecológicas, o Paraná ocupa a liderança, com 147 iniciativas identificadas, seguido dos estados do Sul, Santa Catarina, com 81, e Rio Grande do Sul, com 43. Completando os estados que apresentaram números mais expressivos no levantamento estão o Maranhão, com 41 iniciativas, Rio de Janeiro, com 39, Ceará, 38, São Paulo e Pernambuco, ambos com 36, e a Paraíba, com 33 iniciativas identificadas.
Distribuição das iniciativas, por Unidade da Federação (UF)
Entre os municípios, os que apresentam maior volume de iniciativas de apoio à agroecologia são Anchieta (SC), com 16; São Paulo (SP), com 15; Caxias (MA), com 13; Piquet Carneiro (CE), com de; Brejo da Madre de Deus (PE), com 9; Cachoeiro do Itapemirim (ES), Itanhaém (SP) e Virmond (PR), com 8; Curitiba (PR) e Florianópolis (SC), com 7.
Quanto aos biomas de ocorrência das iniciativas, a maior parte, 407, ocorre na Mata Atlântica, seguida da Caatinga, com 142, ao passo que o Cerrado concentra 35, 8 estão situadas na Amazônia, outras 8 no Pampa e 4 no Pantanal. Outras 57 iniciativas foram localizadas em zonas de transição entre dois ou mais biomas.
Distribuição das iniciativas, por bioma
Prioridade dos municípios
O levantamento, categorizado em 41 temas, identificou que o apoio a feiras e circuitos curtos de comercialização é a ação mais recorrente do executivo municipal para o setor, somando 113, das 725 iniciativas mapeadas. O apoio se manifesta de várias formas, como a cessão de espaço público para realização da feiras ou construção de um ponto fixo de comercialização, compra de barracas e apoio na logística para transportes, entre outras.
Em Remígio (PB), a Feira Agroecológica, criada em 2006, é realizada toda sexta-feira, sendo uma das mais antigas da Rede de Feiras Agroecológicas do Polo da Borborema. Em Couto Magalhães (TO), a Feira Livre Municipal Ozéias de Araújo é uma tradição das sextas-feiras, a partir das 15h, e, há mais de dez anos, promove geração de renda e interação entre moradores de todas as regiões rurais do município, do centro da cidade e visitantes. Em Tangará da Serra (MT), município localizado em uma região caracterizada pela produção do agronegócio, a prefeitura criou uma unidade específica para tratar da economia solidária, o Núcleo de Políticas para a Economia Solidária (Nupes). Feiras municipais são realizadas duas vezes por semana, onde famílias agricultoras comercializam seus produtos, sendo a maior parte vinda dos assentamentos de reforma agrária.
Compras públicas
A segunda categoria de destaque no levantamento foi a de compras institucionais e outros mecanismos de geração de demanda pelos produtos da agricultura familiar, com 73 casos.
Se destacam os casos de compra do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que, desde 2009, exige o destino de, no mínimo, 30% dos recursos repassados aos municípios pelo governo federal para a compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar. Mesmo com severos cortes orçamentários, desde 2017, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) foi outra das principais iniciativas responsáveis pelo crescimento de segmentos produtivos que se consolidaram, pela demanda que o programa gerava.
O cumprimento da cota mínima de 30% dos recursos do PNAE destinados à agricultura familiar é uma das reivindicações mais urgentes do movimento agroecológico, já que, em muitos estados, o número de experiências mapeadas foi pouco expressivo.
“A ação municipal na aquisição de alimentos agroecológicos é uma política estruturante para este segmento, beneficiando tanto produtores como consumidores”, explica Flavia Londres.
Entre as experiências positivas, destacam-se a de Fazenda Rio Grande (PR), onde foi criado o Programa Municipal de Compra Direta Local dos Produtos da Agricultura Familiar. Em São José do Egito (PE) há um PAA que, desde 2019, destina 30% dos recursos a grupos de mulheres; uma iniciativa inovadora que, além de garantir alimentos saudáveis, fomenta e gera recurso especialmente a grupos femininos.
Há também os municípios onde a alimentação escolar é quase integralmente oriunda da agricultura familiar e de base agroecológica, ou orgânica. Em São Domingos (SC), 100% dos recursos do PNAE são destinados à compra de alimentos da agricultura familiar, sendo em torno de 30% de produtos orgânicos. Em Itati (RS), cerca de 97% dos recursos do programa são direcionados à compra de alimentos da agricultura familiar, assim como em Aratiba (RS), onde o programa municipal prioriza alimentos da agricultura familiar e alimentos orgânicos nas compras para a alimentação escolar.
Foram identificadas importantes legislações que dispõem sobre a obrigatoriedade da inclusão de alimentos orgânicos ou agroecológicos adquiridos diretamente da agricultura familiar na alimentação escolar. Alguns casos como esse aparecem em São Paulo, Santa Rosa de Lima (SC), Encantado (RS) e Porto Alegre. O levantamento também destaca legislações que determinam uma compra progressiva, como, por exemplo, em Anchieta, onde a lei municipal prevê que, em 2021, a alimentação escolar seja composta de, pelo menos, 45% de alimentos orgânicos.
Tecnologias inovadoras
Há também experiências de moedas sociais que têm como público beneficiário populações específicas ou em situação de vulnerabilidade, como no caso de Maricá (RJ) e São José do Erval (RS). No município de Maricá a experiência, administrada pelo Banco Palmas, beneficia a população que se encontra dentro da faixa de até três salários mínimos e comprova renda através do CadÚnico. O programa Renda Mínima Gestante também oferece a gestantes em situação de vulnerabilidade social residentes no município um benefício na moeda social por um ano (sete meses da gestação e cinco meses de pós-parto).
Em São José do Erval, o vale instituído por lei beneficia famílias em condição de vulnerabilidade social, sendo distribuído pelo setor da assistência social do município. Em Pinhão (PR), o Vale Feira é um instrumento na Política de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos: as famílias que aderem ao programa, estão em dia com a Taxa de Lixo e separam adequadamente o lixo doméstico para a coleta seletiva, recebem de volta, integralmente, o valor da Taxa de Lixo na forma de Vale Feira, para uso exclusivo na feira livre do município.
Experiência semelhante acontece em Santiago (RS), onde o poder público municipal lançou, em 2020, o projeto Pila Verde, que busca recompensar o cidadão que realizar a separação correta de resíduos e entregar o lixo orgânico para compostagem coletiva. A cada 5 kg de lixo orgânico entregues, os moradores recebem uma cédula de ‘1 pila’, que tem valor equivalente a R$ 1,00. O valor pode ser usado nas Feiras do Produtor com feirantes cadastrados no projeto. Em Umuarama (PR), o programa Lixo que Vale promove a troca de materiais recicláveis por alimentos adquiridos direto do produtor rural.
Criatividade na gestão municipal
O tema da agricultura urbana e periurbana rendeu 42 experiências voltadas para hortas comunitárias, hortas escolares e centros municipais e públicos de produção de alimentos. Além de produzir e abastecer localidades com alimentos saudáveis, esses espaços permitem a prática e a organização comunitária, especialmente de mulheres, práticas de educação alimentar e nutricional e também de educação ambiental. Na região metropolitana de Belo Horizonte (MG), um processo de mais de dez anos vem incorporando a agroecologia ao planejamento metropolitano.
Muitas das experiências mapeadas no tema da agricultura urbana são amparadas por legislação própria, tanto em capitais, como Palmas (TO) e Natal (RN), como em pequenos e médios municípios, a exemplo de diversos casos no estado do Paraná (Londrina, Arapongas, São José dos Pinhais, Francisco Beltrão, entre outros).
Na capital paulista, a Secretaria do Trabalho implementou a Bolsa de Inserção Laboral, que promove o trabalho em hortas urbanas e periféricas e também em comunidades indígenas, produzindo impacto significativo no impulsionamento da agricultura urbana. Em Florianópolis, um decreto publicado em 2020 dispõe sobre o programa municipal de agricultura urbana.
Outros bons exemplos são os programas públicos de ensilagem para a garantia da alimentação animal em período de estiagem, como os que existem nos municípios de Caraúbas e Aparecida (PB), assim como os casos de prefeituras que possuem maquinário agrícola e disponibiliza seu uso de forma coletiva.
Lacunas de gestão
A pesquisa também identificou os temas com menor incidência nas políticas e ações municipais, como a reforma agrária e a restrição ao cultivo de transgênicos. No primeiro caso, apenas o Programa Polos Agroflorestais, em Rio Branco (AC), promove o tema, viabilizando uma espécie de reforma agrária municipal que destinou pequenos lotes, no cinturão verde da cidade, para que famílias que migraram dos seringais e ficaram desempregadas pudessem produzir alimentos para serem comercializados na cidade. A iniciativa, de 1993, é uma das mais antigas captadas pelo mapeamento. Atualmente, há grupos de produtores orgânicos em alguns desses polos.
No tema dos transgênicos, apenas uma – e bastante inovadora – experiência aparece: em Botucatu (SP), uma legislação de 2009 proíbe transgênicos na alimentação escolar.
A restrição ao uso de agrotóxicos é um dos princípios-chave da produção de base agroecológica. No entanto, o mapeamento identificou apenas 15 iniciativas que restringem ou regulamentam o uso de agrotóxicos. Uma delas, localiza-se no município Glória de Dourados (MS), onde uma lei municipal de 2016 proíbe a pulverização aérea dentro dos limites do município. Mais recentemente, em 2019, a capital catarinense, Florianópolis, também aprovou uma legislação que ‘institui e define como Zona Livre de Agrotóxicos a produção agrícola, pecuária, extrativista e as práticas de manejo dos recursos naturais no município’. A lei proíbe o uso e armazenamento de quaisquer agrotóxicos sob qualquer tipo de mecanismo ou técnica de aplicação, tendo como justificativa o risco toxicológico dos produtos.
Embora importantes e inovadoras, elas ainda são pouco expressivas numericamente frente aos impactos já sabidos do uso desses produtos em lavouras: “A pesquisa nos mostrou que experiências exemplares já existem, falta multiplicá-las em outros municípios”, encerra a coordenadora da pesquisa.
Agroecologia nas Eleições
Entre os resultados da campanha está um documento com 36 propostas, organizadas em 13 campos temáticos, para a criação de políticas públicas de apoio à agricultura familiar e à agroecologia, a ser entregue a candidaturas a prefeitos e vereadores. No formato de carta-compromisso, o documento é denominado ‘Agroecologia nas Eleições: Propostas de Políticas de Apoio à Agricultura Familiar e à Agroecologia e de Promoção da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional em Nosso Município’.
Em menos de uma semana, mais de 100 candidaturas, de várias correntes ideológicas, já assinaram a carta-compromisso, fortalecendo a presença do tema no pleito deste ano.Dada a importância do tema para a segurança alimentar de jovens e crianças, assim como para produtores rurais, a ANA também lançou esta semana um documento específico para compromisso das candidaturas com o Programa Nacional de Alimentação Escolar. A carta-compromisso para formalização de adesão às propostas está disponível para download no site da organização.
[1] A FASE é membro da ANA.